sábado, 17 de outubro de 2015

UM AMOR A CADA ESQUINA - A VOLTA DA BOA E VELHA COMÉDIA

Entre as melhores comédias deste século estão filmes como “Se Beber Não Case”, “Intocáveis”, “Penetras Bom de Bico”, “Os Normais, O Filme”, “Borat”, e “Uma Noite no Museu”. Por “comédias”, entenda-se: filmes cuja intenção principal é fazer rir. Por “melhores”: os que fazem rir e o fazem com algo a seguir: espirituosidade, carisma, o inusitado, reversão de expectativa ou, muito raro, tudo isso junto; já num nível maior de inventividade, boas comédias fazem rir com situações que evoluem e se entrelaçam a ponto de expor os personagens a um confronto com seus próprios valores – mas aí já é exigir muita sofisticação para os dias de hoje. Há, também, apelação numa boa comédia, mas quando surge, vem a serviço de algo maior. Não é o caso de comédias baseadas em pobres macaqueando ricos ou em bichinhas afetadas – por maior que seja a bilheteria, jamais estarão entre as melhores, pois cinema é arte e arte é invenção – não algo que qualquer um pode fazer em casa (imitar uma bichinha, um bêbado ou um político mentiroso, fingir-se de mulher, etc).

“Se Beber Não Case” tem argumento que funciona : marmanjões se comportam como adolescentes imbecis e descobrem, aos poucos e junto com a plateia, situações loucas em que se envolveram: tigre, Mike Tyson, casamento com prostituta. “Intocáveis” se baseia na inversão de expectativa e carisma: o ultra carismático cuidador do tetraplégico faz piadas com sua deficiência e o outro adora. “Borat” é pura, e ótima, porrada no politicamente correto, assim como “Ted”, que acrescenta o inusitado: um ursinho fofo fala palavrão, fuma maconha e faz farra com putas! Enfim, mesmo as melhores comédias atuais baseiam-se em muito pouco além da surpresa ou do politicamente incorreto.


Mas houve um tempo em que havia comédias que tinham, ao mesmo tempo, todos os motivos para rir, inclusive os mais sofisticados - Lubitsch, Billy Wilder, Howard Hawks e, mais recentemente, Woody Allen fizeram comédias ainda hoje atualíssimas e muito divertidas, como “Ser ou Não Ser”, “Se Meu Apartamento Falasse”, “Jejum de Amor”, “Sonhos de Um Sedutor” e outras tantas maravilhas.


Eis que, em pleno século 21, no inferno de um calor insuportável, surge uma verdadeira maravilha: “Um Amor a Cada Esquina”, de Peter Bogdanovich, um misto de diretor (do clássico “A Última Sessão de Cinema”) e cinéfilo (está em tudo que é documentário sobre cinema), uma maravilhosa homenagem às comédias, mais explicitamente à Bonequinha de Luxo, e aos diretores do século passado. Estão presentes a estética (os créditos, por exemplo, são exuberantes e nos fazem viajar no tempo), a inteligência, a delicadeza e os “entra e sai”, as surpresas e aquelas situações engenhosas, hoje tão raras. Não pense que, por isso, o filme seja “elitista”, do tipo que só ri quem entende de cinema. Nada disso: é uma comédia descarada, que não se importa em usar de todos os tipos de recursos para fazer rir, inclusive abrir e fechar portas e mulher escondida no banheiro. E o povo no cinema ri o tempo todo.


Uma celebridade (mulher nova e linda) dá uma entrevista contando como chegou aonde chegou (não sabemos exatamente aonde chegou ou o que faz). O filme alterna trechos dessa entrevista e os fatos que a moça narra, de 4 anos antes. Era uma garota de programa que recebeu 30 mil dólares de um cliente (ela não sabia de quem se tratava), sob a promessa de sair da prostituição para dedicar-se a seu sonho de ser atriz. Ela larga a “vida fácil” e parte para seu sonho. Num teste para peça na Broadway, descobre que o diretor é justamente o cliente generoso e sua esposa, uma das atrizes. Está feita a confusão, e não precisava de mais nada para sair boa coisa, mas a confusão aumenta a cada personagem que aparece, todos com relevância na trama e, de diferentes formas, engraçadíssimos e bem interpretados.


Um filme de lavar a alma, com direito a fantásticas piadas finais, uma a 30 segundos do final (o desfecho da personagem principal) e outra em seguida – cena de um filme antigo que aumenta e ressignifica uma piada que permeou todo o filme (nozes e esquilos...) – a pérola, a cereja do bolo.

“Um Amor a Cada Esquina” é uma imperdível golfada de vida, beleza, inteligência e frescor no cinema, daquelas comédias para assistir e reassistir, sem vergonha, indefinidamente, sempre com imenso prazer.

sábado, 3 de outubro de 2015

100 ANOS DE ORLANDO SILVA

Orlando Silva

Houve um tempo em que havia elegância. Não sei se foi o tempo de pardais, de verdes nos quintais, quando ainda havia fadas, mas a contar pelas imagens que o Google nos mostra das meninas aladas, ah, sim, havia elegância.

Também não sei ao certo se o tempo em que havia elegância era aquele mesmo, dos galos, noites e quintais, antes do mal que a força sempre faz, mas creio que sim, a contar pelo que evoca a imagem de um galo cantando, tendo ao fundo, no residual escuro do céu, as estrelas mais resistentes ao iminente nascer do sol, este sim, em toda sua ardida e ferina deselegância.

O fato é que houve um tempo em que havia elegância, disso não há dúvida, a contar pelo fato de que um cantor mirrado e feio, ou, para os policiais dos sentimentos alheios, um cantor desprovido de formosura, fez um estrondoso sucesso tendo como base apenas a voz, não um vozeirão de arrasar quarteirão, mas uma voz sutil e magicamente elegante.

Orlando Silva, o Cantor das Multidões, não tinha essa alcunha por acaso ou por exagero. O cara lotava estádios, levava mais público, em Belém, que o Sírio de Nazaré, levava mais gente às ruas do Rio que uma praia aos 40 graus, cidade maravilha purgatório da beleza e do caos.

Orlando Silva parece ter sido o primeiro fenômeno de massas da música brasileira, e isso tudo sem uma voz potente, como tinham os cantores de sucesso à época, sem corpão sarado, sex appeal ou a cara de bonitão de um Vicente Celestino.
Vicente Celestino

Orlando Silva, que hoje completa 100 anos (“completaria” o cacete – tá certo que ele morreu há quase 40 anos, mas nunca o conheci, e para mim, ele é a sua voz, que estou ouvindo neste exato instante, vivíssima), tinha uma voz impressionantemente calma, se é que calma é um adjetivo apropriado para classificar a voz de um cantor, e se não for, a partir de agora passa a ser. Basta ouvi-lo cantar e nossa alma fica leve, flutuando. Isso, ele tem voz flutuante, outro adjetivo perfeito. A forma como ele trata as vogais, sem esmurrá-las, pegando-as, com carinho, lá em baixo e levando-as aos céus, ecoando-as como as trombetas do paraíso, modulando-as sem sacolejar, para depois devolvê-las para baixo novamente, suavemente, repousando-as ao som doce da melodia, uau, é fantástico.

Ouvir Orlando Silva é fazer essa viagem. Isso é elegância pra mais de metro!

Seus sucessos mais conhecidos hoje são “Rosa” (tu és divina e graciosa, estátua majestosa...), “Carinhoso” (meu coração, não sei por quê...) e “Lábios que beijei” (lábios que beijei, mãos que afaguei), mas minha preferida é “Apoteose do Amor” (ouça no link acima), uma deslavada declaração de amor cheia de metáforas e imagens belíssimas, com uma melodia inspiradíssima e uma interpretação... O que dizer da interpretação? Ah, já disse - escrevi aquilo (céu, trombetas, etc) ouvindo justamente Apoteose do Amor, na qual, por sinal, há um verso que se refere ao que hoje chamaríamos de chupar os peitinhos, mas, como disse, era um tempo em que a elegância falava mais alto:

São dois lírios os teus seios alabastrinos

Quase divinos, parecem feitos para os meus beijos...

Caso queira acompanhar a música ouvindo a letra, há dois erros absolutamente bizarros em todos os sites de letras de músicas – não sei de onde tiram exatamente os mesmos erros. No lugar de Muito almejo dos lábios teus o dulçor, colocaram Muito almejo dos lábios teus por um som! Isso mesmo. O cara ouve, não tem vocabulário para entender dulçor, e tasca um por um som. Que falta de elegância! E tem mais: no lugar de Minha alma mendiga amor, curvada aos teus pés, aparece um Minha alma, bendito amor, curvada aos teus pés. Oh céus! Mas ouça, que é de levantar vôo.

Houve um tempo em que os grandes artistas brasileiros eram devidamente homenageados no centenário. Duvido que hoje apareça em destaque o centenário do maior cantor brasileiro de todos os tempos, e cantor dos mais populares, como já desse, mas, com o perdão da deselegância, se o Ximbinha tá ou não comendo a Joelma, ah, isso tá em tudo que é canto dessa internet dos infernos. É deselegância prá mais de quilômetro!
Orlando Silva
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