segunda-feira, 22 de outubro de 2018

LEGALIZE JÁ – O AMOR EM TEMPOS DE CÓLERA


Um grava fitas cassete, não quer tomar o coquetel e por isso tem pouco tempo de vida; o outro vende camisetas de bandas famosas de punk e hard rock na rua, é expulso de casa e a namorada está grávida. Além de serem dois ferrados, mais uma coisa em comum: “a polícia atrás deles e eles no rabo dela”. Skunk é negro e pobre - polícia nele; Marcelo ouve "ói o rapa" e sai correndo, carregando o varal de camisetas. Assim eles se encontram; na confusão, o caderno em que Marcelo escreve versos fica com Skunk, que procurava letras para suas bases de rap.


Está em cartaz Legalize Já – Amizade Nunca Morre. O subtítulo, insuportável mania brasileira, aqui tem uma função: mostra que o objetivo do filme não é fazer apologia da legalização da maconha ou contar a história da banda polêmica e porradona. Aliás, quando a banda se forma mesmo, o filme acaba. Quem diria que a origem do Planet Hemp daria um tocante filme sobre amizade e amor? Amor Ágape, diria o Serjão, para fazer diferença entre o amor espiritual e o desejo físico, que caracteriza o amor Eros. No caso, vale mais falar do amor Philos, o da afinidade mental e cultural.

Enfim, o que importa é que o filme é um carinho na loucura, uma trégua nestes tempos de injustificável cólera – só de mencionar que a cólera é injustificável, haverá reações coléricas, aposto. Dane-se! Legalize Já é um filme humano, demasiadamente humano.


Apoiados por Brennand, o argentino dono de um boteco no centro sujo do Rio, a amizade vai se sedimentando, tal como a ideia do que querem dizer com a música. 


Apoiado num ótimo quarteto de atores (além da dupla, tem o Brennand, delicioso personagem do ator argentino, e a namorada de Marcelo), o filme evolui, ora com cenas densas, ora com bom humor - engraçadíssima a cena em que Marcelo, aterrorizado, vê um clipe com algo tipo boquinha na garrafa na TV da loja em que está trabalhando. Ah, é claro: tem boa música – além da trilha, as cenas musicais são delirantes – os atores estão perfeitos nos vocais e gestual.

Quando a banda apenas começava a ganhar estrada, aí termina o filme, a morte de Skunk retratada com delicadeza, numa sequência final tocante e inteligente. No ótimo take final, camisetas do Planet Hemp num varal, dizem por si só sobre a vitória de Skunk. O filme é uma homenagem feita pela ótica do sobrevivente, Marcelo D2, que participou da produção e diz “o Skunk foi um anjo que passou na minha vida e mudou ela completamente, eu vivo um sonho que não é meu. Isso tudo aqui não era para mim, era para ele'.


Skunk, o verdadeiro
O resto é história, é o Planet Hemp, é Legalize Já, o triunfo do amor e da amizade, da beleza e da justiça sobre o dragão da maldade. E como isso, disparadamente, é o que mais importa, vou rever o filme mais uma ou duas vezes nesta semana insuportável...

domingo, 7 de outubro de 2018

O CÉU DE NILCE E AMELIE TEM MAIS ESTRELAS QUE O DE GALILEU



Amelie era uma cachorrinha mui da sui generis: gostava de pessoas, até de companhia, mas não era tida a abraços, muito menos a colo. Não gostava de contato físico. Desde pequeniníssima, só mamava na Lilica quando os irmãozinhos deixavam suas tetas e o caminho ficava livre.

Sabe o Ricky Gervais, no Ghost – Um Espírito Atrás de Mim, que é um dentista que escolheu a profissão por ser a única em que o cliente não pode falar enquanto ele trabalha? A Thea Leoni o convida a ir a uma inauguração, diz “vai ser legal, vai ter muita gente”, “agora mesmo é que não vou”, “não gosta de multidão?”, “não, nem das pessoas que a compõem”. Então, assim era a Amelie. Ficava no nosso colo, o colo dos donos, não mais que dois minutos e saía logo pro seu canto. Mas no colo da Nilce, uma amiga nossa, a Amelie ficava. E ficava um tempão! Esquecia da vida...

A gente sempre pegava a Nilce para sair, ir a um restaurante ou ao cinema. Chegando em seu prédio, ligávamos e ela descia, algumas vezes com uma bolsa bem maior que a comum. “Gente, tô levando umas roupas, vai que vocês me convidam pra dormir na casa de vocês”. Mesmo que a gente não convidasse, ela acabava ficando em casa! Claro, ela precisava ter com quem conversar! Porque, se tem uma coisa verdadeira nesta vida, é que a Nilce falava! Santo Deus, Virgem Santíssima! Ela falava pelos cotovelos, pelos joelhos e por tudo que é articulação. Sabe gente que não consegue pensar em voz baixa? Esta era a Nilce, uma pessoa que tinha tudo para ser insuportável... mas não conseguia. A gente gostava muito dela... E a Amelie também. Elas se identificavam. Um dia, ela foi pra casa dela e a Aline reclamou, “dá uma saudade da Nilce, não dá?”. O pior é que dava mesmo! Como é que pode?

Muito antes desse tempo, mal nos conhecíamos, e ela chegou pra Aline e disse que minha bunda era gostosa... Imagina, leitor desavisado, alguém elogiar sua bunda para sua namorada... Mas até uma coisa dessa ela fazia com simpatia. Claro que alguém que elogia a bunda da gente, ou melhor, alguém que elogia especificamente a minha bunda, merece um lugar no céu.

Quando víamos TV em casa, a Aline dormia logo e a Nilce ficava falando, é claro. “Não precisa responder não, viu, Moacir, pode prestar atenção no filme, que eu não ligo”, e continuava falando. Aquela mulher tinha algo inexplicável, um jeito de ver as coisas, um jeito espontâneo, uma alma de silicone, que pode esquentar o quanto for, que não queima, não machuca. A Nilce fazia a gente se sentir bem. E a Amelie lá, quietinha, no colo dela. Cachorro entende a alma das pessoas.

Nilce não cobrava nada, não exigia isto ou aquilo de ninguém, não criava expectativas e, assim, nos deixava absolutamente à vontade para exercermos nossas esquisitices como bem entendêssemos. E isso não é pouco! Parece que desfrutava cada minuto, que botava horas no colo, que alentava dias... Ela transitava na periferia do óbvio. Enfim, não era muito deste mundo, não.

Amelie se foi há pouco. Logo em seguida, a Nilce a seguiu. Ou foi o contrário? Nem lembro mais. 

Que todos os cachorros merecem o céu, já sabemos, mas onde eles ficam por lá? Será que no céu existe um lugar específico para gente muito especial? Ok, as leis recebidas na tábua de Moisés, e sei lá mais que outras leis que inventaram para classificar as pessoas na hora da travessia, dizem que quem as segue, vai para o céu. Digamos que isso seja verdade, e espero mesmo que seja. Mas, venhamos e convenhamos: imagina que porre seria ficar a eternidade inteirinha ao lado daqueles que apenas não pecam. O papo seria a bem-aventurança eterna, o cultivo de lírios do vale, o triunfo do bem sobre o mal, todos desfrutando de frozen iogurte e saladas com sementes de chia e linhaça, que servem de graça no céu. Meu Deus, me poupe!

Estou convicto de que o céu guarda um lugar específico para gente que é especial demais e que faz este mundo ser mais gostoso de ser habitado. É neste lugar que a Nilce deve estar, com a Amelie no colo, esperando por aqueles de quem ela se cercava.

Saiba, cara Nilce, que pretendo te fazer esperar muito, muito, muito tempo, ok? Por enquanto, vai conversando aí com a Amelizinha – ela não vai te responder nada, mas estará adorando te ouvir.
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