domingo, 19 de maio de 2013

JULIO BARROSO E A FUNDAÇÃO DOS ANOS 80


1984
As mãos se agarravam desesperadamente no batente da janela. Pendurado do lado de fora, plena noite, ele parecia ter percebido a merda que havia feito, porque gritava por ajuda. O vizinho de cima ainda tentou arrombar a porta da sala, mas não deu tempo, o batente da janela se soltou...



Um sonho estranho nas paredes do prédio
Prefiro morrer de vodka do que de tédio
Acendo um cigarro e vou até a janela
Na rua umas sombras à luz do lua

Esse rock, que parece narrar a queda, fora gravado no ano anterior. “Perder um cara como o Julio é uma decaptação. A gente ficou órfão do nosso irmão mais velho”, disse João Luiz a Agenor, ambos desmoronados, na noite seguinte, no velório de Júlio Barroso. João Luiz e Angenor, que começávamos a conhecer como Lobão e Cazuza.

4 ANOS ANTES – 1980
O começo dos anos 80 a música brasileira estava ascensão, depois de sufocada por tanto tempo. O pessoal do nordeste, Zé Ramalho, Ednardo, Belchior e Fagner, de um lado, o pessoal do Clube da Esquina, Milton, Lô, Beto Guedes e mais um monte de gente boa do outro. Caetanos, Chicos e Bethanias emolduravam, como sempre com talento e competência, o quadro da Música Popular Brasileira. Ou seja, a música por aqui estava de uma caretice gigantesca.
Depois de morar 2 anos em NY, o jornalista, DJ e poeta carioca Júlio Barroso chegava a São Paulo cheio de ideias. O clima de SP estava favorável ao novo. O movimento independente ganhava formas. Só que Júlio era universal e queria mais. O negócio dele não era só a música, mas também a performance, a agitação, a poesia encenada.

UM ANO DEPOIS - 1981
Nos meus 18, sem trabalhar ou estudar, tímido e macambúzio, mergulhado em livros, metido a poeta, devorador de novelas e filmes, estava lá eu, ligado no MPB Shell 81, na Globo, sempre atento a uma nova “Canalha”, que Walter Franco, no festival da Tupi de 79, cantou de costas para a plateia, só se virando para gritar o refrão: “Canalhaaaaaaa”!

O festival rolava caretamente tranquilo, quando uma música começa com rugidos de leão e gritos de macacos e araras. Aí entra uma loira alucinante seguida de outras duas gatas, todas teatrais, soltas, expansivas, chocantes. Eram as Absurdettes. A loira alucinante fazia o estilo Kim Karnes, só que louca. Era May East (olha a sacada do nome: oposto cardial da loira do cinema May West !). O líder da banda, um cara esquisito, muito alto, óculos fundo de garrafa, camisa social, com um dente faltando bem na frente, tinha uma presença de palco espetacular. Sobre o dente faltando, perdeu quando, bêbado, chorava a morte de John Lennon – por isso não quis colocar outro, era sua homenagem a Lennon.

Oh! Mas que calor tropical
Mais que folhagem maneira
É sururu, carnaval
Tem festa na floreta inteira


A “Gang 90 e as Absurdettes”, que tinha visual inspirado na banda B-52, era linda e chocante ao mesmo tempo.

Quando o avião deu a pane
u já previa tudinho
Mim tarzan, you Jane
Incendiando mundos nesse matinho
Eu e minha gata
Rolando na relva
Rolava de tudo

Nem ele, nem as Absurdetes eram grandes vocalistas, mas não era de grandes cantores a cena musical brasileira precisava. Aquilo tudo ganhou a plateia na hora. O Brasil todo cantava o delicioso pop-rock “Perdidos na Selva”. Bons tempos quando o Brasil inteiro cantava coisas desse nível. O sucesso instantâneo alertou o mundo da música. Toda uma geração de jovens músicos percebeu que estava ali o caminho. A personalidade magnética de Julio Barroso, culto, caótico, verborrágico e doce, atraiu músicos que em breve iriam fazer a explosão do rock nacional.

1983
Em 83, a banda lança seu fenomenal disco “Essa tal de Gang 90 & As Absurdettes”. A empolgante balada new wave, “Nosso Louco Amor”, foi tema de abertura de novela da Globo. Sabe quando uma música toca tanto que ninguém aguenta mais? Não foi o caso dessa. Nunca é demais ouvir:

Nosso louco amor
está em seu olhar
quando o adeus
vem nos acompanhar
...
Agora aqui
passou a dor
na rua a luz
da cidade ilumina
nosso louco amor

Mas o disco tinha muito mais. Com JB no comando, as meninas fazendo vocais alucinantes, solos de guitarra e baixo com pegada pesada, “Eu sei mas eu não sei” é um rock que deveria entrar em qualquer lista das melhores músicas dos anos 80. É uma delirante e magnética declaração de princípios.

Eu posso, mas não quero

Você pode, mas não comigo
Você quer fazer mistério
Acontece que eu não levo a sério

Na sequencia, outro sensacional rock, rockasso de pegada pop, clássico, clássico, definitivo: “Convite ao Prazer”, aquela premonitória do início do post.

Dentro da banheira, espumas flutuantes
No jeito do corpo vejo crescer seu desejo
No brilho dos olhos um convite ao prazer
Ao prazer, um convite ao prazer
Ao prazer, um convite ao prazer

O disco é completo. Tem “Telefone”, uma balada romântica clássica, que o Ira gravou com a Fernanda Takai.

Pode ser de São Paulo a Nova York
Ou tão lindo flutuando em nosso Rio
Ou tão longe mambeando o mar Caribe
A nossa onde de amor não há quem corte 

E o mais deliciosamente cantado refrão da história da música universal:
Oh meu amor
Isso é amor
Oh meu amor
Isso é amor

Outra balada clássica: “Noite e dia”, parceria com Lobão. Conforme o próprio Lobão afirma, ela já estava quase toda na cabeça do JB, que generosamente o convidou a compor em parceria, depois de perder sua namorada (uma das Absurdettes) para o próprio Lobão.
No escuro do quarto, bela na noite
Nas ondas do luar
Seus olhos negros, pantera nua
Vem me hipnotizar
Eu olho sorrindo, lindo!
Você está me convidando
Menina quer brincar de amar
Você está me convidando

O disco termina com a onírica e elíptica Jack Kerouak, que acaba assim:
Ontem à noite eu sonhei
Que conversava com Jack Kerouac
Ele chegava e me dizia
"Hey Man! eu renasci black
E agora sou um tocador de piston!"
Eu só sei que o som era tão alto que despertou o mundo inteiro
Eu acordei, e saí mandando brasa nas estradas do mundo.
Sair mandando brasa nas estradas do mundo. Foi o que fez.
1984 NOVAMENTE

Um sonho estranho nas paredes do prédio
Prefiro morrer de vodka do que de tédio
Acendo um cigarro e vou até a janela
Na rua umas sombras à luz do luar

Julio Barroso não cabia num apartamento, talvez nem numa banda. Por isso resolveu fundar não só uma banda, não só o rock brasileiro de Legião, Ultraje, Titãs, Barão. Júlio Barroso talvez tenha fundado o Brasil dos anos 80.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

ÉRAMOS TÃO JOVENS


 Há coisas que te pegam e coisas que não te pegam. Tem coisas que entram e te agarram a alma e tem coisas que, por mais belas que sejam, não passam muito dos tímpanos. Da música dos Beatles, por exemplo, sempre gostei, mas ela nunca pegou de jeito, a não ser as do George Harrison, ou as que ele canta. George Harrison, durante e depois dos Beatles, sempre superbondou na minha alma. Yes nunca me pegou, Pink Floyd, sim. Vejam que estou falando só de coisa boa, e agora no cinema: Godard nunca me pegou, Herzog, sempre. Dos Andrade, Oswald não, Mário sim. E por aí vai. 

Voltando à música e aonde eu quero chegar: Legião Urbana não, Titãs sim. Renato Russo não, Cazuza, sim. Sempre achei a música do Renato Russo muito cheia de lamento, um ai ai ai sem fim, um tanto monocórdica, sempre na mesma tocada, o mesmo cantar meio ritualístico. Acalmem-se fãs/seguidores do Legião, porque também sempre reconheci sua música como de alta qualidade e refinamento e sempre achei o Renato Russo um cara sensacional. Sua rebeldia culta agradava meu esnobe padrão de qualidade.

Na real, o rock Brasília como um todo não me afetava. O Capital Inicial, por exemplo, não passava de musiquinha de adolescente mimado. Eu morava em Brasilia na época, e uma vez fui a um festival de rock e vi toda essa gente lá. Levei um cartaz prá casa, que decorou meu quarto por anos. Gostava do clima e da rebeldia, mas não da música. Minha cultura elitista e minha tendência generalizadora colocavam tudo num mesmo balaio e eu acabei não gostando muito de nada daquele tempo. Azar meu, certo?

Poucos anos depois, quando eu deixei de sentir necessidade de dizer que tudo o que faz sucesso é ruim, passei a conhecer mais a fundo as bandas daquela época e a separar o joio do trigo. Aliás, isso é uma coisa que devemos fazer sempre, revisitar e reconsiderar. Se ainda considero, e provavelmente sempre considerarei, o Capital Inicial um grupinho que faz musica chatinha para adolescente mimado, hoje sei que Ultraje a Rigor, que eu antes considerava uma excrescência, é rock muito bom; sei que o Legião é música de primeira, refinada e tal, mas que, por algum motivo, ainda não me pegou, ao contrário de “Somos Tão Jovens”, o ótimo filme sobre a trajetória de Renato Russo em Brasília. Este me agarrou.

O filme, antes de ser sobre um cara que morreu há mais de 15 anos, antes de ser sobre algo que ocorreu há quase trinta anos, é um filme com uma linguagem atual, pop, vibrante, pulsante, e, mais que biografia, é uma ode a uma juventude que não se satisfaz em se sentar na frente da TV, em consumir. É um elogio aos jovens que se mexem, que sonham, que se arriscam que se apaixonam, que criam, que produzem, que não seguem os modismos, que chocam e que se movem. Enfim, fala de uma juventude que talvez não exista mais, ao menos na mesma proporção. E está aí mais uma vantagem do filme: deve atrair toda uma juventude que gosta do Legião, não importa se gosta por ser bom ou porque gostar do Legião é um tipo de upgrade cultural. Ao atrair essa gente jovem que está por aí, quem sabe se o filme não os influencia a serem mais autênticos, mais apaixonados, mais críticos, mais rebeldes, mais criativos?

Com uma ótima reconstituição da época e do clima de festa que havia nos bares (tá lá o Beirute) e nas quadras (como eu invadi festas naquela época! ), “Somos Tão Jovens” mostra um Renato Russo cheio de impáfia e simpatia, cheio de talento e de amor. O filme, por não se propor a ser uma biografia do tipo mostra tudo, mas um retrato empolgante de uma alma, uma época, uma geração e um lugar, não se aprofunda nos romances de RR com meninos, embora não os esconda: mostra de leve, com carinho e singeleza, mas se aprofunda mais na relação de RR com sua amiga Aninha. Não sei o que é verdade ou não e nem isso importa, porque é dessa relação que o filme tira seu momento mais emocionante, quando, com a música “Ainda é Cedo”, RR tenta se reconciliar com a amiga.

O filme é cheio de outros acertos, como a valorização das músicas e das performances de Renato Russo nos palcos de Brasília. O ator, Thiago Mendonça, encarna plenamente a alma bela e atormentada, além de cantar bem e exatamente como RR. Laila Zaid, a atriz que interpreta a amiga Aninha, está deslumbrante. Além de tudo, o diretor Antonio Carlos da Fontoura soube conduzir e terminar o filme muito bem, acerto que se prolongou nos créditos finais, cujo clima fecha a mensagem e o clima que o filme parece ter desejado transmitir.

Não vi, nos palcos que o filme recria, o cartaz que tive no meu quarto, mas vou procurar mais algumas vezes. Além disso, está em curso uma releitura da obra de Renato Russo. Quem sabe agora ele não me pega...
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