
Assim como podemos
ouvir uma música que adoramos umas mil vezes, também vemos alguns filmes muitas
e muitas vezes... Como? Você não vê filme repetido porque já sabe o que
acontece? Larga disso, rapá! Saber o que acontece num filme é o de menos. Um filme
não é feito só para contar que o Nicolas Cage queria achar um tesouro, foi lá,
achou e, de quebra, pegou a Diane Kruger. O filme, pelo menos os bons, entram
dentro da gente, desafiam nossa mente e emocionam. Claro, nem todo filme é
assim. A maioria dá pra ver uma vez só e olha lá. Mas quando um filme é bom
mesmo...
O problema é
que fazer um grande filme não é pra qualquer um. Fazer com que a plateia entre
no filme e jogue o seu jogo exige domínio da linguagem do cinema para dar a
quem vê o máximo de emoção, suspense e surpresa – enfim: diversão.

Mas, como
aqui no Cobra Parada a gente mata a
cobra e mostra o pau, vamos logo aos tais recursos que estão por trás de Curtindo a Vida Adoidado. Quem não
quiser se chatear com linguagem cinematográfica, tchau! Aos que ficam, boa
viagem. Em tempo: não vou falar das qualidades mais óbvias, como a atuação
genial do protagonista ou a magnífica cena da parada, ok? Só destaco algumas
cenas que são exemplo do domínio do diretor e roteirista John Hughes sobre os
recursos e de sua criatividade para encontrar sempre a melhor forma de montar
uma cena para que ela dê o maior prazer possível à plateia.

§ Não é filme de adolescentes, é sobre adolescentes. Seus dilemas não são preguiçosos, tipo ‘com
quem vou ao baile?’. Os dilemas ali são os que carregamos por toda vida. O
filme ensina que, para falar de algo profundo, não é preciso ser chato.
§ Texto primoroso. Não sobram nem faltam palavras. Tudo que é dito se refere aos
dilemas de que trata o filme ou serve à trama. Há cenas em que nada é dito,
porque não precisa, como a da bolsa de valores, onde os gestos ironizam o
símbolo do capitalismo selvagem e questionam seu sentido, ou a do museu, que...
Depois falo dela.

Melhor parar de
falar sobre isso, porque as imagens do filme valem muito mais do que as quarenta
e cinco palavras deste parágrafo. Veja essa tomada, aí do lado, da cena do museu;
§ Montagem e roteiro:
1. Ferris deitado, péssima
aparência. Seus pais o mandam ficar na cama, mas ele diz que tem prova e quer se
dedicar aos estudos para “poder desfrutar de uma vida de trabalho”. Corte
para os pés de uma adolescente, um deles batendo contra o chão, gestual de ‘você não me engana, seu safado!’, depois
para as mãos na cintura, dedos nervosos. Hughes usa 4 segundos para nos contar,
de forma criativa, que Ferris está mentindo, que sempre faz isso e que sua irmã
sabe. Dizer muito, com muito pouco, e deixar a interpretação pra gente é dominar
a linguagem.
2. Ferris desliga o
telefone, volta ao assunto que importa, seu amigo, e diz à câmera: “aposto que neste momento o Cameron está no
carro, decidindo se vem ou não”. Corta, close em Cameron, no carro, decidindo
se vai ou não: “ele vai ficar me ligando,
vai ligar até eu ir!”. Sem ser explicadinho, sem fala do tipo “somos amigos
há 10 anos e eu te conheço demais...”. São 15 segundos de falas curtas e
cortes, e sabemos o quanto são amigos, o quanto eles sabem como o outro pensa e
faz e, de quebra, trás a plateia para dentro da relação.
3. Rooney, o
inspetor, foi a um bar para flagrar Ferris e provar que ele não está doente,
mas não o encontra. Na TV, em segundo plano, um jogo de beisebol. Rooney abaixa
a cabeça para limpar os olhos enquanto, na TV, a câmera mostra Ferris pegando
uma bola que foi rebatida e caiu na torcida. Quando Rooney levanta a cabeça, a
TV volta ao jogo. E pronto, a cena passa para os amigos no jogo e acaba, filme
que segue... O que esta cena tem de mais?... Deixa pra depois.

5. Cenas no fundo. Mais um exemplo de não dar tudo mastigado e deixar a plateia ver as coisas por si. Enquanto uma cena está acontecendo, algo pode estar acontecendo lá atrás. Na cena em que deixam a Ferrari no estacionamento, Cameron está preocupadíssimo com o carro do pai, não gostou do cara que recebeu o carro no estacionamento. Ferris o acalma. Saem e sobem a rua. Veja ao lado: lá atrás, sem que seja dado nenhum destaque, aparece o rapaz saindo com a Ferrari . Outra: na delegacia, a irmã de Ferris discute com um drogadito, Charlie Cheen (sua estreia no cinema), cada um de um lado do sofá, bem separados. Depois, em outra tomada, a mãe está na sala do delegado. Quando ela se levanta, pelo vidro da sala podemos ver, bem la no fundo, a filha aos beijos com o tal. O filme confia na observação da plateia, não precisa conduzi-la pela mão. Não precisa enquadrar tudo o que é importante. Deixa a gente descobrir sozinho! E quando a gente vê aquilo ao fundo, nos sentimos bem, tipo "peguei", "eu vi aquilo"
6. Ferris quer pegar
a Ferrari do pai de Cameron. “Ferris, meu
pai ama este carro mais que a própria vida”. Ferris responde “alguém com prioridades tão erradas não
merece um carro de luxo”. E pega o carro. Um luxo de texto! Não precisa
explicar mais nada, aqui se falou de materialismo, exibicionismo, falta de amor
do pai e de mais um tanto de coisa...




Curtindo a Vida Adoidado não é popular por contar uma
história legal. É porque é cinema de primeira. E não é o caso de memória
afetiva, não, porque não vi o filme na época. Não fui destes que o acompanhou sessões
da tarde afora. Eu era um intelectualoide que desprezava entretenimento, ainda
mais ‘juvenil’.
Ao corajoso e persistente leitor que chegou até aqui
e que quer a receita da felicidade e da realização pessoal, sugiro: reveja o
filme. Ele vai te ajudar muito mais do que qualquer coach charlatão, desses que
brotam feito mato por aí. Enfim, sabe
a ilha deserta para onde você só pode levar 10 filmes? Na minha mala, tem Curtindo a Vida Adoidado e mais nove.
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