segunda-feira, 27 de setembro de 2010

TIO MOA E O EXCITANTE MUNDO QUE RODA

Não há mal que sempre dure, nem bem que nunca acabe. Na vida, tudo é passageiro, com exceção do motorista e do cobrador. Há uma surpresa a cada esquina. Nada é impossível. Viver é sonhar. E chega de frase feita por hoje.

Minha Irmã, como toda mãe, sempre sonhou com a nora ideal. E encontrou. A surpresa é que a nora com a qual minha irmã sempre sonhou é o David. Eles, David e meu sobrinho, estiveram em casa por uma semana, deixando um vazio quando se foram. David cortou meus cabelos, iniciando mais uma mudança na minha vida, já que passei 10 anos eu mesmo deixando-os, à máquina, rentes, sem ondas, sem picos e depressões. Enfim, sem nada que lembrasse uma vida humana. David me recuperou como ser humano.

Mas meus cabelos já cresceram e como não quero mais cortar à máquina e nem procurar um salão, resolvi deixar que o salão me achasse. Sabia que o acaso me ajudaria enquanto andasse distraído (desculpe por essa). Sábado fui a um sebo, onde comprei uns de discos de vinil. Ao sair do sebo o que vi na frente? Um salão. Olha o acaso aí! Mas, portador da síndrome das pernas inquietas que sou, só cortaria se fosse na hora, sem espera. E lá estava a Cleide, prontinha, me esperando. Entrei naquele salão cheio de mulheres de sábado e me sentei. Bem atrás de mim, posição que o espelho gentilmente alterou, estava ela, na minha frente no espelho, branca, linda, como banhada por uma luz celestial, Glauce Rocha, a Sara de “Terra em Transe”. Uma encarnação, é claro, pois ela morreu em 1971. A mesma beleza estranha, que não sabemos explicar, não convencional,  os mesmos olhos meio fechados, uma beleza poética. Era, na verdade, mais bonita que Glauce, a minha Glauce (será que um dia saberei seu nome?). Eu não conseguia parar de olhar para ela, para aqueles olhos maravilhosos, aquela expressão indefinível, que me arrebatou. Aquele corte podia durar anos, eu ficaria alí, olhando para ela... Mas não há mal que nunca acabe nem há bem que sempre dure. Ops, outra frase feita. Mas o fato é que a minha Glauce foi embora como se foi a primeira, assim, de repente. Esta eu espero voltar a ver. A outra, só nas incontáveis vezes em que verei Terra em transe.

E já estamos no domingo, pé de cachimbo, um calor danado, sem chover há meses, ouvindo os discos que havia comprado na véspera. Enquanto ouvia, cozinhava um sopão de legumes e uma canja, para serem congelados em porções individuais e servirem de jantar nas próximas duas semanas. Mesmo com todas as janelas abertas, nada de vento, e aquele calorão. Vento não havia, mas surpresas, sim. Coloquei na vitrola (é o máximo poder dizer isso) o álbum “Rapsódia Rock” do guitarrista Robertinho do Recife, e fui para o fogão. E não é que o rapaz teve a petulância de, na minha sala, tocar, apenas para mim, ele bem sabe, o “Noturno No 10”, de Chopin? Sabe o que significa isso? Vou explicar.
 Tio Moa não teve pai, o que o envergonhava muito na época em que era apenas um raquítico sobrinho. E sempre aparecia um coleguinha estúpido que perguntava “o que o seu pai faz?”. “Não tenho pai”. “Não tem?”, como se não ter pai fosse a coisa mais estranha do mundo. “Não”. “Ele morreu?”. “Não”. Que saco! Aquilo estragava o dia, a semana e o mês. Que graça podia ter falar do pai? Porra, fala do primo, do joguinho, do chinelo novo, da Ponte Preta, fala até do Guarani, mas vai falar justo do pai... “Meu pai é vendedor” (mas que cacete, quem perguntou?), “meu pai é engenheiro” (e daí, imbecil?), “meu pai me levou ao zoológico” (prá ver seus parentes, animal?). Mas que merda, aqueles idiotinhas não tinham outro assunto?

Nesse contexto, cresci vendo, dezenas de vezes, o filme “Melodia Imortal”, em que Tyrone Power interpreta o pianista Eddy Duchin, cuja belíssima esposa (Kim Novak), morre e deixa um filho pequeno. Eddy não consegue encarar o filho e o abandona. Boa parte do filme envolve a tentativa de reencontro do filho com o pai. E quando conseguem se aproximar... bom, deixa prá lá. Fora o tema, caríssimo ao Tio Moa, o filme tem momentos musicais impressionantes, com destaque, é claro, para quando ele toca o Noturno de Chopin ao piano. O filme, recentemente lançado em DVD, é tristíssimo, daqueles que a Fernanda adoraria (sabe as pessoas normais, que quando vão ao cinema compram pipoca, bala ou outra coisa qualquer? Pois a Fernanda adora comprar lenços de papel. E oferece prá quem tiver do lado, como se oferecesse pipoca).
 Pois naquele calor abafado, enquanto cortava os legumes, o Robertinho do Recife, lá na sala, cometeu o despautério de levar o Noturno na guitarra... E eu nem tinha visto que ela estava no disco. Fantástico. Pepê e Amelie me olharam do chão com aquele ar de pergunta. Respondi que não era nada, que era a cebola...

Mas tudo passa, tudo sempre passará... E o próximo disco, outra surpresa: comprei, meio sem saber por que, um disco do chato do Ivan Lins, “Juntos”. O disco é sensacional. Tem seus grandes clássicos interpretados em duetos, com participações especialíssimas, como por exemplo, George Benson e sua guitarra mágica, Patty Austin, Paulinho da Viola, e por aí vai. Um disco de forte viés jazzístico, ultra bem produzido, inclusive capa e encartes, privilégios indiscutíveis do vinil. Mais uma grande surpresa do final de semana.


Beatles são o máximo. E entre os máximos dos máximos está “Because”, talvez a melhor da dupla Lennon/McCartney. Comprei um disco do MPB4 e Quarteto em Cy. 

Gosto dos rapazes, mas as moças eu acho uma chatice. Mas pensei que, juntos, talvez saísse legal. Não saiu legal, saiu uma obra que faz os seus ouvidos se sentirem importantes. Aquelas oito vozes, com as opções de repertório e com os arranjos delicados, chamam seus ouvidos de Vossa Majestade. Parei tudo na cozinha e sorvi até a última gota, do disco e da taça de um ótimo espumante. Pois bem, se o disco todo é ótimo, há ali uma pérola, um diamante: “Because”, que as meninas cantam com os ricos ornamentos vocais dos rapazes. Parece ser uma versão definitiva. Um achado surpreendente.
 Passado tudo isso, comida pronta e o mesmo calorão e falta de vento. Mas acertei em cheio uma maravilhosa sopa de legumes e uma canja de tia. Tenho comida noturna para duas semanas ou mais.

Aí, antes de almoçar, recostei-me ao sofá esperando um ventinho, que não veio, e peguei a Folha de domingo: mais uma surpresa, deliciosa para quem é cobraparadista, ou seja, para os que não aceitam calados os abusos fascistas de poder. Um editorial de primeira página. Os editoriais sempre são na página 2, nunca na capa, salvo em ocasiões extraordinárias. Nem me lembro quando foi a última. E lá estava, em letras grandes, o editorial, de cima a baixo. O título: “Todo o poder tem limite”. Belíssima surpresa. Surpresa porque já estava achando que só eu e o Alberto, fora os terroristas de direita (como bem os classifica o Fábio), víamos na postura do Lula e do Governo um autoritarismo brutal e um fascismo desenhando uma ditadura. Vivas a mais essa do final de semana. Vejam, à esquerda, o final do editorial, à Cobra Parada!
 Bom, para fechar esse post, chatíssimo para quem não é o próprio Tio Moa, uma matéria na Folha sobra a mulher mais maravilhosa que existe em toda a terra neste momento: a mais linda e inteligente e instigante e ácida e diferente e sensualíssima e tudo mais. Trata-se da Alessandra Negrini. Ela seria minha eterna cabeleireira, isso já antes de eu ler o que li, pois adivinhava o que havia ali dentro daqueles olhos. Mas veja o que ela disse na matéria (as palavras em caixa-alta são da própria matéria):

"Quero estudar cinema, filosofia. E quero produzir uma peça. Você só faz o que quer quando produz."
"Fazer cinema de autor, de experimentação, é um sonho. Me sinto sempre começando"
"Não gosto dessa coisa de GERAÇÃO SÁUDE, essas paranóias. Essa DITADURA de alimentação saudável, ah, que encheção de saco"
"Nunca fui abandonada. Mas esse PEITO ARDENDO eu sei o que é. Todo mundo sabe o que é a FALTA de alguém"
 Agora, quem sabe de mim, me diga: ela é ou não é, para quebrar de vez a promessa das frases feitas, a outra metade da minha laranja?

"Venha, Alessandra, venha fazer cinema de experimentação comigo. Venha, vamos refundar o Cobra Parada Não Engole Sapo, que eu te apresento o Panta, o Gilsão e até o Markovitch. Venha refrescar esse seu peito ardente em casa, que eu tenho uma geladeira nova, com um freezer imenso, onde couberam 10 porções de sopa de legumes e 6 de canja. Venha viver comigo, que nunca te faltarei, a não ser quando meu chefe me chamar para uma reunião (ele é meio workaholic). Alessandra, isso é um pedido público de casamento. Você só tem a ganhar, inclusive um neto postiço logo de saída! Com amor, Tio Moa".

Foi assim, viajando, no sofá, após o trabalhão das sopas, o calor e as taças de rosé, que fechei os olhos, pensando que algo assim não pode, não deve ser impossível. Momento relax, peguei de volta o disco do MPB4 e Quarteto em Cy, coloquei direto na maravilhosa Because e fechei os olhos com a imagem da Negrini enfeitando minha imaginação.

Because the world is round it turns me on
Because the world is round...aaaaaahhhhhh
Because the wind is high it blows my mind
Because the wind is high......aaaaaaaahhhh
Love is old, love is new
Love is all, love is you

Porque o mundo é redondo que me excita/Porque o vento está forte que sopra minha mente

O amor é velho, o amor é novo/O amor é tudo, o amor é você

Neste momento começou a ventar, um vento fresco, quase gelado, que pensei trazer um cheirinho de chuva. Abri bem pouco os olhos e vi a Amelie me olhando com cara de pergunta. Mas o vento continuava, delicioso,  balançando as plantas da varanda, além da qual pude ver o céu encoberto e nuvens espessas, o que não se via há meses.

E pur si muove... o mundo...

domingo, 26 de setembro de 2010

A incrível história do CPNES - Parte 7

GILSÃO PARTE 2 -  A REDENÇÃO DOS GUERREIROS PANÇUDOS
 
No capítulo anterior você conheceu o Gilsão e o viu colocar umas escaraminholas na cabeça do Dr. Sócrates, antes de desmaiar de fome.
Pois saiba que quando ele abriu os olhos, viu que estava num hospital, com soro no braço. O Doutor Sócrates dava ordens às enfermeiras, mais interessadas no autógrafo do que em ouvir suas prescrições. Quando se despediram, Gilsão agradeceu muito, mas Sócrates disse que ele é quem deveria agradecer.
Osmar Santos ao microfone, com Sócrates, FHC, Casagrande e
Adilson Monteiro Alves (diretor de Fuebol do Corínthians)

Depois daquilo, Sócrates passou a ser um importante ativista político, além do brilhante jogador que sempre fora e, nisso, o Gilsão, emérito perna de pau, em nada influenciou. Sócrates liderou o primeiro movimento efetivamente popular que ocorreu em toda a ditadura. Nenhum outro movimento político tinha colocado o chamado “povão” na história. Naquele início dos anos 80, em plena ditadura militar e justamente no meio mais atrasado e conservador, o futebol, e ainda por cima num dos dois times mais populares do país (o outro é a Ponte Preta ou o Flamengo, não estou bem certo), nasceu a chamada Democracia Corinthiana (o nome foi dado por Washington Olivetto), movimento liderado por Sócrates e diretamente apoiado por Wladimir e Casagrande, os maiores ídolos do time. Foi um período da história do clube onde as decisões importantes, tais como contratações e regras da concentração, eram decididas pelo voto, ou seja, era uma forma de autogestão. Era um movimento interno do time, mas cuja intenção era, evidentemente, suas repercussões e influências externas. O Corinthians foi o primeiro clube a veicular dizeres publicitários na camisa, como "diretas-já" e "eu quero votar para presidente". Isso no período da ditadura militar, quando os movimentos sociais começavam a se rearticular para a instituição de uma democracia.

Vale do Anhangabaú no comício pelas "Diretas Já"
 Os militares pediram moderação ao clube. Imaginem o impacto que tinha aquilo: a camisa do Corinthians pedindo democracia... Os resultados disso? Imensa participação popular no movimento das Diretas Já, especialmente em São Paulo e, para o Corinthians, muitos títulos e impressionantes resultados financeiros.

Nessa época o Gilsão já estava em Brasília, onde, logo no início, instituiu-se a trinca Gilsão, Panta e Tio Moa, que na época era sobrinho. Todas as noites, primeiro no Bar do Ermenegildo e depois no Bar do maravilhoso Carlão, estruturavam suas ideias, que iam do ativismo político-estudantil à filosofia, passando pela astrologia, supra mundo e supra-realidade, deixando Romeu, um observador contumaz, atônito. 

Gilsão era visto pelos militares, mal sabiam eles, como alguém muito confiável, provavelmente devido ao seu jeito circunspecto e responsável, além de sua lábia! No outro extremo, com suas madeixas desalinhadas, bonés, faixas e sua falca cortante, Tio Moa, que na época era sobrinho, era visto pelos homens de farda com muita preocupação. Assim, quando começou a efetivar a idéia de montar uma peça de denúncia e protesto, ainda que disfarçada de comédia despretensiosa, Tio Moa, que na época era sobrinho, sabia que o grupo deveria ser eclético e ter alguém em quem os coronéis pudessem confiar, alguém acima de qualquer suspeita.
 Quem seria esse alguém? Isso mesmo, espertíssimo leitor: o Gilsão. A peça “Nosso Reino” (titulo inspirado na peça “Nossa Cidade” de Thorton Wilder), escrita pelo Tio Moa e pela Rosaflor, ironizaria a instituição e seus comandantes e denunciaria as condições às quais estávamos submetidos. Haveria um Rei, claramente inspirado no coronel-mór, mas quem haveria de ter coragem de interpretá-lo e tirar aquele sarro do Todo Poderoso? Vamos, arguto leitor, quem você acha que falou “deixa comigo, eu faço... Minha pança é igualzinha”? Isso mesmo: o Gilsão.

Mas na hora de fazer os cartazes e folhetos, que para nós tinham a força de panfletos revolucionários, percebemos que aquilo tudo não era apenas uma peça, mas o começo de um ousado, e até um pouco irresponsável, movimento de um grupo que não queria parar por ali, que queria continuar fazendo arte e resistência. Precisávamos, para marcar território e mostrar força e articulação, de um nome para o grupo. Tio Moa, que na época era sobrinho, só sabia que o nome deveria ser forte, interessante, engraçado e provocativo, como, aliás, deveria seria tudo o que fôssemos fazer.

E numa noite, voltando de ônibus para nosso empoeirado campo de concentração, em pé no ônibus, alguém falou: “Que tal ‘Cobra Parada Não Engole Sapo’?”. Tio Moa, que na época era sobrinho, sentiu-se em êxtase. Sensacional, era aquilo, sem dúvida. Agora, sagaz leitor, queria adivinhar quem sugeriu aquele forte, interessante, engraçado e provocativo nome? Acertou de novo: o Gilsão.

E de onde veio o Gilsão? De onde ele tirou toda aquela capacidade de lutar pelo que é justo? De onde tirou toda aquela capacidade de atrair com aquele sorriso amigo e fraternal, para depois influenciar pelo seu discurso? Pois vou dizer de onde: o geográfico leitor certamente sabe que no desenho do estado de Mato Grosso tem um biquinho, ao norte. Pois lá perto existe uma terra mítica chamada Juína, onde, diz a lenda, o espírito da índia Jussara pairava no ar para abençoar os índios pançudos e roliços da aldeia Tanyguá, para que vencessem as batalhas contra os invasores que, em nome do progresso, queriam destruir tudo o que viam pela frente: mata, bicho, gente. Evidentemente, sem a ajuda de Jussara, jamais os roliços pançudos conseguiriam vencer. Jussara os inspirava ao mesmo tempo em que amedrontava os invasores. Com o tempo, entretanto, mais homens brancos do progresso chegavam, cada vez com mais tratores, armas e fogo. Um dia trouxeram uma estrovenga giratória e liquidaram com tudo, ababou-se a guerra.

Os poucos sobreviventes migraram para o interior de São Paulo. Lá, em Dracena, muito antes que eu nascesse, nascia o Gilsão, descendente daqueles bravos, simpáticos, sorridentes, roliços e pançudos guerreiros indígenas. Gilsão nunca esteve em Juína, mas Juína sempre esteve em sua alma (e no corpo também, como se nota). À sua primeira filha, deu o nome de Jussara. Já o Tio Moa chamou de Taniguá a sua primeira filha, em inconsciente homenagem ao seu eterno irmão de luta por justiça. A pança que hoje o Tio Moa ostenta, também é uma homenagem ao Gilsão, ilustre cobraparadista.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

A incrível história do grupo CPNES - Parte 6

O EFEITO BORBOLETA  E A HISTÓRIA DO MEMBRO NÚMERO 6

Ontem fui a um show do João Bosco. Ele é um músico elegante e impecável. Só ele e o violão. É pouco? Hum hum. É muito! Só seu violão já bastaria, grande instrumentista que é. Só a sua voz também. Juntos, são mais que eu pensei, é mais que sonhava! Sua voz é aveludada e ele a usa de diversas formas dentro da mesma música, modulando seu canto ao sabor da alma. Ver João Bosco cantando é como ver um saxofone que fala. O show homenageia os 40 anos de parceria com Aldir Blanc, um letrista mágico, capaz de escrever uma coisa assim:

Eu aprendi que a alegria
De quem está apaixonado
Écomo a falsa euforia
De um gol anulado
Se, como diz a letra, o fogo da paixão se apaga rápido, vamos logo aos nossos propósitos, antes que se acabe a minha imaginação... Não parece, mas eu tento colocar nos textos o máximo que eu posso de criatividade e imaginação. Mas vê-se que não consigo. Não sou poeta e fim de papo. Não sou alegre nem sou triste, sou jornalista (essa tentativa de paródia da Cecília Meirelles foi de doer - tá vendo como não sou disso?). Narro os fatos. O pouco de imaginação que tenho, gasto tentando escrever certo as palavras, construir as frases com um mínimo de lógica e separar um texto em parágrafos. Acho que é por isso que o Chico Buarque e o Saramago não ligam muito para parágrafo: não devem ter muita imaginação. Assim, não a gastam estruturando frases e parágrafos e também não ligam muito prá ponto e vírgula, não.

Então eu poderia fazer como eles e guardar minha escassa criatividade para criar histórias legais, inventivas, cheias de criatividade e imaginação. Tentarei:

Quem afinal sou eu para querer dar uma de saramago que por sinal nos deixou há pouco ou mesmo quem sou eu para dar uma de chico buarque que foi com sua poesia sua melodia e principalmente com sua postura o meu ídolo musical na adolescência quando eu tinha um caderno com as letras do chico escritas a mão é claro e só de ouvir as musicas parar e ouvir de novo até entender todas as palavras e ainda tem aquelas que a gente não entende nunca imagina agora você aí sobrinho do tio moa imagina um tempo em que não tinha letras de músicas disponíveis na internet nem em lugar nenhum aliás nem havia internet meu deus do céu como é que podíamos viver daquele jeito só mesmo escrevendo as letras de ouvido parando a musica toda hora para passar para o papel e você passava a vida toda achando que a letra dizia vou comer o amigo e vinte anos depois você descobre que a letra dizia vou com o meu amigo.

Esse parágrafo foi de doer, não foi? Está vendo como não posso me comparar a Saramago e Chico? Tudo bem, você sempre soube que eu não posso me comparar a eles. É exatamente por isso que prefiro gastar a imaginação estruturando o texto, o que mal consigo. Contento-me em narrar os fatos, sem floreios, sem invencionices ou licenças poéticas. A verdade, acima de tudo. Por exemplo, quando penso na história do Cobra Parada, tudo é tão real e concreto que eu posso afirmar que não existe outra maneira de contá-la senão esta que empreendo. E se começo com parágrafos meramente decorativos à primeira vista, saiba que eles nunca estão lá à toa. Sua utilidade é, através de exemplos reais, inserir o leitor atento no contexto em que vivíamos, e contar como o futebol, a arte e a atitude corajosa podem influenciar toda uma cidade, um país e o mundo. Sabe aquela história da borboleta que bate as asas aqui e acontece uma puta ventania do outro lado do mundo? O tal do efeito borboleta? Esquece, bobagem, tolice, dê o fora. Nada disso. Não é qualquer movimento que influencia, não. Precisa haver uma soma muito grande de talento, postura, ousadia e criatividade, além de uma descomunal ajuda do acaso.

O ACASO - E foi por acaso que uma determinada pessoa, após passar o dia inteiro estudando para uma prova que faria no dia seguinte (resistência de materiais, disciplina chatíssima do curso de engenharia civil, que fazia na Unicamp, em Campinas), no fim da tarde e mega-cansado, foi direto para o quarto de pensão onde morava. Dormiu até as 9 da noite, quando acordou para ouvir no rádio o jogo do seu time, o Corinthians, contra a Ponte Preta (ficou 1 a 1, gol de Sócrates). Depois sentiu uma baita fome, pois não havia comido nada o dia inteiro, e uma vontade louca de tomar uma cerveja. Geladeira zerada, acabou no bar do Vadico, na Washington Luiz, famoso pelo seu sanduíche de pernil. Essa determinada pessoa, de quem hoje vou falar, é o sexto membro do CPNES, um grupo cuja atuação, como você sabe, no início dos anos 80 mudou a cara de Brasília, do Brasil e, por conseqüência, do Mundo, no campo das artes, da política e da filosofia.

Membro número 6. O bar do Vadico era o reduto de seresteiros, boêmios e senhores da vizinhança, dentre os quais estava um famoso repórter esportivo de Campinas, o Renato Silva, que fazia, na Rádio Brasil, uma sensacional dupla com Sérgio Salvucci, comentarista dos jogos e âncora do programa esportivo. O bar era também o socorro de famintos da madrugada, e nessa condição estava o nosso estudante da UNICAMP, verde de fome. Aliás, verde não, porque é a cor do inimigo Palmeiras. Gilsão estava roxo de fome. Tomava a segunda cerveja, já meio alegre, e nada de vir o tradicionalíssimo sanduíche de pernil. Naquela noite havia só um chapeiro e muitos pedidos. Mas o astral do bar era bom, e Gilsão estava branco, suando de fome, mas com tanta alegria de viver (quem gosta de cerveja sabe do que estou falando) que chegou a pensar que mesmo que morresse de fome antes de o sanduíche chegar, morreria feliz.

Era prá lá de meia-noite quando Gilsão, tentando matar a fome com o cheiro de pernil que o bar exalava, ouviu o chapeiro gritar “olha o pernil da mesa 8”. Aquilo o deixou mais desesperado ainda de fome. Sabe quando você está super apertado, mas vai conseguindo segurar, mas quando chega pertinho da sua casa o negócio parece que vai sair? Era assim que ele se sentia vendo o seu gigantesco sanduíche de pernil sobe o balcão, à espera do garçom. Quintuplicou sua fome.

Nisso, entra no bar o Renato Silva acompanhado de dois magricelos altos. Os dois de cabelos encaracolados, um deles cheio de buracos na cara. Aquela visão fez o Gilsão engasgar a cerveja geladíssima que tomava. Olhou sua mesa e viu as 3 garrafas vazias, como a se perguntar se era o efeito da cerveja ou se ali realmente estavam entrando, e ocupando a mesa ao lado da sua, o Sócrates e o Casagrande. Os dois eram tão naturais àquele ambiente que mal foram notados, ou talvez aquele fosse um costume do Renato Silva, que, ficando junto ao gramado e entrevistando jogadores, era próximo o bastante dos jogadores para levar os mais boêmios ao Vadico. Naquela época não havia o patrulhamento sobre a vida pessoal dos jogadores como há hoje. E do jeito que o doutor Sócrates e o Casão gostavam de enxugar...

Gilsão, com um olho no sanduíche e outro nos seus ídolos, veio com aquela sua típica expressão de resmungo escandalosamente amistoso: “PÔ, MEU, eu não sou de tietagem, não, mas você vem sentar JUSTO do lado de um corintiano?”. “Corintiano! Viu o jogo?”. “Não, ouvi pelo rádio, o locutor disse que você fez um golaço”. “Golaço nada, até você fazia aquele gol”. “Como até eu? Tá me chamando de gordo?”. “Robusto”. Sócretes tem muito bom humor.

Casagrande tinha ido direto ao banheiro e o Renato Silva estava no balcão pedindo os sanduíches para os três. Enquanto isso e com o Gilsão quase desmaiando, o garçom finalmente pegava o sanduíche do balcão e punha na bandeja. Logo estaria alí, na mesa, à sua frente.

Com a proximidade do momento de abocanhar aquele maravilhoso pernil, Gilsão sentiu a boca se enchendo de saliva; estava literalmente babando quando Renato Silva volta à mesa ao lado e disse que ia demorar um pouco, que o pernil acabou e iam buscar “lá na casa deles”, que ficava “logo ali”.

Nisso o garçom vem chegando com o sanduíche do Gilsão.

Casagrande chega do banheiro, muito agitado, e senta à mesa.

O garçom põe o sanduíche na mesa do Gilsão.

“Será que demora muito?”, perguntou Sócrates, olhando, sem querer, para o sanduíche do Gilsão.

Gilsão, mesmo morrendo de fome, gostaria que a conversa com o ídolo rendesse mais e pensou rápido: o sanduíche é grande, já vem dividido em dois e metade já aplaca a fome e me impede de morrer.

“Pô, rapaz, eu tô morrendo de fome”, comentou o doutor Sócrates.

Foi do que o Gilsão precisava. Ato contínuo emendou ao ídolo: “quer metade do meu?”

“Quero”. “Quero”. Não se iludam, leitores ingênuos. Não foi Sócrates repetindo. Um “quero” foi do Sócrates, sim, mas o outro, simultâneo, foi do Casagrande.

“Fudeu!”, pensou Gilsão, que congelou por alguns segundos. Como recusar a metade a um dos dois? Falar “nada disso, eu ofereci só prá um”? Por instantes Gilsão pensou em dar uma de louco, agarrar seu sanduíche e fugir correndo dalí. Suava de fome. E foi chorando por dentro e entoando para si, como um mantra, “sou um imbecil, sou um imbecil” que o Gilsão esticou os braços, oferecendo uma metade para cada um. Casagrande caiu em cima na hora. Sócrates ainda foi polido: “Não, você vai ficar sem nada?”. “Não tem problema, eu jantei bem”. “Então quando vier o nosso, um é teu”. “Tranqüilo, dá prá esperar”.

Mas não deu. Meia hora depois, Gilsão, fraquíssimo de fome, viu Sócrates, Renato Silva e Casagrande ficarem embaçados, escuros, até que tudo se apagou. Mas antes disso deu tempo para o Gilsão falar, enquanto os dois comiam. Falou do interior, de seus antepassados do norte; disse que nunca os conheceu, nem à região, mas que sonhava com aqueles rios, com Juína, com os barcos; disse que "Ita" são os barcos, que são chamados assim porque seus nomes sempre começavam assim: Itaimbé, Itaberá, Itapuca, Itagiba, Itapuhy, Itassucé. Para ilustrar, cantou, com Renato Silva ao violão, uma música de Dorival Caymmi que ele adorava, “peguei um ita no norte”. Gilsão também cantou o clássico do Belmonte, “Saudade da minha terra” (de que me adianta, viver na cidade, se a felicidade não me acompanhar) e “O bêbado e o Equilibrista”, do João Bosco e Aldir Blanc (lembra dos parágrafos iniciais deste post?). Sócrates se emocionou e começaram a falar de política. Gilsão criticou o pessoal do futebol, que tinha muito poder e influência, mas não era politizado.

“Olha aqui, eu vou te falar uma coisa prá você. Não sei se você tá me entendendo. Ôrra, meu, vocês não sabem a força que têm? Imagina o que vocês podem fazer contra essa ditadura. Ôrra meu! É o cúmulo do absurdo você não fazerem nada!”.

Casagrande riu: “O que a gente pode fazer jogando futebol?”. Gilsão, ainda consciente, mas sem resposta, percebeu que tinha exagerado na sua retórica, mas cravou: “sei lá, não sou eu que sou jogador!”. Renato Silva e Casagrande riram muito, aquele riso solto. Sócrates não. Parece ter ficado pensativo. Estava nascendo ali, naquele instante, dentro da cabeça do doutor, a Democracia Corintiana.

Sabe quando o convidado do Jô é tão importante que ele faz a entrevista em dois blocos? Pois a história do Gilsão continua depois do intervalo. “Willem, solta a vinheta!”

sábado, 11 de setembro de 2010

A Incrível História do CPNES - Parte 5

O CONTEXTO E A GÊNESE

Em 1983, o país estava prontinho para o final da ditadura, mas, como diria o Professor Wagner, vivíamos os estertores do poder, que ocorre quando seus detentores perdem as estribeiras no esforço desesperados para mantê-lo. O problema é que os ares da liberdade já seduziam pessoas de dentro dos círculos do poder. Por isso, cada esfera e cada pequeno órgão do governo eram comandados como se fossem um Grande País, que devia ser protegido do “mal”. Acho que isso era o brinquedinho deles. Para nós, que portávamos a “semente do mal”, aquilo não era nada divertido. O patrulhamento sobre o que pensávamos, vestíamos ou falávamos era insuportável para alguns de nós.

E ali estávamos, naquela escola comandada por militares, com regras rígidas e controle absoluto. Nada de usar barba ou cabelos cumpridos, nada de questionar, nada de se divertir e de preferência, nada de pensar. Faziam de tudo para que fossemos fieis e tementes ao regime.

Como era de se esperar, todas aquelas pessoas de diferentes lugares do país começaram a formar pequenos grupos, aglutinados por região de origem, por lugar que sentavam nas salas, por estilos, etc. Mas alguns menos tranquilos começaram a conversar sobre jogo em que estavam inseridos e passaram a formar um novo grupo de afinidade. Numa noite, conversando com Silvio Romero e com o Gilsão no fundo da casa de alguém, decidimos que era preciso resistir. A palavra de ordem era ficar alerta, não deixar-se soterrar, não deixar-se ludibriar, não deixar-se transformar naqueles civis de alma fardada, amantes do controle e da hierarquia, cuja maior aspiração era ficar atrás de uma mesa controlando pessoas, fichas e processos burocráticos. Muitos alunos achavam aquilo o máximo. Alguns ainda acham.

A necessidade de resistir àquela lavagem cerebral acabou unindo um grupo de pessoas. Senti-me como um membro da resistência francesa na segunda guerra – é claro, com uma boa parcela de exagero romântico, mas no fundamento, realmente não era muito diferente disso, não. Só não corríamos o risco da morte física, substituída pela morte moral, a ameaça de expulsão, sempre lembrada pelos donos daquele Grande País.

Eu, menino recém saído das fraldas tão bem mantidas pela minha santa mãezinha, estava lá, naquele fundo de quintal, naquele lugar ermo e afastado, falando baixinho porque os muros tinham ouvidos, me sentia com um baita medo, mas com uma excitação nunca antes sentida.

A partir dali o grupo de resistentes começou a aumentar. Aos poucos fomos percebendo que tínhamos outras coisas em comum, como a paixão pela boa música, especialmente daqueles grupos independentes, como o Língua de Trapo (ao lado) e o Premê, por festas e pelo teatro. A forma de resistência incluía se divertir, arejar a cabeça, conversar muito, manter a mente sã e independente e, eventualmente, agir
.
Silvio, um intelectual pernambucano de boa família, morava em Recife, na badalada Avenida Boa Viagem, de frente para o mar, o que me impressionava muito; usava uns óculos pequenos e jardineira jeans. Um amigo em comum, o Google, me disse que hoje ele atua na coordenação do Curso de Pós-Graduação em Design, na Universidade Federal de Pernambuco. O Silvio e eu gostávamos muito de teatro e começamos a planejar montar um grupo. O teatro poderia ser usado como um instrumento de expressão de nossas inquietações e de denúncia, tirando os pacatos do seu estado de torpor. O professor Wagner, um alienígena ali, culto, de bom gosto e também resistente àquela forma de “educar”, e a Joana D’Arc, uma aluna paranaense, também eram entusiastas da idéia de fazer teatro. Nós 4 decidimos montar o grupo, mas isso demorou demais e o Silvio e a Joana deixaram Brasília antes de o grupo ter nascido; o professor Wagner foi demitido (sabe-se lá o motivo) pouco tempo depois. Do grupo que teve a idéia original, só sobrou este que agora conta a incrível história do Grupo Cobra Parada Não Engole Sapo, cuja atuação no início dos anos 80, não sei se você já ouviu isso antes, mudou a cara de Brasília, do Brasil e, por conseqüência, do Mundo, no campo das artes, da política e da filosofia.

Dos 4 idealizadores, só sobrou euzinho aqui. Mas, definitivamente, eu não estava só, afinal, ainda havia a “resistência”, aquele grupo de boêmios que discutiam, bebiam, faziam sopas com doações semi-espontâneas (essas sopas merecerão maiores informações mais para frente). Foi jogar a ideia e ela ser abraçada por aqueles lunáticos que nunca antes haviam imaginado pisar num palco.

Ao mesmo tempo em que a resistência ganhava consistência, aumentava a atenção das autoridades sobre seus membros, pelo menos os mais extravagantes. Eu, por exemplo, adorava provocá-los usando boinas e cintos coloridos. Não falávamos grosso, não dávamos porrada, não éramos carrancudos nem reclamávamos de tudo. Éramos alegres e festivos. Essa nossa postura passava uma imagem de destemor, o que nos dava uma aura de poder e instilava certo receio nos que nos olhavam com olhares opressores. Por isso tinham cuidado quando queriam cortar nossas asinhas, que por sinal começavam a crescer. Ficou famoso o episódio da publicação de uma nota com os seguintes dizeres no boletim que definia as normas daquele Grande País. A nota dizia, sem nenhuma explicação: “fica proibido o uso de chapéus, boinas, bonés e faixas coloridas na cintura”. O primeiro que viu aquilo pregado no quadro de avisos me chamou correndo. “Parabéns, você ganhou uma nota só para você”. Não me lembro quem foi, mas me lembro que se seguiu uma algazarra geral. Todos foram lá para ler. Ninguém se cabia de rir. Ali percebi o quanto ter uma postura gerava força: tiveram receio de conversar comigo, o que deveriam fazer, já que apenas eu usava as tais faixas e boinas. Preferiram publicar uma nota, como se a decisão viesse do monte Sinai em forma de leis escritas em tábuas. A alegria por ter provocado aquilo apagou qualquer indignação com a proibição.

Enfim, já estávamos um pouco marcados e observados com atenção. “Estão querendo montar um grupo de teatro? Quem?”. Aí havia um problema. O grupo tinha que ter ao menos um membro acima de qualquer suspeita. Era preciso de alguém com um estofo moral, alguém que eles respeitassem muito. Alguém sério. O incrível é que na própria Resistência havia alguém assim. E é desta pessoa que falarei na parte 6.
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