domingo, 26 de fevereiro de 2012

MELHOR IMPOSSÍVEL


A PRIMEIRA CANÇÃO
Pela manhã, todo pimpão, saiu para passear com os cachorros e fazer coisas chatas que se fazem aos sábados pela manhã, como mandar lavar o carro (porque isso tem que ser tão complicado e tomar tanto tempo das pessoas? Porque a vida é tão dura com quem tem preguiça?).
Uma pergunta lhe veio à cabeça: por que, apesar dos afazeres chatos, estava de bom humor? Porque o ar matutino do sétimo dia é quase que indestrutivelmente agradável? Talvez porque a manhã sabatina seja temperada com a expectativa de passar dois dias inteiros sem precisar ir ao trabalho, aos trabalhos, melhor dizendo, e poder, assim, desfrutar, sem horários nem regras, do aconchego do lar, de uns bons filmes no cinema ou em casa, do jogo do seu time na TV e, sobretudo, da agradável companhia da filha.
Essa possível resposta colocou um sorriso em seus olhos. Sim, porque não se anda pelas ruas sorrindo com a boca, afinal, quem ri sozinho é louco. Já os olhos podem sorrir à vontade, pois pouca gente nota. Além disso, as raras pessoas capazes de notar o sorriso dos olhos alheios não o chamariam de louco, até porque quem reconhece o sorriso dos olhos alheios é porque também sorri com os olhos, o que garante certa cumplicidade. Neste momento veio-lhe uma música à cabeça:
“Eu cheguei em frente ao portão,
Meu cachorro me sorriu latindo”
Se o cachorro do “rei” pode sorrir latindo, porque não podemos, nós, humanos, sorrir com os olhos? Bom, para que outras músicas escondidas nos recônditos de sua memória, fossem elas do Roberto ou de outros similares, não lhe viessem perturbar seus ouvidos cerebrais (quando você cantarola músicas sem som, são seus ouvidos cerebrais que ouvem), resolveu ligar o som do celular. A opção “aleatória”, ou randômica, como devem preferir os doutos, lhe colocou nos ouvidos, físicos e cerebrais, uma jóia de George Harrison: “Beware of Darkness”. Até mesmo com sua quase total ignorância da língua bretã, e apesar de não fazer a menor idéia do que queria dizer o resto da música, sabia perfeitamente o significado do título da canção: “cuidado com a escuridão”.
Deus, ou a Apple em sua infinita sabedoria, colocou a música certa: naquele exato instante sua vista começou a ficar turva, os olhos começaram como a formigar, estrelas foram surgindo por todos os lados, e ele, mais que depressa, encostou o carro. Os cachorros pularam felizes, achando que fariam uma segunda fase do passeio (sorte que na primeira parte já haviam feito aquelas coisas de que necessitamos todos, eles à luz do dia nas praças públicas, nós à qualquer luz, mas dentro de cubículos preferencialmente limpos). Logo o agora preocupado casal de cães percebeu que algo não estava certo com seu amado pai (ele detestava quando nos pet shops usavam a expressão “pai” para se referir ao dono dos cachorros, mas o que fazer se seus próprios cães o chamavam de pai? Dizer “eu não sou seu pai” para os pequenos seres? Como ficaria a cabeça dos bichinhos?)
Depois de coçar os olhos e mantê-los fechados por alguns instantes, abriu-os e viu que nada, ou quase nada, via. Aos lados, acima e abaixo, pura escuridão. Ao centro, como uma câmera com o diafragma quase fechado, enxergava um pouco. E George Harrison continuava a prevenir dentro de seus ouvidos. “Ok, George”, disse em voz baixa. Ligou o carro, deu meia volta e, com todo o cuidado, voltou para casa, que felizmente estava a poucas quadras. Entrou em casa com os filhos, ou melhor, com os dois cães, e foi correndo para o banheiro pegar a caixa de remédios, de onde tirou os destinados à enxaqueca. O turvamento da visão, acompanhados das estrelas, é classicamente conhecido como “aura”, que ávida que uma crise violenta de enxaqueca está prestes a começar. Tomou os remédios, dois, pôs o protetor de olhos (aquilo que entregam em avião), fechou a persiana ao máximo e se deitou. Ali permaneceu durante toda a manhã, levantando de tempos em tempos para tomar novas doses de remédios.
Ali passou também toda a tarde quente de verão, consumido pela dor e pelo suor. Levantou-se, vivo, apenas no início da noite, com aquela dor residual, a cabeça oca, os olhos sensíveis. Começava o jogo de seu time. Um ótimo jogo... para o adversário, que marcou seis gols e só não continuou o massacre por que teve piedade.
COMO TRANSFORMAR UM DIA?
Agora, seguidores ou eventuais passageiros deste prestigioso blógui: vocês que eventualmente conhecem este elíptico autor, respondam, por favor:
O que pode transformar um dia como esse? Não digo transformar para que não seja um dia de sofrimento, mas transformar para que seja um dia fabuloso, inesquecível, um dia que melhor seja impossível?
Ei, responda mesmo... Não é retórica, pode ir lá em baixo e deixar sua resposta no campo “comentários”. Responda o que pode deixar o dia tão bom que melhor seja impossível? Responda agora antes de ler o resto.
MELHOR IMPOSSÍVEL
Se você, obediente leitor, já foi lá e respondeu, e se sua resposta tomou por base o fato de ser este um blógui meio que sobre cinema, e ainda, astuto leitor, notou uma dica no parágrafo anterior, e, finalizando, se você, inteligentíssimo leitor, leu o título deste pôsti e acabou por responder que a forma de transformar o dia poderia ser assistindo ao esplêndido filme Melhor Impossível, de James L. Brooks, você deu uma bela resposta.
O filme é um preciosidade: um escritor Melvin (Jack Nicholson) é um portador de múltiplos TOCs (transtornos obsessivos compulsivos), mal-humorado, homofóbico, grosseiro, solitário e detesta cachorros. Melvin só almoça num restaurante, sentado sempre à mesma mesa, atendido exclusivamente por “sua” garçonete, interpretada pela bela Helen Hunt. Melvin tem um vizinho, Simon (Greg Kinnear), que é gay e tem um cachorrinho. Simon sofre um assalto e fica internado por semanas. Melvin acaba sendo obrigado a hospedar e cuidar do cachorro.
Dispensável dizer que a presença do cachorrinho acaba mudando Melvin, que acaba se apaixonando pelo cão e pela garçonete, e fica o resto filme tentando conquistá-la. Para isso tem que mostrar a ela que não é o ser ultrajante e ignóbil que aparenta. Ela reluta, e muito.
A atuação do quarteto é fantástica (justíssimo Oscar de melhor ator para Nicholson e de melhor atriz para Hunt), e aí incluo o cachorro, que chega inclusive a assimilar alguns TOCs do novo dono (sensacional quando começa a pular, como Melvin, as junções do piso das ruas).
Na cena final, ele vai, de madrugada, até a casa dela, que abre a porta. Ele na escada. Discutem. No meio da discussão ela deixa escapar que tem um namorado maluco. Ele, atento, percebe: venceu sua resistência. São namorados. O filme acaba suavemente, na padaria na frente, onde, às quatro da manhã, vão comer pão da primeira fornada.
A SEGUNDA CANÇÃO
Sua enxaqueca foi se acabando, a dor diminuindo, os olhos voltando ao normal. Apesar de não ter assistido Melhor Impossível, e sim Loki, com sua filha, o dia acabou muito bem, encerrando-se com uma boa (não em quantidade, mas em qualidade) noite de sono e uma manhã que, apesar de clara demais para seus olhos ainda sensíveis, estava especial.
Pegou o aparelho e saiu com seus filhos, ou melhor, seus cães. Já na praça, notou que ainda não havia colocado nenhuma música. E nem sentia falta. O ar da manhã dominical parecia-lhe suficiente. Já na praça, temendo ser assomado por outra música do Roberto, ou mesmo pela do Ronnie Von que fala da praça, resolveu ligar o aparelho. Confiando mais uma vez na infinita sabedoria da Apple, optou pelo modo aleatório. Ouviu, relaxado e tranqüilo, atrás de seus óculos escuros e ao lado dos saltitantes pets, uma pérola de Luiz Bonfá:
Manhã, tão bonita manhã
Na vida, uma nova canção
Cantando só teus olhos
Teu riso, tuas mãos
Pois há de haver um dia
Em que virás
Das cordas do meu violão
Que só teu amor procurou
Vem uma voz
Falar dos beijos perdidos
Nos lábios teus
Canta o meu coração
Alegria voltou
Tão feliz a manhã
Deste amor

domingo, 19 de fevereiro de 2012

HUGO - A ESSÊNCIA DO CINEMA


Por que eu gosto tanto de cinema?
Difícil responder. Nem sei direito o que é cinema! O que é o cinema, afinal? Qual é a essência do cinema? 
Feixes de luz projetados numa tela retratando o movimento, como uma fotografia que se move?
Ou seria o cinema a arte de utilizar os feixes luminosos para contar, com imaginação e fantasia, uma história que nos transporte a um mundo que não é necessariamente o nosso?
A resposta é a que você escolher, autônomo leitor deste famoso e democrático blógui. Se escolher a primeira, bastará que seja filmada, com uma câmera fixa, a saída de empregados de uma fábrica ou um trem chegando na estação para termos ali um produto de cinema.
Caso, no entanto, você seja um leitor do tipo sonhador, não conseguirá aceitar a primeira definição e ficará com a segunda, definição que leva o cinema à possibilidade de retratar uma lua com nariz, boca e dois olhos, um dos quais é atingido por um foguete lançado da Terra, ou uma descida ao mundo submarino com uma amistosa recepção de Netuno.
Os irmãos Lumiere foram os inventores do cinematógrafo, máquina que projetava o movimento e pais do cinema, segundo a primeira definição. Já de acordo com a segunda definição, Georges Meliet concebeu o cinema, ao usar a invenção dos irmãos Lumière para transmitir fantasia e nos fazer viajar para qualquer lugar de qualquer mundo.
E o filme “A invenção de Hugo Cabret”, onde entra nisso? Calma, leitor apressadinho.
Em primeiro lugar, o nome brasileiro do filme se deve ao título do livro de Brian Selznik (parente de David O. Selznick, produtor de filmes dos anos 30 e 40, fundador da RKO), no qual o filme se baseia.
Hugo é um órfão que vive escondido entre as paredes e atrás dos relógios de uma estação de trem na Paris do início do século passado. Seu pai achou o autômato, um robot cheio de engrenagens, mas que não funciona. Junto com a máquina, um caderno com instruções de montagem. Só que não teve tempo de fazê-lo funcionar, morreu queimado, como morreram queimados muitos dos filmes de Meliès.
A sorte da humanidade é que nada, nem a presença de Leonardo Di Caprio nos filmes do diretor dos últimos 10 anos, queimou o talento e o amor de Scorcese pelo cinema. Nada contra os filmes com Di Caprio, pelo contrário, são bons filmes, sendo que “A Ilha do Medo” é muito mais do que bom. Mas em Hugo parece que Scorcese se jogou mais na fantasia, certamente influenciado pelo sonhador Meliès, que recebe uma homenagem à altura de sua importância para o cinema.
Voltamos a Hugo, o órfão que vive de pequenos furtos na estação e faz os relógios funcionarem, sem que ninguém saiba de sua existência. Uma das razões de manter-se escondido é que caçar órfãos é a principal ocupação do Inspetor da estação, interpretado de modo espetacular por Sacha Baron Cohen, dos politicamente incorretos e mega-engraçados Borat e Bruno. A cada aparição do o Inspetor, Sacha dá um show, sem piada fácil, sem pirotecnia, sem palhaçada: só sutileza. Muito mais para Peter Sellers do que para Jim Carey. Agora, escrevendo a respeito, me lembro de Adrien Brody como Dalí no “Meia Noite em Paris”. Sorte que aparece várias vezes. A propósito, não vejo a hora de vê-lo como Fred Mercury no cinema!
Voltando a “Hugo”, como contar uma boa história de ficção, homenageando, de modo geral, o cinema e os primeiros cineastas e, de modo específico, Georges Meliès? Só com fantasia. Como a importância de Meliès está muito ligada aos efeitos e fantasias visuais, Scorcese sabia que uma bela homenagem não estaria completa apenas com uma boa história, por melhor que fosse contada. O visual também teria que ser fantástico, como fantástico foi, na época, o visual dos filmes de Meliès.
Eis que, mais do que em qualquer filme que já vi, o 3D é fundamental. E mais: ainda não tinha visto um 3D tão bem explorado, tão na medida certa. A cor, o 3 D e a ambientação do filme nos colocam não mais diante de um filme, mas dentro, muito dentro, da lindíssima estação de trem naquela Paris antiga, dentro das paredes, dos relógios, das engrenagens.
Com uma história fantástica, no melhor sentido da palavra, a impressionante beleza das imagens, com a caracterização dos personagens, com ótimas interpretações, destaque para o emocionante Ben Kingsley, e até com o deslumbrante sorriso da amiga de Hugo, Scorcese, com comovente devoção ao cinema, recria a magia de Meliès e faz um dos filmes mais suspirantes que o talvez exagerado e certamente romântico autor deste blógui já viu.
Enfim, respondo à pergunta inicial: gosto de cinema por causa de filmes como Hugo.
Uma beleza imensa te aguarda na sala de cinema!]

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