Amelie era uma cachorrinha mui da sui generis: gostava de
pessoas, até de companhia, mas não era tida a abraços, muito menos a colo. Não
gostava de contato físico. Desde pequeniníssima, só mamava na Lilica quando os
irmãozinhos deixavam suas tetas e o caminho ficava livre.
Sabe o Ricky Gervais, no Ghost
– Um Espírito Atrás de Mim, que é um dentista que escolheu a profissão por
ser a única em que o cliente não pode falar enquanto ele trabalha? A Thea Leoni
o convida a ir a uma inauguração, diz “vai
ser legal, vai ter muita gente”, “agora
mesmo é que não vou”, “não gosta de
multidão?”, “não, nem das pessoas que
a compõem”. Então, assim era a Amelie. Ficava no nosso colo, o colo dos
donos, não mais que dois minutos e saía logo pro seu canto. Mas no colo da
Nilce, uma amiga nossa, a Amelie ficava. E ficava um tempão! Esquecia da
vida...
A gente sempre pegava a Nilce para sair, ir a um restaurante
ou ao cinema. Chegando em seu prédio, ligávamos e ela descia, algumas vezes com
uma bolsa bem maior que a comum. “Gente,
tô levando umas roupas, vai que vocês me convidam pra dormir na casa de vocês”.
Mesmo que a gente não convidasse, ela acabava ficando em casa! Claro, ela
precisava ter com quem conversar! Porque, se tem uma coisa verdadeira nesta
vida, é que a Nilce falava! Santo Deus, Virgem Santíssima! Ela falava pelos
cotovelos, pelos joelhos e por tudo que é articulação. Sabe gente que não consegue
pensar em voz baixa? Esta era a Nilce, uma pessoa que tinha tudo para ser insuportável... mas não conseguia. A gente gostava muito dela... E a Amelie também. Elas se identificavam. Um dia, ela foi pra
casa dela e a Aline reclamou, “dá uma
saudade da Nilce, não dá?”. O pior é que dava mesmo! Como é que pode?
Muito antes desse tempo, mal nos conhecíamos, e ela chegou pra Aline e disse que minha
bunda era gostosa... Imagina, leitor desavisado, alguém elogiar sua bunda para
sua namorada... Mas até uma coisa dessa ela fazia com simpatia. Claro que alguém
que elogia a bunda da gente, ou melhor, alguém que elogia especificamente a
minha bunda, merece um lugar no céu.
Quando víamos TV em casa, a Aline dormia logo e a Nilce ficava
falando, é claro. “Não precisa responder
não, viu, Moacir, pode prestar atenção no filme, que eu não ligo”, e
continuava falando. Aquela mulher tinha algo inexplicável, um jeito de ver as coisas,
um jeito espontâneo, uma alma de silicone, que pode esquentar o quanto for, que
não queima, não machuca. A Nilce fazia a gente se sentir bem. E a Amelie lá,
quietinha, no colo dela. Cachorro entende a alma das pessoas.
Nilce não cobrava nada, não exigia isto ou aquilo de ninguém,
não criava expectativas e, assim, nos deixava absolutamente à vontade para
exercermos nossas esquisitices como bem entendêssemos. E isso não é pouco! Parece que desfrutava cada minuto, que botava horas no colo, que alentava dias... Ela transitava na periferia do óbvio. Enfim, não era muito deste mundo, não.
Amelie se foi há pouco. Logo em seguida, a Nilce a seguiu. Ou foi o contrário? Nem lembro mais.
Que
todos os cachorros merecem o céu, já sabemos, mas onde eles ficam por lá? Será que no
céu existe um lugar específico para gente muito especial? Ok, as leis recebidas
na tábua de Moisés, e sei lá mais que outras leis que inventaram para
classificar as pessoas na hora da travessia, dizem que quem as segue, vai para
o céu. Digamos que isso seja verdade, e espero mesmo que seja. Mas, venhamos e convenhamos: imagina que porre
seria ficar a eternidade inteirinha ao lado daqueles que apenas não pecam. O papo seria a bem-aventurança eterna, o cultivo de lírios do vale, o
triunfo do bem sobre o mal, todos desfrutando de frozen iogurte e saladas com
sementes de chia e linhaça, que servem de graça no céu. Meu Deus, me poupe!
Estou convicto de que o céu guarda um lugar específico para gente
que é especial demais e que faz este mundo ser mais gostoso de ser habitado. É
neste lugar que a Nilce deve estar, com a Amelie no colo, esperando por aqueles
de quem ela se cercava.
Saiba, cara Nilce, que pretendo te fazer esperar muito, muito, muito tempo, ok? Por enquanto, vai conversando aí com a Amelizinha – ela não vai te responder nada, mas estará
adorando te ouvir.
Um comentário:
Obrigado pela definiçao tao verdadeira e justa .Bem se vê que a conheciam muito bem,esta e verdadeira Nilce, minha irmã.que os respeitava e os amava muito , aliás onde esta continua sendo o que era por aqui. A essencia nao se muda .
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