terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Tio Moa viaja - Aqualung

Lá vai o terceiro disco de cabeceira do Tio Moa, um disco incrivelmente delirante, uma obra de altura e beleza insondáveis. Tio Moa viajou, viaja e viajará. Você, sobrinho amigo, que no aconchego do seu lar, nem imagina que está à beira de se transformar completamente, vai também viajar, tenho certeza, porque Aqualung, o disco, é absolutamente delirante. Ele te levará num mergulho dentro das suas entranhas, de onde você resgatará esse seu eu tão escondininho aí dentro, puxando-o à força, trazendo-o à tona. Aqualung é um modo de vida, é um grito de liberdade, de independência. Aqualung é rompimento, é Augusto dos Anjos roqueiro.


Aqualung é o topo da produção do Jethro Tull, um grupo britânico comandado por Ian Anderson, que misturava Rock, Folk, música celta, e sei lá mais o quê, numa alquimia nunca antes vista, nem depois. Se você, sobrinho do Tio Moa, pensa que nunca viu nem ouviu o Jethro Tull, se engana. Viu, ao menos uma imagem de um cara tocando flauta com uma perna só, a outra apoiada nela (manja fazer o quatro?). Vai dizer que nunca viu isso?

E também ouviu, ao menos a faixa título você ouviu. Se não ouviu, melhor se matar. Brincadeirinha, não quero ser acusado de incentivar ninguém a abreviar a existência. Pelo contrário, pretendo, com este pôsti, prolongar ao máximo sua existência, fazê-la ter valido à pena. Com Aqualung você se garante, você crava seu nome, dá sentido à sua vida.

O Jethro Tull foi um grupo irregular, com alguns discos ótimos, outros dispensáveis. Aqualung está a anos luz de ser dispensável e transcende em muito o “ótimo”. É único, é sublime. Um disco muito trabalhado, complexo em suas melodias e arranjos. Complexo e elegante, mas fácil de ouvir, porque belíssimo.

Começa à toda, com a faixa título. E já os primeiros acordes são incríveis e arrebatadores.

Paran pam pam pam pam... Sitting on a park bench... São acordes inesquecíveis e históricos. Uma voz cheia de maneirismos e inflexões vai falando do velho Aqualung, vagabundo, mendigo (ou ligeira, como eu chamava quando pequeno). Logo depois, quando fala com mais carinho, a voz, o ritmo e todo o clima são outros. E assim vai a música, maravilhosa, te arrebatando a cada inversão, a cada mudança, a cada solo, a cada movimento, sempre surpreendendo com beleza e emoção. No final, os acordes iniciais e o canto doído: oh oh oh oh Aqualuuung. É, sem dúvida, uma das grandes composições da história da música, em todos os gêneros. Mas não pense que o disco se resume à faixa título. De jeito maneira, diria a Tia Cinira, mineira.

Todo o disco é incrível. Acaba Aqualung e já entra Cross Eyed Mary (algo como Mary Vesga), mais um personagem estranho, mais uma sonzeira, com aquele “tum tururum turum tum” da guitarra e do baixo e aquela bateria deliciosa que vão marcando a voz rascante rockn’rollsíssima. Guitarras, flautas e piano compondo um som alucinante e riquíssimo.

Aí, depois das duas primeiras delirantes músicas, vem a Chep Day Return, uma belíssima e curta balada acústica, seguida pela acústica, mas um pouco mais agitada balada folk Mother Goose. Depois a deliciosa e Nickdrakeana Wond’ring Aloud. E assim o disco segue, com sons incríveis, melodias fortes, viagens alucinantes.

Ouvir e viajar com Aqualung é soltar o grito da garganta, é se libertar, é romper com sua limitada existência e marcar seu lugar entre os mortais, é dizer que ama a vida, a verdadeira vida, aquela de altos e baixos, de cumes e depressões, aquela com luz e escuridão, com sol e nuvens negras. Pense nisso enquanto estiver ouvindo Aqualung, Quando estiver na sétima música, My God, lá pelo terceiro minuto, quando entrar aquela guitarra num riff marcante, ultrapassando a limitação do belo, e depois, quando ela trouxer cantos gregorianos embalados por uma flauta mágica, perceba o quanto você é uma pessoa nova, mais rica, mais iluminada, mais criativa.

Depois, nas seguintes, dance e comemore. Oh, Pai que estás no céu, sorria sobre seu filho.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

ENTÃO É NATAL


Prá quem não me conhece sou Humberto Laraia, filho de escuridão e da rutilância, muito mais da escuridão que da rutilância, confesso. Escrevo aqui de vez em quando, quando tenho vontade, o que é raro. Fiquei sem escrever por mais de 20 anos, trancado dentro de um espelho. Se quiser saber mais, leia desde a parte um. Mas você não vai gostar, então não perca o seu tempo, embora seu tempo valha tanto quanto o que eu escrevo: rigorosamente nada.


Porque escrevo, então? Pela mesma razão que você vive; prá encher o saco dos outros. Estorvo que somos, vamos à crônica do dia, ou da noite, já que são 21h49 de uma noite insuportavelmente quente. Enquanto penso no que escrever, o suor me escorre pelas costas, provocando uma moderada irritação com os desígnios da humanidade, condenada a sofrer.


Confesso que na verdade sei o que vou escrever: sobre o natal, a época de comunhão, de harmonia e de uma chateação sem fim. Hoje vi, na livraria, uma mulher com uma irritante expressão de pessoa boa, como se alguma pessoa no mundo pudesse pleitear a si mesmo a insígnia de pessoa boa. Ela disse feliz natal, viu querida à caixa que a atendia. Tal expressão de hipocrisia me levou ao riso. Ri prá não chorar, como já o fizera Candeia e, depois, Cartola, sabedores que eram de que a vida é dor. Na verdade, ri porque rir era a única expressão possível, já que eu jamais choraria por ninguém, nem pela humanidade, que de mim não merece outra coisa senão o desdém e o escárnio.


Outra reação possível e bastante mais ajustada ao horrendo e gelatinoso sorriso magnânimo da mulher seria uma feição de poucos amigos ou uma expressão de desdém, mas tais expressões não demonstrariam nenhuma mudança em minha habitual expressão, já que carrego o desdém e a solidão, dentro e fora de mim.


Por isso, ri. Ri de escárnio, talvez de ódio. Mas, incapaz de ler e interpretar corretamente a fisionomia alheia, ao meu riso de escárnio a atenta, embora burra, senhora respondeu com um sorriso maior ainda, de maior benevolência e com um indefectível “feliz natal para o senhor”. Senhor é o cacete, respondi de pronto, em voz alta e olhando bem fixo em seus olhos. Pena que foi apenas na minha imaginação. A voz não saiu. Os mais de 20 anos dentro do espelho me tiraram a voz. Tenho que me concentrar muito para proferir alguma palavra inteligível (“entendível”, se fica mais simples para você).


Voltando à Sra. Hipocrisia, pergunto-me como é que uma pessoa que nunca me viu, que não imagina a vida que eu levo, que não sabe se roubei, estuprei, matei ou o diabo, que nunca mais vai olhar na minha cara, felizmente para os dois, como é que essa pessoa pode me desejar feliz natal? O que significa isso para ela? Que eu compre bastantes coisas e presenteie todo mundo que encontrar? Que na noite do dia 24 eu coma mais do que eu posso e que carregue no colo um parentezinho ranhento e cagão que nunca vi na vida? Que eu tome um porre homérico, vomite tudo e arrote o resto da noite, tudo isso junto com meus familiares queridos?


Ou será que a megera, quando deseja feliz natal a este sujeito que ela nunca viu na vida, quer dizer simplesmente que eu eleve meu coração ao alto e que pense em cristo crucificado que deu a vida por nós? Quem é ela para pensar que eu acredito nisso?


Quando estava dentro do e espelho, sentia uma enorme vontade de sair e esmurrar todo e qualquer mortal que tivesse um sorriso na boca e emitisse dela coisas como feliz natal ou fraternidade. Mas pensando bem, antes de entrar no espelho eu também sentia a mesma vontade. Agora, depois de sair, idem.


O que leva as pessoas a dizerem que querem bem às outras quando todos nós queremos mais é que os outros, principalmente os desconhecidos, se explodam? Os outros são um estorvo para nós. Precisamos que os outros se ferrem, que levem uma vida toda fodida (a merda do Word sublinhou em vermelho esta palavra, vê se pode!) para podermos, comparados a eles, ser um sucesso. Por isso é que no natal agradecemos a deus, que certamente nos ajudou, ferrando todos os outros para que fiquemos em destaque, portanto, felizes. A sorte é que tristeza não tem fim, felicidade sim.


Ainda de dentro do espelho, vi um filme ótimo, em que um alcoólatra que detesta natal e crianças, se veste de papai noel para roubar o shopping. Muito apropriado. “Papai Noel às Avessas” é o nome do filme.

Estamos em pleno dia 22 de dezembro. O que será que o bom velhinho pôs no meu saco de presente neste natal? A única coisa que posso sentir no meu saco neste momento é uma imensa coceira e um monte de esperma desesperado por um bom motivo para sair dali.


Bom, quem está fora do espelho é prá se molhar: feliz natal prá todos (figas).

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Tio Moa travels with Traveling Wilburys

Abri, num dos últimos pôstis, uma lista dos 10 melhores, digo, dos 10 discos de cabeceira do Tio Moa. O que é ser disco de cabeceira? Ora, vai te catar!
O primeiro foi Weaver, da Sally Oldfield, pelos motivos mencionados naquele pôsti.
O segundo vai aqui: Traveling Wilburys, o primeiro. Traveling Wilburys é o nome da banda do final dos anos 80, que por sinal surgiu por acaso. Um tal de George Harrison (sim, ele, o gênio dos Beatles, aquele cujas canções escreveu em parceria com Deus) queria gravar uma música para ser o lado B do seu single (aqueles discos pequenininhos que tinha antigamente).
Taí o Roy Orbison
Numa noite, George estava jantando com dois amigos. Jeff Lyne, seu produtor e também músico dos bons e Roy Orbison. Deus compunha melodias com George, mas cantava com Orbison. Roy Orbison foi o melhor cantor do mundo, segundo Elvis Presley, que por sinal cantava bocado e sabia do que falava. Até hoje, nunca ninguém cantou igual ao Roy. Quando ele canta, temos a impressão que a voz não é humana, ela nos eleva, nos coloca numa outra dimensão. Ela dá um peso, uma dramaticidade atroz. Para quem não o conhece, mas curte cinema, David Lynch gosta um bocado dele. Crying entra no Cidade dos Sonhos. In Dreams é tocada numa das cenas mais impressionantes de Veludo Azul. Ah, e Pretty Woman é a música tema de Pretty Woman (Uma Linda Mulher).
Onde estávamos? Ah, o jantar. George Harrison queria gravar uma música que estava na sua cabeça e, no calor do vinho e de sei lá mais o que, convidou Jeff e Roy (que andava em baixa há mais de 10 anos) para gravarem com ele no dia seguinte, um sábado. Envolvidos na mesma onda, concordaram entusiasmados. Mas onde? Como reservariam estúdio assim em cima da hora, da noite para o dia? Um amigo de George tinha um pequeno estúdio em casa. Ligou prá ele da cozinha do restaurante. Os cozinheiros pediam autógrafos enquanto ele falava com o amigo, Bob, o maior poeta que a música já produziu.
Na manhã seguinte combinaram de irem juntos no estúdio do Bob, mas no caminho se lembrou que tinha deixado sua guitarra na casa do Tom Petty, do Tom Petty and the Heartbreakers, uma banda muito boa dos anos 70 que varou os séculos. Bom, já que passaram na casa do Tom, chamaram-no para irem juntos gravar a música, ainda sem nome nem letra, na cada do Bob. Com tanta fera chegando, o dono da bola também tinha que entrar no jogo. No futebol o dono da bola normalmente é um menino rico que não joga nada mas tem a bola. Aqui o Bob dono do estúdio era o Dylan. Dono da bola, aqui, tem outra conotação, portanto.
E gravaram, animadíssimos, Handle With Care, que tem uma levada deliciosa à George Harrison, que canta a maior parte da música, com aquela guitarrada solta daqueles mitos, as vozes no refrão, inclusive A do Bob Dylan e, a cereja no bolo, o toque divino: Roy Orbison introduzindo o refrão. Sensacional!!! Veja o video.

George, Tom, Jeff e Dylan na cozinha. Roy de fotógrafo.
Quando George levou o resultado para a gravadora, os caras piraram. “O que? Um single? Com essa voz do Roy Orbison? Isso merece um disco inteiro”. Na hora, George ligou para os outros e todos concordaram em gravar um disco, mas tinha que ser em 10 dias, porque Bob Dylan tinha shows marcados. Decidiram compor e gravar, tudo em 10 dias, tudo a cinco mãos, ou melhor, a cinco bocas, dez mãos, 50 dedos, se é que algum deles não perdeu um por aí. Gravariam no estúdio do produtor de Bob Dylan, mas o estúdio era pequeno demais para os cinco gravarem juntos e ao mesmo tempo, como era a proposta. Mas a cozinha da casa era grande , então gravaram tudo ali mesmo, entre a pia, a mesa e a geladeira. Há um DVD com todo esse registro.
Bob Dylan, Tom Petty, Roy Orbison, Geoge Harrison e Jeff Lane
O resultado desses dez dias é delirante. Os cinco estavam em êxtase criativo. Quatro deles com um êxtase a mais: ver e ouvir Roy Orbison, ídolo de todos eles. Tom Petty diz num DVD lançado recentemente: “se você está sentado no sofá, trabalhando em uma canção e Roy está cantando, mesmo que ele cantasse em um tom suave, é um tom especial, um som especial, um grande presente. Sempre dizíamos isso a ele: 'Roy, você deve ser o melhor cantor do mundo. E ele dizia 'sim, eu sou'. Ele tem a melhor voz da música pop. Você não consegue superá-lo".
O disco é todo sensacional. Todas as músicas são deliciosas. As que Roy canta, são mágicas, como Not Alone Any More, capaz de emocionar até um poste... de concreto. Já ia me esquecendo de dizer que os músicos não assinaram seus nomes no disco, mas nomes fictícios, como se todos fossem da família Wilbury. Nelson Wilbury é George Harrison, Otis Wilbury é Jeff Lynne, Roy Orbison assina Lefty Wilbury, Charlie T. Jr. é Tom Petty e Lucky Wilbury é Bob Dylan.

O sucesso foi estrondoso e resolveram gravar mais um disco, mas Roy Orbison morreu de ataque cardíaco um pouco antes. Ainda assim eles gravaram o excelente Travelling Wilburys Volume 3, que dedicaram a “Lefty Wilbury”. Este segundo disco também merece lugar de destaque em qualquer prateleira. Mas a voz de Orbison no primeiro o leva, definitivamente, à disputada cabeceira do tio Moa.

Tome um treco bom e ouça todo o disco. Uma, duas, muitas vezes.


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