terça-feira, 13 de dezembro de 2011

FLAMENGO, ARTE E MINHA SANTA MÃEZINHA


Há exatos 30 anos, em 13 de dezembro de 1981, o Flamengo ganhava do Liverpool, em Tókio, e se sagrava Campeão Mundial de Futebol. “Ih, futebol de novo”, pensa o leitor que visita este humilde blógui por causa dos geniais pôstis sobre cinema, música, arte enfim. Pois volte a sorrir, decepcionado leitor. Saiba que este pôsti é, sim senhor, sobre arte (em mais de um sentido), e sobre máquinas do tempo, e sobre armações amorosas.
Porque arte? Num meio em que a principal atividade é o preparo físico, que visa enrijecer e não flexibilizar; num esporte em que o intelecto não é exatamente muito presente; num jogo em que o ignorante e anti-estético chutão pra cima é aplaudido pela torcida e recebe urros de apoio dos companheiros; quando, enfim, surge neste meio, e dentro de um mesmo time, jogadores extremamente habilidosos e inteligentes, jogadores que não dão chutão, que tabelam com toques refinados, e que surpreendem os adversários e a platéia com movimentos e dribles desconcertantes, que transformam um jogo viril em um verdadeiro balé estético, aí não estamos falando apenas de futebol, mas, e principalmente, de arte.
Isso me lembra aquela música do Paralamas: tendo a lua aquela gravidade em que o homem flutua, merecia a visita não de militares, mas de bailarinos, e de você e eu.
Voltando ao time de artistas, pouco mais de um ano antes, estreava Nunes, o centroavante que seria decisivo nos gols dos títulos brasileiros e mundial. Nunes estrearia no Maracanã, contra um time que àquela época era muito respeitado, porque tinha alguns jogadores da seleção brasileira e ainda, em final de carreira, um dos maiores artistas que o futebol já conheceu: Dicá. Que time era esse? Óbvio, a gloriosa Ponte Preta. A estréia de Nunes no Flamengo era muito aguardada. O centroavante, mesmo jogando fora dos grandes centros do futebol (Santa Cruz, do Recife), era quase um ídolo nacional, participando inclusive da seleção brasileira e só não foi à copa de 78 devido a uma contusão. Passou pelo Fluminense e chegou ao Flamengo onde estrearia naquele domingo, 30 de março de 1980.
Entre os presentes na torcida da Ponte, que rumava de ônibus ao Rio, estavam o futuro ilustre autor deste blógui e sua santa mãezinha. Sim, fomos com a Torcida Jovem da Ponte Preta, prova de que naquele tempo torcida organizada era algo bom, familiar mesmo. Até namorei uma menina da torcida, linda. E deus, ops, Deus sabe que eu jamais namoraria uma menina que não fosse de família. Aliás, o namoro começou naquele dia. Fui e voltei ao lado da Raquel. Não ao ficar vendo paisagem o tempo todo, né?
Ao chegar perto do Maracanã, apreensão: como desceríamos do ônibus, a maioria com camisa da Ponte (semelhante à do Vasco), bem no meio daquela multidão? Pois a surpresa começou ali. Assim que o ônibus desce, dezenas de integrantes de uma torcida organizada nos receberam com batucada. Pegaram nossas bandeiras e as tremularam. Conduziram nossa torcida para dentro do maior estádio do mundo, então já quase cheio. Fizeram o maior caminho. Passamos por quase toda a arquibancada até que nos deixaram no lugar reservado aos visitantes, falaram para ficarmos à vontade e foram embora aos seus lugares. Lá vimos o Maracanã lotado vibrar com um golaço de Nunes logo na estréia, e com Zico, que além de fazer um gol, fez uma das jogadas mais lindas que eu vi no futebol, pena que é impossível de descrever. Bom, o Flamengo jogou muito e animou demais a sua torcida. Parece que ela sabia que o time seria campeão brasileiro pela primeira vez naquele ano. O resultado? Empate! A Ponte era, realmente, um grande time e também jogou muito. Ao final do jogo, os flamenguistas vieram nos pegar e conduziram até o ônibus. Só um time de artistas poderia inspirar uma torcida a fazer aquilo. Quem quiser, aí estão os gols daquele jogo:

Pois bem, naquele 1980 o Flamengo foi campeão brasileiro (jogou uma segunda vez com a Ponte no mesmo campeonato e outro empate, de 1 a 1, em Campinas – este assisti com meu irmão. Nunes, de novo, marcou pelo Flamengo e Humberto para a Ponte).
No ano seguinte, o Flamengo foi campeão carioca, brasileiro, da Libertadores e Mundial, em 13 de dezembro, num jogo contra o campeão europeu, o poderoso Liverpool. Nessa final, o Flamengo passou o jogo inteiro, inteirinho, todinho, sem dar um único chutão. Só toques, dribles, tabelas, passes. Foi um dos maiores show já vistos. O outro time parecia amador. Já no primeiro tempo o Flamengo liquidou, com 3 a 0, dois gols de Nunes, um de Adílio e um show de Zico, de cujos pés saíram os 3 gols. Zico ganhou o prêmio de melhor da partida, um carro da Toyota, de modelo muito parecido com o De Lorean, do De Volta Para o Futuro. Veja os gols do jogo, com narração do novato Galvão Bueno.

Hoje Zico ainda tem o carro na sua garagem e quando entra nele, revive aquele ano, aquela decisão, aquela época em que convivia só com craques, com jogadores excepcionais. O carro do Zico é uma máquina do tempo que o leva, exatamente como o De Lorean, 30 anos atrás.
“Talqualmente” o De-Lorean e o Toyota do Zico, este pôsti me transporta 30 anos ao passado, um pouco mais, 31, àquele inesquecível domingo passado no meio de uma torcida, vendo um time inesquecível, ao lado de minha inesquecível e inspiradora santa mãezinha, amiga de todos, dos fracos e oprimidos às distintas senhoras. Dona Lourdes acolhia igualmente putas, bichas (não se usavam expressões como “gays” ou “homossexuais”), carolas e distintas senhoras. Era amiga de jovens também, como a Raquel, aquela que comecei a namorar no dia do jogo. Raquel tinha um lindo sorriso, era gostosinha e havia tempos gostava um bocado de mim, vivia me dando bola. Raquel sempre falava com minha mãe...
Ei... Será que aquilo foi arte da minha mãe?... Nunca havia pensado nisso: teria aquele convite para ir ao jogo no Rio sido uma armação da minha mãe? É claro que foi... Que safada!!!
Vou procurar a Raquel e, se achar, vou tirar essa história a limpo.

domingo, 11 de dezembro de 2011

A SOLIDÃO E A VACA QUE CAIU DO CÉU

O Fábio me ensinou que o diabo é esperto não por ser diabo, mas por ser velho. Estão certos o Fábio, o diabo e a milenar civilização chinesa. A experiência, que não se adquire sem o tempo, sem o correr dos anos, nos ensina o que é melhor para nós. Funciona como atalhos. Com o tempo tornamo-nos mais seletivos e sem vontade de fazer coisas que, de antemão, e por vivência, sabemos que não nos agrada. Não, não vou naquele bar para ouvir salsa e ver aquela gente dançando. Não me agradam a música e a dança. Não gosto de ver tanta gente sorrindo ao mesmo tempo. Bar de salsa é como o facebook: todos estão “felizes”. Sim, entre aspas, é claro: toda felicidade é entre aspas, especialmente aquela unânime. A felicidade é uma chatice.
A vida eremita tem vantagens incontestáveis. As coisas são como nós, e mais ninguém, queremos que sejam. E quando nos cansamos da solidão, basta sair da porta e procurar algum amigo, um daqueles que nunca desistem de você, por mais razões que tenham para isso.
Além dessas vantagens, as mulheres, ao menos as mais interessantes, enxergam certo ar enigmático nos homens solitários, um charme que as intriga. O solitário não é de qualquer uma, é mais difícil, e nisso reside um encanto. Mulheres interessantes percebem nesses seres obscuros um olhar de mistério e dor. Mulheres adoram curar a dor de um homem.
Mas nem tudo são flores na vida dos eremitas maduros.  O que parece significar uma escolha pode se tornar fuga. O que parece ser uma opção de vida pode esconder uma incapacidade. Hábitos supostamente saudáveis podem ser manias. O charmoso sábio pode ser nada mais do que um chato, um ranzinza, como Clint Eastwood em Gran Torino.
Antes que minha preocupada irmã me ligue, preocupada, de Los Angeles, Miami, Vegas ou seja lá onde esteja, para saber se estou bem, aviso: este não sou eu. Falo de Roberto, interpretado por Ricardo Darin, em “Um Conto Chinês”, que finalmente chegou a Brasília. Roberto está mais, muito mais, para o ranzinza do que para o charmoso. Solitário e dono de uma loja de ferragens, ele conta os parafusos de uma caixa de quinhentos, para ver se não foi enganado. E se, depois da terceira contagem, para ter certeza, percebe que há seis parafusos a menos, surta, liga para o fornecedor, perde a paciência. Paciência que também não tem com clientes ou com amigos.
O que fazer para sair dessa vida? Não leitor, ele não quer sair dessa vida. Metódico, não dorme nem antes nem depois das 23:00h em ponto. Mas o leitor esperto e inteligente (é claro, ou não estaria lendo este semi-humilde blógui) sabe que algo vai acontecer para mudar essa situação, afinal, estou falando de um filme. Mas o que poderia romper com esse padrão de vida que nos coloca como um manequim imóvel dentro de uma vitrine? (calma irmãzinha, estou falando do cara do filme, só dele) O que é preciso? Uma paixão avassaladora? Pouco provável, as mulheres são tão iguais, tão dominadoras, tão desejosas de ir a um bar de salsa... Então o que pode acontecer? Uma vaca cair do céu bem em cima da sua casa?
É mais ou menos isso o que acontece com Roberto (Ricardo Darin) em “Um Conto Chinês”, uma comédia, sim é esta a classificação oficial do filme. É uma boa classificação, afinal, tem o modelo meio que padrão de comédias: uma pessoa solitária e metódica, que não gosta de pessoas, especialmente de estranhos, se vê forçada a receber um chinês (outra cultura, outros modos) que não fala uma única palavra em espanhol. Ter um modelo padrão não significa dizer que não seja original.
É uma comédia, ainda que as piadas sejam extremamente delicadas e sutis em comparação com as comédias mais tradicionais. Tudo bem, é uma comédia, mas carregada de melancolia e de estranheza. É uma comédia daquelas que faz chorar (prepare-se, Fer), mas não de tanto rir.
Mas tenha certeza: nem o riso nem o choro virão de interpretações histriônicas de comédia ou de drama, mas da humanidade que o filme transmite. Darin, que se supera a cada filme, está magnífico, perfeitamente humano e convincente, como na comovente cena em que sua opção eremita é confrontada pela mulher que está interessada nele: ele parece explodir de desejo e angústia por dentro, embora sustentando a opção da solidão por fora.
A direção de Sebastián Borensztein é sutil e criativa. Ainda que baseado em modelo clássico de comédia, ainda que encontre fortes ecos do cinema de Jeunet (Amelie Poulain), ou em Gran Torino (o ranzinza em confronto com orientais), a mistura de tudo é original, sensível e criativa. A ambientação e as interpretações nos colocam lá dentro da casa de Roberto, tão eremita quanto ele, tão carente quanto ele.
Para acabar o pôsti, a cena inicial é uma pérola: num barco, um casal de chineses. Ele a pede em casamento e quando ela, feliz, aceita, uma vaca cai, do céu, sobre ela. Corte para a fachada de uma loja filmada de “cabeça” para baixo, afinal, ela está do outro lado do mundo: Buenos Aires. A câmera se vira, deixando a loja em pé, e lentamente invade a loja de ferragens onde está Roberto, contando parafusos.
O que pode nos fazer sair de um estado de espírito, de um padrão de vida e ir para outro? Uma vaca cair do céu? Sei lá! Mas que hoje eu volto ao cinema para rever Um Conto Chinês, ah, isso eu vou fazer.

domingo, 4 de dezembro de 2011

DOUTOR SÓCRATES


Sócrates morreu nesta madrugada e deixou o domingo com jeito meio xôxo. Mas antes de morrer, aliás, muito antes de morrer, antes, inclusive, de parar de jogar, Sócrates voltava a jogar no Brasil, trazido pela Ponte Preta! Sim, Dr Fábio, trazido pela Ponte Preta, numa articulação do Luciano do Valle, que não é meu tio, embora afirme isso. Mas acabou não jogando: antes de estrear, foi para o Flamengo, tal e qual aconteceu com o Ronaldinho, que viria para o Grêmio mas acabou ouvindo o canto da sereia. Só que na Ponte chegou a ser apresentado, vestir camisa e dar entrevista como jogador da macaca. Falando nisso, Raí, irmão do Sócrates, também vestiu a camisa da Ponte, e jogou, antes de ir para o São Paulo e ficar famoso no mundo todo.

Ouvi muito hoje que Sócrates foi muito importante para o futebol brasileiro. Mas sua maior importância não foi para o futebol. Foi, é verdade, um craque único, de estilo clássico, elegante, que celebrizou-se por fazer lançamentos decisivos de calcanhar. Participou, também é verdade, da melhor (ou uma das 2 ou 3 melhores) seleção de todos os tempos, pelo menos era a que jogava mais bonito, a de 1982, inesquecível no mundo todo mesmo sem ter ganho a Copa. Mas sua maior importância foi para o país, porque usou sua fama e seu poder junto às massas para lutar pela redemocratização do país. Para homenagear o Doutor, republico partes de dois posts publicados no ano passado, que falavam da incrível história do Cobra Parada Não Engole Sapo, que, como se sabe, foi um grupo cuja atuação, no início dos anos 80, mudou a cara de Brasília, do Brasil e, por conseqüência, do Mundo, no campo das artes, da política e da filosofia.

A incrível história do CPNES - Parte 6

Sócrates e o também jogador Afonsinho
Gilsão e o Doutor: O bar do Vadico era o reduto de seresteiros, boêmios e senhores da vizinhança, dentre os quais estava um famoso repórter esportivo de Campinas, o Renato Silva, que fazia, na Rádio Brasil, uma sensacional dupla com Sérgio Salvucci, comentarista dos jogos e âncora do programa esportivo. O bar era também o socorro de famintos da madrugada, e nessa condição estava o nosso estudante da UNICAMP, verde de fome. Aliás, verde não, porque é a cor do inimigo Palmeiras. Gilsão estava roxo de fome. Tomava a segunda cerveja, já meio alegre, e nada de vir o tradicionalíssimo sanduíche de pernil. Naquela noite havia só um chapeiro e muitos pedidos. Mas o astral do bar era bom, e Gilsão estava branco, suando de fome, mas com tanta alegria de viver (quem gosta de cerveja sabe do que estou falando) que chegou a pensar que mesmo que morresse de fome antes de o sanduíche chegar, morreria feliz.

Era prá lá de meia-noite quando Gilsão, tentando matar a fome com o cheiro de pernil que o bar exalava, ouviu o chapeiro gritar “olha o pernil da mesa 8”. Aquilo o deixou mais desesperado ainda de fome. Sabe quando você está super apertado, mas vai conseguindo segurar, mas quando chega pertinho da sua casa o negócio parece que vai sair? Era assim que ele se sentia vendo o seu gigantesco sanduíche de pernil sobe o balcão, à espera do garçom. Quintuplicou sua fome.

Nisso, entra no bar o Renato Silva acompanhado de dois magricelos altos. Os dois de cabelos encaracolados, um deles cheio de buracos na cara. Aquela visão fez o Gilsão engasgar a cerveja geladíssima que tomava. Olhou sua mesa e viu as 3 garrafas vazias, como a se perguntar se era o efeito da cerveja ou se ali realmente estavam entrando, e ocupando a mesa ao lado da sua, o Sócrates e o Casagrande. Os dois eram tão naturais àquele ambiente que mal foram notados, ou talvez aquele fosse um costume do Renato Silva, que, ficando junto ao gramado e entrevistando jogadores, era próximo o bastante dos jogadores para levar os mais boêmios ao Vadico. Naquela época não havia o patrulhamento sobre a vida pessoal dos jogadores como há hoje. E do jeito que o doutor Sócrates e o Casão gostavam de enxugar...

Gilsão, com um olho no sanduíche e outro nos seus ídolos, veio com aquela sua típica expressão de resmungo escandalosamente amistoso: “PÔ, MEU, eu não sou de tietagem, não, mas você vem sentar JUSTO do lado de um corintiano?”. “Corintiano! Viu o jogo?”. “Não, ouvi pelo rádio, o locutor disse que você fez um golaço”. “Golaço nada, até você fazia aquele gol”. “Como até eu? Tá me chamando de gordo?”. “Robusto”. Sócretes tem muito bom humor.

Casagrande tinha ido direto ao banheiro e o Renato Silva estava no balcão pedindo os sanduíches para os três. Enquanto isso e com o Gilsão quase desmaiando, o garçom finalmente pegava o sanduíche do balcão e punha na bandeja. Logo estaria alí, na mesa, à sua frente.

Com a proximidade do momento de abocanhar aquele maravilhoso pernil, Gilsão sentiu a boca se enchendo de saliva; estava literalmente babando quando Renato Silva volta à mesa ao lado e disse que ia demorar um pouco, que o pernil acabou e iam buscar “lá na casa deles”, que ficava “logo ali”.


Nisso o garçom vem chegando com o sanduíche do Gilsão.

Casagrande chega do banheiro, muito agitado, e senta à mesa.

O garçom põe o sanduíche na mesa do Gilsão.

“Será que demora muito?”, perguntou Sócrates, olhando, sem querer, para o sanduíche do Gilsão.

Gilsão, mesmo morrendo de fome, gostaria que a conversa com o ídolo rendesse mais e pensou rápido: o sanduíche é grande, já vem dividido em dois e metade já aplaca a fome e me impede de morrer.

“Pô, rapaz, eu tô morrendo de fome”, comentou o doutor Sócrates.

Foi do que o Gilsão precisava. Ato contínuo emendou ao ídolo: “quer metade do meu?”

“Quero”. “Quero”. Não se iludam, leitores ingênuos. Não foi Sócrates repetindo. Um “quero” foi do Sócrates, sim, mas o outro, simultâneo, foi do Casagrande.

“Fudeu!”, pensou Gilsão, que congelou por alguns segundos. Como recusar a metade a um dos dois? Falar “nada disso, eu ofereci só prá um”? Por instantes Gilsão pensou em dar uma de louco, agarrar seu sanduíche e fugir correndo dalí. Suava de fome. E foi chorando por dentro e entoando para si, como um mantra, “sou um imbecil, sou um imbecil” que o Gilsão esticou os braços, oferecendo uma metade para cada um. Casagrande caiu em cima na hora. Sócrates ainda foi polido: “Não, você vai ficar sem nada?”. “Não tem problema, eu jantei bem”. “Então quando vier o nosso, um é teu”. “Tranqüilo, dá prá esperar”.

Mas não deu. Meia hora depois, Gilsão, fraquíssimo de fome, viu Sócrates, Renato Silva e Casagrande ficarem embaçados, escuros, até que tudo se apagou. Mas antes disso deu tempo para o Gilsão falar, enquanto os dois comiam. Falou do interior, de seus antepassados do norte; disse que nunca os conheceu, nem à região, mas que sonhava com aqueles rios, com Juína, com os barcos; disse que "Ita" são os barcos, que são chamados assim porque seus nomes sempre começavam assim: Itaimbé, Itaberá, Itapuca, Itagiba, Itapuhy, Itassucé. Para ilustrar, cantou, com Renato Silva ao violão, uma música de Dorival Caymmi que ele adorava, “peguei um ita no norte”. Gilsão também cantou o clássico do Belmonte, “Saudade da minha terra” (de que me adianta, viver na cidade, se a felicidade não me acompanhar) e “O bêbado e o Equilibrista”, do João Bosco e Aldir Blanc (lembra dos parágrafos iniciais deste post?). Sócrates se emocionou e começaram a falar de política. Gilsão criticou o pessoal do futebol, que tinha muito poder e influência, mas não era politizado.

“Olha aqui, eu vou te falar uma coisa prá você. Não sei se você tá me entendendo. Ôrra, meu, vocês não sabem a força que têm? Imagina o que vocês podem fazer contra essa ditadura. Ôrra meu! É o cúmulo do absurdo você não fazerem nada!”.

Casagrande riu: “O que a gente pode fazer jogando futebol?”. Gilsão, ainda consciente, mas sem resposta, percebeu que tinha exagerado na sua retórica, mas cravou: “sei lá, não sou eu que sou jogador!”. Renato Silva e Casagrande riram muito, aquele riso solto. Sócrates não. Parece ter ficado pensativo. Estava nascendo ali, naquele instante, dentro da cabeça do doutor, a Democracia Corintiana.

A incrível história do CPNES - Parte 7

No capítulo anterior você conheceu o Gilsão e o viu colocar umas escaraminholas na cabeça do Dr. Sócrates, antes de desmaiar de fome.
Pois saiba que quando ele abriu os olhos, viu que estava num hospital, com soro no braço. O Doutor Sócrates dava ordens às enfermeiras, mais interessadas no autógrafo do que em ouvir suas prescrições. Quando se despediram, Gilsão agradeceu muito, mas Sócrates disse que ele é quem deveria agradecer.
Osmar Santos ao microfone, com Sócrates, FHC, Casagrande e
Adilson Monteiro Alves (diretor de Fuebol do Corínthians)

Depois daquilo, Sócrates passou a ser um importante ativista político, além do brilhante jogador que sempre fora e, nisso, o Gilsão, emérito perna de pau, em nada influenciou. Sócrates liderou o primeiro movimento efetivamente popular que ocorreu em toda a ditadura. Nenhum outro movimento político tinha colocado o chamado “povão” na história. Naquele início dos anos 80, em plena ditadura militar e justamente no meio mais atrasado e conservador, o futebol, e ainda por cima num dos dois times mais populares do país (o outro é a Ponte Preta ou o Flamengo, não estou bem certo), nasceu a chamada Democracia Corinthiana (o nome foi dado por Washington Olivetto), movimento liderado por Sócrates e diretamente apoiado por Wladimir e Casagrande, os maiores ídolos do time. Foi um período da história do clube onde as decisões importantes, tais como contratações e regras da concentração, eram decididas pelo voto, ou seja, era uma forma de autogestão. Era um movimento interno do time, mas cuja intenção era, evidentemente, suas repercussões e influências externas. O Corinthians foi o primeiro clube a veicular dizeres publicitários na camisa, como "diretas-já" e "eu quero votar para presidente". Isso no período da ditadura militar, quando os movimentos sociais começavam a se rearticular para a instituição de uma democracia.

Vale do Anhangabaú no comício pelas "Diretas Já"
 Os militares pediram moderação ao clube. Imaginem o impacto que tinha aquilo: a camisa do Corinthians pedindo democracia... Os resultados disso? Imensa participação popular no movimento das Diretas Já, especialmente em São Paulo e, para o Corinthians, muitos títulos e impressionantes resultados financeiros.

Bom, foi isso. ADEUS, DOUTOR!!!

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