A memória e o efeito que ela nos causa é algo misterioso. A memória é um território insondável, física e psicologicamente. Fisicamente porque os cientistas têm grandes dificuldades em estabelecer com exatidão o local que a memória ocupa no cérebro e nem imaginam como ela se processa. Bem, imaginar talvez imaginem, afinal, são cientistas, e o mínimo que se espera de cientistas é que tenham imaginação. Mas o local onde se localiza a memória no cérebro e como ela se processa, cá prá nós, não tem a menor importância para mim e arrisco dizer que não interessa a você também, domingueiro leitor, que neste exato momento (não o momento em que escrevo, mas o momento em que você lê) não faz a menor ideia de onde este obtuso escritor quer chegar com essa introdução sobre memória. Calma, há tempo para se plantar e há tempo para se colher.
Vamos à colheita, pois: interessa-me aqui e agora, enquanto escrevo, o que a memória é capaz de nos causar à nossa frágil psique. Explico: ontem tivemos uma grande tragédia, que se colocada em perspectiva pode não ser tão grande assim, talvez nem seja tragédia. Entretanto, a memória emotiva nos fez, a mim e aos meus familiares, em especial à minha irmã Ana, inconsolavelmente mergulhada em tonéis de lágrimas, o favor de transformar aquilo numa grande, e real, tragédia.
Trata-se de um ataque cruel, sanguinário e nefasto ocorrido ontem no quintal de minha irmã. Um gavião sórdido e malévolo se aproveitou da solidão e da falta de movimentos rápidos que a pior idade (ao menos fisicamente falando) traz aos seres vivos, e atacou sem dó nem piedade um maravilhoso canário, membro da família há mais de 15 anos. O pobre canarinho foi violentamente assassinado e só não foi levado devido à chegada de meu cunhado. Ao menos o canário pôde ter um enterro digno. E porque isso seria uma tragédia e não apenas a simples concretização de um vídeo da Discovery Chanel no fundo de casa? Por causa da memória e de seus mistérios.
O lindo canarinho, que atendia pelo incomum nome de piu-piu, era de minha mãe, que se foi há quase 8 anos. Ela amava aquele bichinho, que lhe retribuía o mesmo amor. Nós, que ainda sonhamos com nossa santa mãezinha, como se viva estivesse, sofremos como se tivessem, definitivamente, se fechado os seus olhos, que teimavam em nos olhar e cuidar através daquela avezinha simpática e delicada.
Minha irmã acabou se distraindo o resto do dia, com a chegada, instantes depois da tragédia, do lindo Antonio, em sua primeira visita a sua casa e a Campinas, vindo de 300 kilômetros longe dalí. Filho da neta predileta da minha mãe (desculpem-me Riana e Amanda), a visita do Antonio, o inestimável, foi como se Dona Lourdes dissesse que seus olhos apenas haviam mudado de veículo.
Minha irmã se distraiu com o pequeno, mas eu não.
Mergulhado neste flat em que me escondo de tudo, menos de mim mesmo, minha memória voou, como se asas tivesse, e na verdade tem, mas voou como se pegasse carona nas asas do piu-piu, quem sabe nas do maldoso gavião. E repousei lá, na minha adolescência, período de maior convivência com minha mãe. Período em que ficávamos horas a fio em frente à televisão, televisão, que, diga-se, merecia isso de nós. Como as asas eram o centro das recordações, lembrei-me logo do vôo do Zelão no último capítulo de uma das melhores novelas de todos os tempos, O Bem Amado. Minha mãe adorava o Odorico Paraguaçu, disparado o maior personagem da história da novela brasileira e universal.
Naquele tempo as novelas tinham alta qualidade, eram escritas por gente de primeira, no caso Dias Gomes, gênio absoluto. O intérprete do Odorico? Outro gênio: Paulo Gracindo, que faria 100 anos nesta semana que entra, mais precisamente sábado, dia 16. Estamos na semana do centenário do melhor ator brasileiro de todos os tempos e até agora não li nada a respeito - a bem da verdade, há sites que dizem que ele nasceu em 16 de junho, mas é fato que no mês passado também nada se falou... Tudo bem, consideremos que há mais ou menos 100 anos ele nascia.
Se há uma tragédia da humanidade foi o fogo na Globo, que queimou as cópias da novela O Bem Amado, uma “novela das 10” que começava realmente às 10, o que era tarde para a época, muita gente já estava na cama.
Odorico, prefeito de Sucupira, tinha obsessão de inaugurar o único cemitério da cidade, construído como a principal promessa de sua campanha para prefeito, já que, sempre que morria alguém na cidade, o corpo devia ser levado para a cidade vizinha para ser enterrado (o discurso de campanha está no youtube). O problema de Odorico é que, após a inauguração do cemitério, ninguém mais morria. E assim vai a novela, com a imprensa e a oposição criticando o prefeito por ter construído um cemitério que não serve para nada e o prefeito, desesperado, fazendo de tudo para que alguém morresse, como trazer moribundos de outras cidades, que milagrosamente melhoravam em Sucupira, ou contratar o maior matador do nordeste, o Zeca Diabo, como delegado. Pena, pra Odorico, que o matador tinha acabado de fazer um juramento para não matar mais ninguém. Mas ele provocou Zeca Diabo para que matasse alguém durante toda a novela, até que, no último capítulo, Zeca Diabo quebra a promessa e mata. Quem? O próprio Odorico inaugura o cemitério. É sua “vitória” final.
A intepretaçao de Paulo Gracindo foi inesquecível, a maior até hoje na história, sem nenhum exagero.
O personagem já era genial no texto da peça de Dias Gomes, que também escreveu a novela. Paulo Gracindo aproveitou a liberdade dada por Dias Gomes, que o convenceu a interpretar papel, e enriqueceu ainda mais o personagem com maneirismos e expressões divertidíssimas.
Para quem não conhece, ou para quem quer se lembrar, seguem algumas das pérolas que recheavam todos os capítulos da novela.
"É com a alma lavada e enxaguada que lhe recebo nesta humilde cidade"
"Vamos dar uma salva de palmas a esta figura trepidante e dinamitosa que foi o Seu Nono"
"Esta obra entrará para os anais e menstruais de Sucupira e do país"
"Isto deve ser obra da esquerda comunista, marronzista e badernenta"
"Quem é que pode viver em paz mormentemente sabendo que, depois de morto, defunto, vai ter que defuntar três léguas pra ser enterrado?"
"Vexame para o nosso prefeito, agora em estado de defuntice compulsória, ter que andar três léguas para ser enterrado."
"Se eleito nas próximas eleições, meu primeiro ato como prefeito será o de cumprir o funéreo dever de fazer o construimento do cemitério municipal."
"Tomo posse como prefeito desta cidade com as mãos limpas e o coração nu, despido estripitisicamente de qualquer ambição de glória. Nesta hora exorbitante, neste momento extrapolante eu alço os olhos para o meu destino e, vendo no céu a cruz de estrelas que nos protege, peço a Deus que olhe para nossa terra e abençoe a brava gente de Sucupira."
"Calunismos. Eu também sou meio socialista. Não da ponta esquerda... do meio de campo, caindo pra direita!"
"Como diria o rei dos persas, Dario Peito de Aço, pra cada problemática tem uma solucionática. Se não disse, perdeu a oportunidade de ser citado por mim".
"Meu caro jornalista, isso me deixa bastantemente entristecido, com o coração afogado na deceptude e no desgosto. Numa hora em que eu procuro arrancar o azeite-de-dendê do estágio retaguardista do manufaturamento (...), me vêm com esse acusatório destabocado somentemente porque meia dúzia de baiacus apareceram mortos na praia."
"Seu Dirceu, não fique aí com essa cara de seu-Malaquias-cadê-minha-farofa! Tome os providenciamentos necessários!"
"Seu Zeca Diabo, o senhor não vai matar, vai suicidar o homem apenasmente..."
"Pare com esse perguntório e essa cara de disenteria. Temos é que tratar dos providenciamentos inauguratícios do cemitério".
"Vai ter uma confabulância político-sigilista sobre as nossas candidaturas".
"É uma alegria poder anunciar que prafentemente vocês já poderão morrer descansados, tranqüilos e desconstrangidos, na certeza de que vão ser sepultados aqui mesmo, nesta terra morna e cheirosa de Sucupira"
"Vamos botar de lado os entretantos e partir para os finalmentes”
Depois de O Bem Amado, Paulo Gracindo interpretou o Coronel Ramiro Bastos em Gabriela, novela inspirada na obra de Jorge Amado. Gabriela foi maravilhosa e dela também guardo ótimas lembranças, como o impagável Tonico Bastos e sua cara de cínico, a lindíssima Malvina (a estreante Elisabeth Savalla), por quem me apaixonei perdidamente. Teve também a visão divina de Sonia Braga subindo no telhado. Mas o melhor da novela era mesmo o sinistro coronel Ramiro Bastos (Paulo Gracindo, sensacional), representando o poder e a opressão, e a disputa com a oposição.
Aquela novela certamente influenciou muito na minha vida, e certamente na de muitos outros e acabou sendo a base da minha consciência política de muitos que, anos depois, formaram o Cobra Parada Não Engole Sapo que, como todos sabem, tirando os que não sabem, foi um grupo que, nos anos 80, mudou a cara de Brasília, do Brasil e do Mundo nos campos da arte, da política e da filosofia. Voltando aO Bem Amado, a novela acaba com Zelão (Milton Gonçalves) que sonhava em voar, subindo na torre da Igreja vestindo as asas feitas por ele. E de lá, com o povo desesperado em baixo, ele pula. Ele pula e... E voa, mas voa tão lindo que só vendo (tem lá no youtube – procura, não espere as coisas caírem do céu), como uma metáfora sobre a possibilidade do sonho.
Pois desta vidinha nossa também voaram Paulo Gracindo, Dias Gomes e minha santa mãezinha. Agora, por fim, voou o delicado e simpático canário.
Ao som das belíssimas trilhas de Gabriela (que tinha até Elomar, acredite) e de O Bem Amado (composta por Vinícius e Toquinho), comandado pelos vôos da minha memória solta e inspirado por tudo o que é belo nesta vida, que nenhum gavião consegue matar, escrevo este pôsti meio desconexo, como singela homenagem aos 100 anos de Paulo Gracindo, o Bem Amado.
Viva Odorico!!!
“Aqui a nossa história pára, pois tudo que sabemos daqui em diante é de ouvir contar. Não que a gente não acredite, pois se você for a Sucupira, vai ver que lá ninguém duvida...E Zelão voou. Se você duvida, é um homem sem fé” Dias Gomes
Um comentário:
Sua memória vai longe... Nos leva junto, nas asas do piu-piu, e acaba em novela, como nossa vida.
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