quarta-feira, 28 de agosto de 2019

FERNANDA YOUNG NÃO MORRE MAIS


Senhoras e senhores, trago boas novas...

Fernanda Young morreu. Porém, ainda que muita gente tenha lido algo sobre a morte da artista, duvido que alguém, dentre os brasileiros comuns, tenha dado sequer um suspiro, quiçá tenha deixado escorrer uma lágrima, ainda que tímida. Não se tem a noção da importância dessa rara mulher. Por isso, a citação ao Cazuza, lá no início, que agora repito:

Senhoras e senhores, trago boas novas...

Quem morreu era muito mais do que uma moça bonita e inteligente que causava com suas opiniões cortantes e ácidas no programa Saia Justa, do GNT. E mesmo que muitos tenham lido nas matérias de domingo que ela foi criadora e roteirista da série Os Normais, ninguém se dá conta do que isso significa. Mas fiquem tranquilos, senhoras e senhores, especialmente as senhoras: trago boas novas.
Mas antes tenho que esclarecer uma coisa, logo de cara: não sei nada sobre quem ela era, não sei se tinha Instagram, Twitter ou o diabo que seja, não a via há milênios e não imagino o que andava fazendo, mas ter criado e escrito Os Normais é suficiente para que eu venha a este empoeirado blogue para gritar que Fernanda Young foi a pedra fundamental do surgimento da nova mulher urbana brasileira.

O brasileiro detesta se aprofundar nas coisas e só conhece o que vê à superfície. ‘Sabe aquela série da Fernanda Torres com aquele cara engraçado, Luiz Fernando alguma coisa?’ perguntaria o brasileiro típico. ‘Eles são demais, não são?’. É assim que a banda toca por aqui. Ninguém imagina que aquilo foi criado por alguém e escrito por alguém, no caso, a mesma pessoa.

Como?

Foi ela, a Fernanda Young, que inventou aquilo tudo, ela foi a roteirista que te fez rir tanto.

Roteirista, é?

Sabe o que é isso?

Sei, deve ser quem digita as tiradas geniais do Rui. Aquele Luiz Fernando é engraçado demais!

Nada contra o Luiz Fernando Guimarães, claro. Ele foi espetacular, deu vida e alma ao Rui e certamente é mesmo responsável por muitas tiradas. E nada também contra o marido de Young, o Alexandre Machado, que também assina criação e roteiros, mas todo mundo sabe que era ela que encabeçava a coisa toda. Aquela coisa toda! Os Normais não foi uma comédia, foi uma revolução que moldou o comportamento da nova mulher brasileira e fez de Fernanda Young uma das pessoas mais influentes do século 21 no Brasil.

Você não tinha se tocado que a série não era só engraçada, nem que não era sobre o Rui ou sobre o casal? A música de abertura, “você é doida demais, doida, muito doida, você é doida demais”, do Lindomar Castilho, não deixa dúvidas: a protagonista é a Vani (o grande trabalho da vida de Fernanda Torres). A série é sobre a nova mulher brasileira que surgia, a mulher do século XXI, uma mulher que se desgarrava, confrontava o machismo e fazia seu caminho. Veja: o machismo de Rui não era aquele machismo de almanaque, o machismo clássico e facilmente identificável. Ele era o machista que eu também era (talvez ainda seja), o machista light, o machista que não se imagina machista.

Rui só pensava como homem, oras bolas! A mulher tem que entender isso! Ele só queria se dar bem, se divertir, beber, dançar, eventualmente comer alguma mulher, inclusive a sua, mas sempre com uma inocência meio sacaninha e engraçada. Todo mundo adorava o Rui! E foi aí que Fernanda Young mais acertou a mão: Os Normais ridiculariza esse machismo ‘inocente’ quando o confronta com uma mulher que também tem desejos, que também quer se dar bem, tomar um porre, transar e se divertir. Ué, não pode? E o confronto nunca se deu de forma panfletária – o humor é a mais poderosa forma de transformação, muito mais que a sisudez e as boas intenções dos engajados.

Enquanto, por 3 anos, todas as semanas (e depois em mais 2 longas), o machismo de Rui era exposto ao ridículo, Vani ia conseguindo o que queria, ora se recusando a ser objeto de desejo, ora, quando lhe convinha,  sendo objeto de desejo, tendo voz ativa e controle de suas vontades e de seu caminho. Fernanda Young definiu, por meio de sua avatar Vani, que a mulher teria desejos independentes dos do companheiro e teria atitude para dirigir sua própria vida; se seu homem quisesse continuar com ela, ok, ela gostava mesmo dele, mas ela continuaria sendo daquele jeito, nem que tivesse que se impor sendo doida, muito doida, doida demais!

E foi por meio do humor e de personagens cativantes em situações inusitadas que Os Normais veio dando suas porradas – e não era só porrada em homem, não, era também na mulher cativa, compreensiva, resignada, uma porrada no pensamento conservador – tudo isso, repito, sem feminismo de guerrilha, mas com humor e espirituosidade. E de tanto ver uma nova mulher se impondo de forma tão avassaladora, a mulher urbana brasileira foi se moldando, se construindo. 

Eu duvido que minha amiga Fernanda tivesse saído de casa, vindo à Brasília e se tatuado toda (por ‘se tatuado toda’ me refiro às partes visíveis, viu), enfim, se tornado uma nova mulher, se não tivesse sido fã da Vani. Duvido até que a Aline, minha última esposa (última por enquanto), tivesse resolvido cair fora para se encontrar se não tivesse visto tantas vezes a série.

Eu poderia pensar em milhões de exemplos, mas acho que um estudo antropológico sério certamente irá comprovar a importância dessa popular série no empoderamento da mulher urbana brasileira (desculpe, mas tive que usar a expressão da moda).

Mas a Fernanda Young não parou por aí, não. 

Depois criou e escreveu Minha Nada Mole Vida, a mais engraçada comédia brasileira do todos os tempos. Fazer rir, ainda que sem nenhuma outra intenção, já é, por si só, uma das mais nobres atividades deste mundo. Já vi várias vezes todos os episódios das 3 temporadas e não deixo de rir demais todas as vezes. Lá por 2012, recebi meus amigos uruguaios, os Pinchus, em minha casa, em Brasília. Varamos uma noite inteira gargalhando com Jorge Horácio By Night (o programa dentro da série) vendo episódios atrás de episódios.
Enfim... Fernanda Young morreu, mas, de alguma forma, não...  

Senhoras e senhores, trago boas novas...
Eu vi a cara da morte e ela estava viva... Viva!
Fernanda Young está viva em cada nova mulher brasileira!

sexta-feira, 21 de junho de 2019

FORA DE SÉRIE – A VINGANÇA DOS DEUSES


Subindo a escada rolante que dá acesso às salas de cinema, um casal à frente:

Ele: Tanto faz. Nem sei que filme tá em cartaz.
Ela: Eu tô muito a fim de ver uma comédia, estão falando muito bem.
Ele: Sobre o quê?
Ela: Adolescentes, amizade, colégio.
Ele: Não mesmo, de jeito nenhum.

Como é que alguém pode avaliar um filme não pela experiência que ele proporciona, mas pela faixa etária dos protagonistas? Tem que explicar pro sujeito que um cara de 40 pode ver um filme sobre adolescente, até porque ele já foi um, e mesmo que não tenha sido (vai que pulou de fase no jogo da vida), qualquer um pode imaginar como seria um adolescente. Além disso, um filme de adolescente pode abordar o drama de um adulto ao se referir aos sonhos da juventude, que terão sido concretizados ou não na fase adulta. Enfim, um filme sobre adolescente pode ser ótimo ou péssimo, assim como uma aventura pode ser eletrizante ou chatíssima. Mas o cara não quis nem saber – era sobre adolescente e acabou.
E nem é ‘só’ por tudo isso que o imbecil (isso não é juízo de valor, é informação) devia levar mil chibatadas. Como é que o cara, que nem sabe que filme quer ver, nem ao menos cogita ver o filme que a namorada quer, ao menos por cavalheirismo (ih, o que é isso?)? Que tipo de homem é esse?
Ali, naquele momento, subindo as escadas, o casal dois degraus acima, desejei, do fundo do meu coração compreensivo e sem maldade, que os deuses do cinema mandassem cair um raio bem na cabeça do sujeito e espalhasse seus miolos por
toda a escada. Mas os Deuses do Cinema agem de forma menos impulsiva e mais criativa, embora não menos implacável com os estúpidos e pobres de espírito. Qual o castigo que impuseram ao imbecil? A comédia Fora de Série, que ele não quis ver e não deixou a namorada ver, mas que eu vi, não é só uma comédia, é um puta dum filme, um filme filmaço! O tipo de filme que proporciona a qualquer um, de adolescentes a velhos, de homens hétero a mulheres idem, de amantes de filmes de ação aos da nouvelle vague, e todas as variações entre essas categorias, talvez até ao idiota da escada, uma experiência empolgante, divertidíssima, sensível, inteligente, de visual extasiante e... sei lá mais como classificar.
Sem deixar de ser comédia, e daquelas feitas para você rir mesmo, é um filme sensível e empolgante sobre amizade. O roteiro é inteligente, cheio de surpresas e equilibrado e a direção... Bom, aí tem outra treta...
Quando eu soube que a direção era da estreante Olivia Wilde, a Treze do House, aquela mulher maravilhosa de olhos fulgurantemente verdes que desperta a libido de um monge tibetano; enfim, quando eu soube que o filme era de uma atriz cuja única função é encher a tela de beleza, eu torci meu nariz machista sexista idiotista até a cartilagem.
E os Deuses do cinema me deram uma porrada! A direção é coisa de gente que sabe tudo de cinema, que usa de forma criativa tudo que é recurso cinematográfico para dar ao público, a cada cena, a sensação mais parecida possível com a do personagem – e isso permite experiências deliciosas ao expectador. Soma-se a isso um bom gosto impressionante – tudo é lindo de ver. 
Só 4 exemplos: 1. A viagem sob efeito de algo que tomaram, quando se transformam em bonecas Barbie; 2. As duas ‘festas’ bizarras e delirantes a que vão por engano antes da que queriam ir; 3. O absoluto silêncio que se faz numa festa pirada e barulhenta quando uma delas vê o cara que tá querendo; 4. O mergulho na piscina quando a outra procura alguém por baixo da água, numa experiência visual e musical impressionante. Ah... O final... Coisa que Tarantino aplaudiria, talvez invejasse.
Ótimos personagens secundários... Esse ‘secundários’ é péssimo, porque, por exemplo, uma menina ‘secundária’ que aparece sempre, e a função dela no filme não é outra senão aparecer, pode ser tudo, menos secundária, a contar pelos picos de riso que ela sempre arranca da plateia ao aparecer. Tem o entregador de pizza que aparece numa única cena, sensacional. E tem o doidinho rico, o cara que quer dirigir peças, ... Aposto que daqui a 15 anos, quando já for considerado clássico, ao revermos Fora de Série, vamos nos espantar com o tanto de atores famosos que começaram ali – porque não tem um ator que não roube a cena quando aparece.
                                                       
Dirigir comédia é muito mais difícil do que parece, principalmente por causa do chamado timing da piada – se uma resposta (fala ou gesto) dura meio segundo a mais ou a menos do que o exato, perde-se a piada. Mas a direção da Treze tem um timing cômico perfeito, tudo sempre funciona. E quando ela capricha em algum efeito para reforçar o que sente o personagem, o faz sem perder a naturalidade do ator e a energia dramática ou cômica. O relacionamento entre as protagonistas nerds e o resto da turma vai evoluindo de forma perfeita, os estereótipos sendo quebrados um a um, permitindo ao público que ria e se emocione ao mesmo tempo, até tudo se juntar no desenlace final.
John Hughes (Curtindo a Vida Adoidado, Clube dos 5, etc) deve estar orgulhoso lá em cima, ao ver um filme que, como os dele, apresenta conflitos, amores e relacionamentos de forma tão natural e calorosa, que a gente acaba se transportando à escola, revendo aquela gente que para sempre mora na nossa memória e no nosso coração.  
P.S. Menina da escada, se por acaso você estiver lendo este pôsti, e neste caso certamente você se reconhecerá e perceberá que aquele sujeito não te merece, saiba que estou procurando companhia para rever este filme. É Fora de Série!

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

MORREU BIBI... E DAÍ?


Pois é... Bibi Ferreira morreu! E daí? Idosa, 96 anos, teve uma morte que não se pode chamar de surpreendente, uma morte sobre a qual não haverá quem diga “coitada, né, morreu tão nova!”. Uma morte que veio na sequencia de grandes tragédias...

- Na primeira, morreram mais de 300 pessoas de forma totalmente inesperada (inesperada para elas, não para a Vale, como agora se sabe), em meio a um mar de lama pesada;

- Depois, 10 garotos que viviam o sonho de ser alguém no futebol e de conseguir dar uma boa casa e um bom carro para os pais, estavam, agora literalmente, sonhando no momento em que uma fumaça tóxica os sufocava até a morte (pelo menos preferimos acreditar que morreram assim, sem conscientemente sentirem-se arder).

- Finalmente (é o que esperamos), calou-se uma voz que fazia parte de nossas manhãs (ao menos das minhas), a voz de um cara gente fina demais, uma cara muito importante para o Brasil. E se calou justo quando ele podia estar improvavelmente escapando de uma queda, mas foi atropelado pelo helicóptero que fora abalroado por um caminhão. Quer algo mais improvável? Sua morte é como se uma daquelas chuvas do Rio tivesse caído sobre o sol, o apagado e nunca mais fosse haver uma manhã.

Isso tudo, sim, é que é relevante, não a morte de uma mulher de 96 anos, mulher da qual, inclusive, a imensa maioria das pessoas nem imagina quem seja. Mas é justamente sobre a Bibi que quero falar, digo, escrever, e o faço sem corretor, porque teatro é ao vivo... Foi sua morte, não prematura nem surpreendente, que me compeliu a publicar este pôsti neste semidesértico blógui.

Morreu Bibi Ferreira!

Caralho! Sabe o que descobri hoje? Que ela era meio que uma mãe para mim! Foi ela que enfiou essa coisa nas minhas estranhas entranhas; essa coisa da qual nunca pude, e nem quis, fugir; essa coisa que também não precisei buscar: entrou em mim desde que vi a diva no palco do Teatro São José, no bairro do Taquaral, em Campinas, interpretando Joana, amante de Jasão, na peça Gota d’Água, lá pelos idos de 78, 79... O teatro, que nos anos 50 e 60 havia sido um cinema, hoje é uma igreja evangélica. Nada contra... Mas se deus já está em todo lugar, pra quê ocupar um tão raro espaço do teatro? Na verdade, tudo contra.

Só sei que aquela atuação foi um petardo na minha alma, me fez ver que a vida era muito maior do que aquilo que meus poucos dois olhos podiam ver; Bibi me deu mais uns trinta olhos, sério mesmo! A dimensão emocional daquela atuação me colocou no teatro, me despertou este Alien que eventualmente sai de mim como saiu da barriga do cara no filme.

Bibi não era uma atriz espetacular, era muito mais que isso. E nem vou falar da extraordinária cantora, das décadas e décadas de atividade em altíssimo nível, da diretora e sei lá mais o que ela era. 

Não se tratava somente de sua apuradíssima técnica de encenação, da incrível projeção de voz ou do pleno domínio de palco – nada disso é pouco, mas dane-se isso. O caso é que nada disso, que já a faria uma enorme atriz, nada disso se comparava ao cão feroz que tinha dentro de si, ao enorme lobo que uivava em sua alma e se projetava como uma onda gigante quebrando sobre a plateia.

Vendo aquela inesquecível amante de Jasão no palco, senti um baque no peito, a vida latejando. Queria começar a minha vida...

Morreu Bibi Ferreira, uma força da natureza.

segunda-feira, 22 de outubro de 2018

LEGALIZE JÁ – O AMOR EM TEMPOS DE CÓLERA


Um grava fitas cassete, não quer tomar o coquetel e por isso tem pouco tempo de vida; o outro vende camisetas de bandas famosas de punk e hard rock na rua, é expulso de casa e a namorada está grávida. Além de serem dois ferrados, mais uma coisa em comum: “a polícia atrás deles e eles no rabo dela”. Skunk é negro e pobre - polícia nele; Marcelo ouve "ói o rapa" e sai correndo, carregando o varal de camisetas. Assim eles se encontram; na confusão, o caderno em que Marcelo escreve versos fica com Skunk, que procurava letras para suas bases de rap.


Está em cartaz Legalize Já – Amizade Nunca Morre. O subtítulo, insuportável mania brasileira, aqui tem uma função: mostra que o objetivo do filme não é fazer apologia da legalização da maconha ou contar a história da banda polêmica e porradona. Aliás, quando a banda se forma mesmo, o filme acaba. Quem diria que a origem do Planet Hemp daria um tocante filme sobre amizade e amor? Amor Ágape, diria o Serjão, para fazer diferença entre o amor espiritual e o desejo físico, que caracteriza o amor Eros. No caso, vale mais falar do amor Philos, o da afinidade mental e cultural.

Enfim, o que importa é que o filme é um carinho na loucura, uma trégua nestes tempos de injustificável cólera – só de mencionar que a cólera é injustificável, haverá reações coléricas, aposto. Dane-se! Legalize Já é um filme humano, demasiadamente humano.


Apoiados por Brennand, o argentino dono de um boteco no centro sujo do Rio, a amizade vai se sedimentando, tal como a ideia do que querem dizer com a música. 


Apoiado num ótimo quarteto de atores (além da dupla, tem o Brennand, delicioso personagem do ator argentino, e a namorada de Marcelo), o filme evolui, ora com cenas densas, ora com bom humor - engraçadíssima a cena em que Marcelo, aterrorizado, vê um clipe com algo tipo boquinha na garrafa na TV da loja em que está trabalhando. Ah, é claro: tem boa música – além da trilha, as cenas musicais são delirantes – os atores estão perfeitos nos vocais e gestual.

Quando a banda apenas começava a ganhar estrada, aí termina o filme, a morte de Skunk retratada com delicadeza, numa sequência final tocante e inteligente. No ótimo take final, camisetas do Planet Hemp num varal, dizem por si só sobre a vitória de Skunk. O filme é uma homenagem feita pela ótica do sobrevivente, Marcelo D2, que participou da produção e diz “o Skunk foi um anjo que passou na minha vida e mudou ela completamente, eu vivo um sonho que não é meu. Isso tudo aqui não era para mim, era para ele'.


Skunk, o verdadeiro
O resto é história, é o Planet Hemp, é Legalize Já, o triunfo do amor e da amizade, da beleza e da justiça sobre o dragão da maldade. E como isso, disparadamente, é o que mais importa, vou rever o filme mais uma ou duas vezes nesta semana insuportável...

domingo, 7 de outubro de 2018

O CÉU DE NILCE E AMELIE TEM MAIS ESTRELAS QUE O DE GALILEU



Amelie era uma cachorrinha mui da sui generis: gostava de pessoas, até de companhia, mas não era tida a abraços, muito menos a colo. Não gostava de contato físico. Desde pequeniníssima, só mamava na Lilica quando os irmãozinhos deixavam suas tetas e o caminho ficava livre.

Sabe o Ricky Gervais, no Ghost – Um Espírito Atrás de Mim, que é um dentista que escolheu a profissão por ser a única em que o cliente não pode falar enquanto ele trabalha? A Thea Leoni o convida a ir a uma inauguração, diz “vai ser legal, vai ter muita gente”, “agora mesmo é que não vou”, “não gosta de multidão?”, “não, nem das pessoas que a compõem”. Então, assim era a Amelie. Ficava no nosso colo, o colo dos donos, não mais que dois minutos e saía logo pro seu canto. Mas no colo da Nilce, uma amiga nossa, a Amelie ficava. E ficava um tempão! Esquecia da vida...

A gente sempre pegava a Nilce para sair, ir a um restaurante ou ao cinema. Chegando em seu prédio, ligávamos e ela descia, algumas vezes com uma bolsa bem maior que a comum. “Gente, tô levando umas roupas, vai que vocês me convidam pra dormir na casa de vocês”. Mesmo que a gente não convidasse, ela acabava ficando em casa! Claro, ela precisava ter com quem conversar! Porque, se tem uma coisa verdadeira nesta vida, é que a Nilce falava! Santo Deus, Virgem Santíssima! Ela falava pelos cotovelos, pelos joelhos e por tudo que é articulação. Sabe gente que não consegue pensar em voz baixa? Esta era a Nilce, uma pessoa que tinha tudo para ser insuportável... mas não conseguia. A gente gostava muito dela... E a Amelie também. Elas se identificavam. Um dia, ela foi pra casa dela e a Aline reclamou, “dá uma saudade da Nilce, não dá?”. O pior é que dava mesmo! Como é que pode?

Muito antes desse tempo, mal nos conhecíamos, e ela chegou pra Aline e disse que minha bunda era gostosa... Imagina, leitor desavisado, alguém elogiar sua bunda para sua namorada... Mas até uma coisa dessa ela fazia com simpatia. Claro que alguém que elogia a bunda da gente, ou melhor, alguém que elogia especificamente a minha bunda, merece um lugar no céu.

Quando víamos TV em casa, a Aline dormia logo e a Nilce ficava falando, é claro. “Não precisa responder não, viu, Moacir, pode prestar atenção no filme, que eu não ligo”, e continuava falando. Aquela mulher tinha algo inexplicável, um jeito de ver as coisas, um jeito espontâneo, uma alma de silicone, que pode esquentar o quanto for, que não queima, não machuca. A Nilce fazia a gente se sentir bem. E a Amelie lá, quietinha, no colo dela. Cachorro entende a alma das pessoas.

Nilce não cobrava nada, não exigia isto ou aquilo de ninguém, não criava expectativas e, assim, nos deixava absolutamente à vontade para exercermos nossas esquisitices como bem entendêssemos. E isso não é pouco! Parece que desfrutava cada minuto, que botava horas no colo, que alentava dias... Ela transitava na periferia do óbvio. Enfim, não era muito deste mundo, não.

Amelie se foi há pouco. Logo em seguida, a Nilce a seguiu. Ou foi o contrário? Nem lembro mais. 

Que todos os cachorros merecem o céu, já sabemos, mas onde eles ficam por lá? Será que no céu existe um lugar específico para gente muito especial? Ok, as leis recebidas na tábua de Moisés, e sei lá mais que outras leis que inventaram para classificar as pessoas na hora da travessia, dizem que quem as segue, vai para o céu. Digamos que isso seja verdade, e espero mesmo que seja. Mas, venhamos e convenhamos: imagina que porre seria ficar a eternidade inteirinha ao lado daqueles que apenas não pecam. O papo seria a bem-aventurança eterna, o cultivo de lírios do vale, o triunfo do bem sobre o mal, todos desfrutando de frozen iogurte e saladas com sementes de chia e linhaça, que servem de graça no céu. Meu Deus, me poupe!

Estou convicto de que o céu guarda um lugar específico para gente que é especial demais e que faz este mundo ser mais gostoso de ser habitado. É neste lugar que a Nilce deve estar, com a Amelie no colo, esperando por aqueles de quem ela se cercava.

Saiba, cara Nilce, que pretendo te fazer esperar muito, muito, muito tempo, ok? Por enquanto, vai conversando aí com a Amelizinha – ela não vai te responder nada, mas estará adorando te ouvir.

domingo, 16 de setembro de 2018

VIAGEM ALUCINANTE: A TÁBUA DE ESMERALDA

Pedi você pra esperar 5 minutos
Porque você não sabe, você não sabe, você não sabe e nunca vai saber...
(será que ela não sabe que eu fico acordado pensando nela, todo dia toda hora, apressado, pensativo, desconfiado, olhando pra todos os lados)
Errare humanum est
Já consultei os astros (eles são discretos e silenciosos, são pacientes, assíduos e perseverantes)
Ela já se encontra a caminho voando na sua nave maternal feita de um metal miraculoso
Com muito amor e flores e música e música
Olha que rosa lindo, azul turquesa se desfolhando sob os singelos cravos
Tu terás por esse meio a glória do mundo e toda obscuridade fugirá de ti
Eu vou torcer pela paz, pelo bem estar, pela compreensão,
Pelo meu amigo que sofre do coração
Eu quero ver, eu quero ver, eu quero ver...
Jorge Duílio acordou tarde e abriu a janela. Queria ver como estava o dia. Gostava de dias ensolarados, mas a manhã estava cinzenta e chuvosa, aquela chuva meio preguiçosa, que não faz muita força para cair. Jorge Duílio tomou um longo banho para despertar, comeu algo, tomou uma coca e saiu rumo à Estrada do Itapicuru, 75, no Alto da Boa Vista, Rio de Janeiro. Como por mágica, assim que saiu se casa, surgiu o sol.
Os deuses astronautas estavam com ele. “É hoje!”, pensou, agora mais alegre. Já tendo gravado 10 discos, não tinha maiores pretensões a não ser a de se divertir com uns amigos fazendo algo extremamente prazeroso: gravar as músicas que havia composto com tanto interesse e cuidado. Não imaginava que, a partir daquela tarde, no estúdio da Phonogram, gravaria o mais importante álbum brasileiro de todos os tempos.
Capa original do disco lançado em 1974
Lá em cima, abrindo este pôsti, uma mistura de trechos de todas as músicas do álbum A Tábua de Esmeralda, de Jorge Duílio Lima Meneses, àquela época Jorge Ben, hoje Benjor. O icônico disco foi concebido sob forte influência daquela época. O país estava doido pelos enigmas turbinados pelo Fantástico, O Show da Vida, que estreara com enorme sucesso e repercussão no ano anterior: Eram os Deuses Astronautas, alquimia, a conquista do espaço, as pirâmides do Egito, exorcismo (insuflado pelo o filme O Exorcista, com reportagens em vários domingos). Jorge Ben estava doidão pelo espaço, pelos deuses astronautas e, sobretudo, pelos alquimistas, e o disco mistura tudo isso e mais alguma coisa. Hermes Trismegisto é o autor do tratado de alquimia que está inteiro na letra de uma música; Paracelso (que visitava pacientes com uma echarpe multicolorida) é o Homem da Gravata Florida; Nicolas Flamel, que ilustra a capa, é O Namorado da Viúva
Jorge Ben e André Midani
Todas essas influências não ficaram só na temática do disco – foram para os arranjos, melodias e forma de cantar. Tudo é alquimia, mágica, experimentação e psicodelia. Foi difícil que a Phillips o autorizasse a gravar um disco assim. Queriam o de sempre, o ‘samba esquema novo’, que vendia tão bem. Pra quê inventar? André Midani, o gerente da gravadora, foi quem bancou. E lá estava Jorge, no estúdio, pronto para começar a primeira gravação, todos a postos...
Salve!...
Não, não... Senta... Senta. Não, não, senta. Não, não. Pra sair legal. Senta.
Então, tem que dançar, dançando. Dançando.
Por que raios foram mantidos, no início da música que abre o álbum, os esporros que Jorge Ben deu na turma?  Provavelmente porque ficou divertido. O disco é, ao mesmo tempo, leve e denso, alegre e melancólico, pacífico e guerreiro. É um bate assopra danado, uma montanha russa emocional. 
"Pode isso, tio Moa?" Uai, se ele fez...
É “pedi você pra esperar cinco minutos só, você foi embora sem me atender” numa música e “põe estrelas em meus olhos, música em meus ouvidos, põe alegria em meu corpo” noutra.  
É ‘há uma princesa à venda, que veio junto com seus súditos acorrentados em carros de boi’ numa, e ‘essa gravata é um jardim suspenso dependurado no pescoço de um homem simpático e feliz’ noutra.
E sai da lisérgica Magnólia, influenciada pela Barbarella Jane Fonda, para cantar com emoção o reverencial Minha Teimosia, Uma Arma Pra Te Conquistar, o melhor samba da história do mundo.
E tem o jeito de cantar macio que flutua sobre os arranjos. Canta quase como roqueiro em Os Alquimistas Estão Chegando, e como um justiceiro ameaçador em Zumbi, uma música tão visual que parece um filme do Tarantino. Não acredita? Dá uma olhada nesse vídeo que inventei de fazer...

Letras ótimas, clima alto astral, arranjos cheios de camadas e surpresas. Enfim, um disco para ouvir milhares de vezes, um disco da série ‘10 coisas para levar à ilha deserta’ e, sobretudo, da série ‘faça um favor a si mesmo’:

Deixe A Tábua... preparado para tocar (tem no Spotfy, Youtube, etc). Pegue algo bom para beber, uma soda italiana, um espumante ou sua cerveja favorita.

Envolva seus merecedores ouvidos com um fone de ouvido e peça para não ser interrompido. Deixe num volume bem generoso, que te permita ouvir as várias camadas. Agora solta o play. Boa viagem!





sexta-feira, 14 de setembro de 2018

CURTINDO A VIDA ADOIDADO

Música é um treco abstrato demais! É uma arte que a gente não vê, como um quadro ou um balé. A danada entra na gente pelos ouvidos. E é por isso mesmo, por ser tão abstrata, é que ela dá tanto prazer. A música desafia a mente: ao tentar decifrá-la para prever seus próximos acordes, estimulamos nossa fantasia e emoção – daí o prazer que a música dá. E isso também vale para o cinema. Apesar de não ser tão abstrato quanto a música, um bom filme também sabe deixar margem para abstração e abre espaços para a fantasia e emoção.

Assim como podemos ouvir uma música que adoramos umas mil vezes, também vemos alguns filmes muitas e muitas vezes... Como? Você não vê filme repetido porque já sabe o que acontece? Larga disso, rapá! Saber o que acontece num filme é o de menos. Um filme não é feito só para contar que o Nicolas Cage queria achar um tesouro, foi lá, achou e, de quebra, pegou a Diane Kruger. O filme, pelo menos os bons, entram dentro da gente, desafiam nossa mente e emocionam. Claro, nem todo filme é assim. A maioria dá pra ver uma vez só e olha lá. Mas quando um filme é bom mesmo...

O problema é que fazer um grande filme não é pra qualquer um. Fazer com que a plateia entre no filme e jogue o seu jogo exige domínio da linguagem do cinema para dar a quem vê o máximo de emoção, suspense e surpresa – enfim: diversão.

Você já viu Curtindo a Vida Adoidado, certo? De cada 10 pessoas, umas 7 já viram o filme e pelo menos 4 o viram várias vezes, mesmo sabendo que o Ferris Buller vai se fingir de doente para matar a aula, sair com os amigos e voltar pra casa sem que os pais descubram nada. Ainda assim, esse filme conseguiu algumas proezas: ser popular, não envelhecer e ter fãs de todas as idades – gente, esse filme passa na sessão da tarde há mais de 30 anos! Por quê? Simples: é uma obra prima! Todo o filme é planejado, filmado e montado usando os recursos para criar suspense, alegria, beleza, riso e emoções.

Mas, como aqui no Cobra Parada a gente mata a cobra e mostra o pau, vamos logo aos tais recursos que estão por trás de Curtindo a Vida Adoidado. Quem não quiser se chatear com linguagem cinematográfica, tchau! Aos que ficam, boa viagem. Em tempo: não vou falar das qualidades mais óbvias, como a atuação genial do protagonista ou a magnífica cena da parada, ok? Só destaco algumas cenas que são exemplo do domínio do diretor e roteirista John Hughes sobre os recursos e de sua criatividade para encontrar sempre a melhor forma de montar uma cena para que ela dê o maior prazer possível à plateia.


§  É um filme musical!Não, fica frio, aqui “musical” não é gênero. Sabe quando um filme é poético e não significa que o filme é em versos? A música é sempre importante nos filmes de John Hughes, mas neste ela é mais ativa, fresca e vigorosa. E nem é que todas sejam maravilhosas, mas é incrível é como ele conseguiu juntar músicas de várias décadas e gêneros, mais dos 80’s, claro, e ainda assim obter um todo harmônico.
§  Não é filme de adolescentes, é sobre adolescentes. Seus dilemas não são preguiçosos, tipo ‘com quem vou ao baile?’. Os dilemas ali são os que carregamos por toda vida. O filme ensina que, para falar de algo profundo, não é preciso ser chato.

§  Texto primoroso. Não sobram nem faltam palavras. Tudo que é dito se refere aos dilemas de que trata o filme ou serve à trama. Há cenas em que nada é dito, porque não precisa, como a da bolsa de valores, onde os gestos ironizam o símbolo do capitalismo selvagem e questionam seu sentido, ou a do museu, que... Depois falo dela.

§  Plasticamente belíssimo. Cada imagem, cada corte, cada tomada de câmera cria beleza visual ou ilustra o que os personagens estão vivendo. 

Melhor parar de falar sobre isso, porque as imagens do filme valem muito mais do que as quarenta e cinco palavras deste parágrafo. Veja essa tomada, aí do lado, da cena do museu;



§  Montagem e roteiro:
1. Ferris deitado, péssima aparência. Seus pais o mandam ficar na cama, mas ele diz que tem prova e quer se dedicar aos estudos para “poder desfrutar de uma vida de trabalho”. Corte para os pés de uma adolescente, um deles batendo contra o chão, gestual de ‘você não me engana, seu safado!’, depois para as mãos na cintura, dedos nervosos. Hughes usa 4 segundos para nos contar, de forma criativa, que Ferris está mentindo, que sempre faz isso e que sua irmã sabe. Dizer muito, com muito pouco, e deixar a interpretação pra gente é dominar a linguagem.
2. Ferris desliga o telefone, volta ao assunto que importa, seu amigo, e diz à câmera: “aposto que neste momento o Cameron está no carro, decidindo se vem ou não”. Corta, close em Cameron, no carro, decidindo se vai ou não: “ele vai ficar me ligando, vai ligar até eu ir!”. Sem ser explicadinho, sem fala do tipo “somos amigos há 10 anos e eu te conheço demais...”. São 15 segundos de falas curtas e cortes, e sabemos o quanto são amigos, o quanto eles sabem como o outro pensa e faz e, de quebra, trás a plateia para dentro da relação.
3. Rooney, o inspetor, foi a um bar para flagrar Ferris e provar que ele não está doente, mas não o encontra. Na TV, em segundo plano, um jogo de beisebol. Rooney abaixa a cabeça para limpar os olhos enquanto, na TV, a câmera mostra Ferris pegando uma bola que foi rebatida e caiu na torcida. Quando Rooney levanta a cabeça, a TV volta ao jogo. E pronto, a cena passa para os amigos no jogo e acaba, filme que segue... O que esta cena tem de mais?... Deixa pra depois.
4. Rooney recebe telefonema do pai de Sloane (namorada de Ferris) contando que sua avó morreu e que ela precisa sair da aula. Rooney está certo de que a voz ao telefone é de Ferris passando-se pelo pai dela. Até então, nos telefonemas que já tinham acontecido, eram mostrados os dois lados, mas agora a cena só mostra Rooney, que se diverte passando um tremendo esculacho em Ferris. Enquanto isso, a secretária do inspetor vem a Rooney e diz “telefone para o senhor na outra sala, é o Ferris”. Rooney está exculachando um pai de aluno? Música clássica de terror, close em Rooney, olhos arregalados, um momento delicioso, exemplo do uso criativo de clichê. Só depois a câmera mostra o outro lado e vemos que não era o pai da Sloane, mas Cameron se passando por ele. Veja bem: se soubéssemos, antes, que era Cameron ao telefone, não haveria emoção – todo o prazer da cena foi pensarmos que era realmente o pai da aluna e que o inspetor tinha se ferrado feio. Esconder e soltar no momento certo as informações determina a reação da plateia. É a essência da arte do cinema.
5. Cenas no fundo. Mais um exemplo de não dar tudo mastigado e deixar a plateia ver as coisas por si. Enquanto uma cena está acontecendo, algo pode estar acontecendo lá atrás. Na cena em que deixam a Ferrari no estacionamento, Cameron está preocupadíssimo com o carro do pai, não gostou do cara que recebeu o carro no estacionamento. Ferris o acalma. Saem e sobem a rua. Veja ao lado: lá atrás, sem que seja dado nenhum destaque, aparece o rapaz saindo com a Ferrari . Outra: na delegacia, a irmã de Ferris discute com um drogadito, Charlie Cheen (sua estreia no cinema), cada um de um lado do sofá, bem separados. Depois, em outra tomada, a mãe está na sala do delegado. Quando ela se levanta, pelo vidro da sala podemos ver, bem la no fundo, a filha aos beijos com o tal. O filme confia na observação da plateia, não precisa conduzi-la pela mão. Não precisa enquadrar tudo o que é importante. Deixa a gente descobrir sozinho! E quando a gente vê aquilo ao fundo, nos sentimos bem, tipo "peguei", "eu vi aquilo"  

6. Ferris quer pegar a Ferrari do pai de Cameron. “Ferris, meu pai ama este carro mais que a própria vida”. Ferris responde “alguém com prioridades tão erradas não merece um carro de luxo”. E pega o carro. Um luxo de texto! Não precisa explicar mais nada, aqui se falou de materialismo, exibicionismo, falta de amor do pai  e de mais um tanto de coisa...
7. Ferris nos fala sobre o que pensa da vida. Enquanto isso, mexe com um troféu, um barbante e num aparelho de som cheio de botões, sem contar o que faz. Mais de meia hora de filme depois, enquanto Ferris está se divertindo no centro de Chicago, sua mãe volta para ver se ele está bem. Sobe à escada, e vai em direção ao quarto do filho que, sabemos, não está lá. A câmera subjetiva (o olhar da mãe) se aproxima devagar e ficamos em suspense. Quando ela abre a porta, o vê coberto, virando-se na cama, roncando. Satisfeita, fecha a porta e sai, nós ficamos aliviados e nos perguntando quem estava no quarto. Só que a mãe se lembra que Rooney a avisara que Ferris a enganava e faltava às aulas. Ela resolve voltar, para conferir. Só que desta vez a cena é mostrada não mais pelos seus olhos, mas por dentro do quarto, e vemos, os detalhes: o barbante ligando a porta a um boneco coberto na cama, o troféu servindo de contrapeso e o aparelho de som acionado e emitindo o ronco. Aí vemos que o cara é um gênio! Mas veja: em qualquer filme comum, saberíamos o que Ferris estava fazendo com o barbante e o troféu – e não haveria suspense, não teríamos nos perguntado quem estaria no quarto e mal acreditaríamos que aquela armação pudesse funcionar. Domínio da linguagem, do tempo e do roteiro para gerar suspense e dar emoção à plateia.
8. A cena do museu!!! Sem uma única fala, começa com uma escultura em primeiro plano, quadros ao fundo, pessoas observando. Aí surge uma professora dando a mão a uma criança, que puxa outra, e depois muitas outras puxando a de trás pela mão. Elas cruzam o plano da cena, até que aparecem, de mão dadas com elas, Ferris, Sloane e Cameron. Tomadas com contemplação, outras com ironia, todas belíssimas e com música emocional e densa. Destaque para Cameron impactado pelo quadro de Georges Seurat, em pontilhismo. Intercalam-se tomadas de seu rosto e da menina do quadro, cada vez com mais aproximação. Cena genial, poética, um respiro no meio daquele ritmo todo em que o filme estava.

9. Ah, sabe o item 3, que não diz nada de incrível na cena do beisebol? Pois é... No fim do filme, Ferris, depois de escapar de mil situações em que quase foi pego, chega ao quarto e se deita, no momento em que os pais estão chegando ao quarto. Só que, quando os pais estão abrindo a porta, o aparelho é acionado e começa o som de ronco. Não há tempo para levantar e desligar o aparelho. De nada valeu ele ter escapado de todos os perigos antes. Envolvidos e torcendo por ele, pensamos “ih, fudeu!”. Quando ele se ilumina com uma ideia, mete a mão no bolso, tira a bola de beiseball, faz mira e a acerta no botão on/off do aparelho, vibramos, “caralho!”. Ele se cobre e os pais entram. Veja bem: em qualquer filme, a bola que ele pegou no estádio seria valorizada, ele diria algo como “vou guardar, posso precisar dela”. Não, mas o vemos colocando a bola no bolso e ela desaparece do filme, mas não da nossa memória. O resgate da bola faz a gente vibrar, infla nosso pulmão, é um carinho na alma.

Curtindo a Vida Adoidado não é popular por contar uma história legal. É porque é cinema de primeira. E não é o caso de memória afetiva, não, porque não vi o filme na época. Não fui destes que o acompanhou sessões da tarde afora. Eu era um intelectualoide que desprezava entretenimento, ainda mais ‘juvenil’.

Ao corajoso e persistente leitor que chegou até aqui e que quer a receita da felicidade e da realização pessoal, sugiro: reveja o filme. Ele vai te ajudar muito mais do que qualquer coach charlatão, desses que brotam feito mato por aí. Enfim, sabe a ilha deserta para onde você só pode levar 10 filmes? Na minha mala, tem Curtindo a Vida Adoidado e mais nove. 

domingo, 17 de abril de 2016

O DESTINO DO VILAREJO


Já usei o clássico Sete Homens e Um Destino em educação empresarial e em curso de administração, para falar de transformação por meio de empreendedorismo, valores e liderança. Hoje, 17 de abril de 2016, o uso pelos mesmos motivos. Ao filme:

Calveira, o chefe da quadrilha, era um bandido singular, carismático e bem-humorado. O problema é que seu bando saqueou demais o vilarejo, que começou a passar fome. O povo, humilde, começou a levantar a voz e buscava saídas. Um deles, o mais medroso, achava que era melhor continuar assim, pelo menos Calveira deixava um pouquinho, para eles não morrerem de fome. Se o enfrentassem, todos morreriam, com certeza, afinal não tinham armas e nem sabiam lutar. Foi aí que o mais velho e mais sábio sugeriu que contratassem uns pistoleiros para espantar Calveira e seu bando do vilarejo. "Como vamos confiar em pistoleiros?", perguntou alguém. Era a única saída. E assim fizeram: contrataram Youl Bryner, Steve MacQuen, Charles Bronson e outros quatro, Sete Homens e Um Destino.

Não havia nenhum santo entre os sete pistoleiros. Uns queriam as mulheres do vilarejo, outros o ouro que podia existir ali, em algum lugar. Mas o fato é que o povo decidiu depositar nos pistoleiros sua esperança. 

Quando Calveira chegou e viu os pistoleiros defendendo o lugar, tentou compra-los: “que tal metade do que roubarmos?”. Um pistoleiro, o novato idealista, levantou-se “e as pessoas do vilarejo, como é que ficam?”. Calveira, julgando-se ungido por Deus, respondeu: “É até uma heresia. Se Deus não quisesse que as tosássemos, não as teria feito como ovelhas”. Era assim que Calveira via o povo.

Nem essa retórica, nem a tentativa de compra, fizeram com que os pistoleiros mudassem de ideia. Cheios de brio, não se deixaram vender e, cada um por um motivo, se uniram e partiram para a batalha final. Dos sete pistoleiros, quatro morreram, mas o bando de Calveira foi destruído. O povo, libertado, recomeçou o trabalho, na esperança de um futuro melhor. Os pistoleiros que sobraram foram embora, apenas um dele ficou, apaixonado pela mais linda moça da vila.



Calveira, atingido no peito, incapaz de entender porque os pistoleiros preferiram enfrentar a morte a fazer acordo com ele, perguntou “por quê?” e morreu.

sábado, 17 de outubro de 2015

UM AMOR A CADA ESQUINA - A VOLTA DA BOA E VELHA COMÉDIA

Entre as melhores comédias deste século estão filmes como “Se Beber Não Case”, “Intocáveis”, “Penetras Bom de Bico”, “Os Normais, O Filme”, “Borat”, e “Uma Noite no Museu”. Por “comédias”, entenda-se: filmes cuja intenção principal é fazer rir. Por “melhores”: os que fazem rir e o fazem com algo a seguir: espirituosidade, carisma, o inusitado, reversão de expectativa ou, muito raro, tudo isso junto; já num nível maior de inventividade, boas comédias fazem rir com situações que evoluem e se entrelaçam a ponto de expor os personagens a um confronto com seus próprios valores – mas aí já é exigir muita sofisticação para os dias de hoje. Há, também, apelação numa boa comédia, mas quando surge, vem a serviço de algo maior. Não é o caso de comédias baseadas em pobres macaqueando ricos ou em bichinhas afetadas – por maior que seja a bilheteria, jamais estarão entre as melhores, pois cinema é arte e arte é invenção – não algo que qualquer um pode fazer em casa (imitar uma bichinha, um bêbado ou um político mentiroso, fingir-se de mulher, etc).

“Se Beber Não Case” tem argumento que funciona : marmanjões se comportam como adolescentes imbecis e descobrem, aos poucos e junto com a plateia, situações loucas em que se envolveram: tigre, Mike Tyson, casamento com prostituta. “Intocáveis” se baseia na inversão de expectativa e carisma: o ultra carismático cuidador do tetraplégico faz piadas com sua deficiência e o outro adora. “Borat” é pura, e ótima, porrada no politicamente correto, assim como “Ted”, que acrescenta o inusitado: um ursinho fofo fala palavrão, fuma maconha e faz farra com putas! Enfim, mesmo as melhores comédias atuais baseiam-se em muito pouco além da surpresa ou do politicamente incorreto.


Mas houve um tempo em que havia comédias que tinham, ao mesmo tempo, todos os motivos para rir, inclusive os mais sofisticados - Lubitsch, Billy Wilder, Howard Hawks e, mais recentemente, Woody Allen fizeram comédias ainda hoje atualíssimas e muito divertidas, como “Ser ou Não Ser”, “Se Meu Apartamento Falasse”, “Jejum de Amor”, “Sonhos de Um Sedutor” e outras tantas maravilhas.


Eis que, em pleno século 21, no inferno de um calor insuportável, surge uma verdadeira maravilha: “Um Amor a Cada Esquina”, de Peter Bogdanovich, um misto de diretor (do clássico “A Última Sessão de Cinema”) e cinéfilo (está em tudo que é documentário sobre cinema), uma maravilhosa homenagem às comédias, mais explicitamente à Bonequinha de Luxo, e aos diretores do século passado. Estão presentes a estética (os créditos, por exemplo, são exuberantes e nos fazem viajar no tempo), a inteligência, a delicadeza e os “entra e sai”, as surpresas e aquelas situações engenhosas, hoje tão raras. Não pense que, por isso, o filme seja “elitista”, do tipo que só ri quem entende de cinema. Nada disso: é uma comédia descarada, que não se importa em usar de todos os tipos de recursos para fazer rir, inclusive abrir e fechar portas e mulher escondida no banheiro. E o povo no cinema ri o tempo todo.


Uma celebridade (mulher nova e linda) dá uma entrevista contando como chegou aonde chegou (não sabemos exatamente aonde chegou ou o que faz). O filme alterna trechos dessa entrevista e os fatos que a moça narra, de 4 anos antes. Era uma garota de programa que recebeu 30 mil dólares de um cliente (ela não sabia de quem se tratava), sob a promessa de sair da prostituição para dedicar-se a seu sonho de ser atriz. Ela larga a “vida fácil” e parte para seu sonho. Num teste para peça na Broadway, descobre que o diretor é justamente o cliente generoso e sua esposa, uma das atrizes. Está feita a confusão, e não precisava de mais nada para sair boa coisa, mas a confusão aumenta a cada personagem que aparece, todos com relevância na trama e, de diferentes formas, engraçadíssimos e bem interpretados.


Um filme de lavar a alma, com direito a fantásticas piadas finais, uma a 30 segundos do final (o desfecho da personagem principal) e outra em seguida – cena de um filme antigo que aumenta e ressignifica uma piada que permeou todo o filme (nozes e esquilos...) – a pérola, a cereja do bolo.

“Um Amor a Cada Esquina” é uma imperdível golfada de vida, beleza, inteligência e frescor no cinema, daquelas comédias para assistir e reassistir, sem vergonha, indefinidamente, sempre com imenso prazer.
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