sábado, 29 de outubro de 2011

JANELA INDISCRETA E O TRIUNFO DA MULHER

Antes de começar a ler: está vendo essa desconfortável marcação branca nas letras do texto? Não consegui tirar nem a pau!!! Pronto, pode ler.
Na semana passada, a propósito da acusação de exploração da mulher como objeto, sofrida pela propaganda da Hope em que Gisele Bündchen usa seu corpo, por sinal delicioso, para enrolar o marido, Luiz Felipe Pondé escreveu na Folha que a mulher, mesmo quando usa sua beleza, não é um indefeso objeto do homem. Pelo contrário, ela exerce o poder feminino sobre o desejo do homem, este sim, ao que tudo indica, indefeso. Completa Pondé:
Aliás, desde o jardim do Éden. Apesar de Deus ter dito a Adão "não pode comer a maçã!", Adão não resistiu a Eva: "Come meu amor, come!". E Adão caiu de boca. O velho poder feminino.
Ontem revi, pela enésima vez (e nunca é demais), “Janela Indiscreta”, do mestre, do extra-terrestre, do maior de todos, Sir Alfred Hitchcock. Hitch (já disse que somos íntimos, não?), que tinha complicações seríssimas com as mulheres, explorava ao máximo a beleza da mulher em seu cinema. Mas, igualmente à propaganda, a mulher não é objeto, mas sujeito. Não é exagero afirmar que a temática central de Hitchcock é o confronto das posições opostas do homem e da mulher. O suspense, os crimes complexos, a linguagem cinematográfica e o recorrente tema do homem comum apanhado pelo destino e tendo que se livrar de alguma grave complicação, enfim, tudo aquilo em que o Mestre é absolutamente genial, é pano de fundo, é forma, é temática objetiva. A temática central subjetiva é o duelo das posições homem-mulher.E aqui a ligação: no cinema de Hitchcock, as situações colocam as mulheres aparentemente em inferioridade, mas no fim a lógica feminina sempre prepondera, sempre acabam mostrando que elas é que comandaram a situação. E nisso o cinema não faz outra coisa senão retratar a realidade. Nós, homens, sempre achamos que escolhemos e conquistamos as mulheres, mas todos, eu, você, leitora ou leitor, espertos ou chatinhos, até os sobrinhos do Tio Moa sabem: as mulheres é que nos deixam pensar que nós as escolhemos, mas sempre é o contrário. Elas nos dominam.
Voltando ao genial, ao filme de melhor arquitetura da história do cinema, “Janela Indiscreta”: lá ocorre de modo diferente: desde o início a mulher subjuga o homem indefeso - James Stewart passa todo o filme numa cadeira de rodas. Mas o homem, homem que é, esperneia: é o fotógrafo afastado do trabalho, mais velho, feio e pobre, que esnoba e se recusa a casar-se com o protótipo da mulher perfeita, rica, inteligente, bem sucedida, lindíssima e apaixonada por ele. Olha ela aí ao lado, na sua primeira aparição do filme, chegando quando Jeff dorme e debruçando-se sobre ele para beijá-lo.
Mas Jeff (é o nome dele) não quer se casar, alega que ela é muito perfeita para ele! Pode? Diz ser um aventureiro enquanto ela é uma dondoquinha da hight society. E ela: ah é? E dá um baile no impotente (porque engessado na cadeira de rodas).Um pouco da história: ele fica olhando pela janela a vida íntima dos vizinhos, sob reprimendas dela, Lisa (Grace Kelly) e da massagista, a engraçada Telma Ritter que, aliás, trava com ele alguns diálogos deliciosos. De repente, por algumas coisas que vê, começa a desconfiar que um dos vizinhos matou a esposa. Lisa duvida, ironiza, mas, mesmo tendo condenado o ato, começa a observar os vizinhos. Olhar escondido a vida dos outros é algo irresistível (o filme discute isso também).  
Lisa, enfim (e no exato momento da foto ao lado), começa a desconfiar, pedem ajuda a um detetive amigo de Jeff, o que não ajuda muito. Bom, alguém tem que fazer alguma coisa para descobrir, mas quem, já que Jeff está entrevado? Isso, leitor inteligente (aliás, já é sinal de inteligência ler este humilde blógui), isso mesmo: ela, Lisa, a bela e bem vestida, que a partir de então dá um show, mostrando ao homem o que, mesmo com seus esvoaçantes vestidos de grifes francesas, é capaz de fazer. Vê-la ultra bem vestida trepar pelas janelas é sensacional. Soberbo o momento em que ela, animada, entra na sala vinda de uma excursão perigosa: Hitchcock dá um close em Jeff, deslumbrado, caído de quatro, como sempre ocorre aos homens apaixonados. Fantástico!
Quanto à técnica, Janela Indiscreta é inovador: de um único ponto de vista, a janela de Jeff, mostra várias histórias. Ou seja, nós vemos sempre pelos olhos de Jeff. E, vamos confessar: como é bom olhar pela janela dos vizinhos! Ah, não pode? Tudo bem, tem um monte de coisas que não fazemos porque não pode, mas que são boas, são.
No filme, nunca entramos num apartamento de algum vizinho, sempre os ouvimos de longe, quando ouvimos. Mesmo quando o ponto de vista não é o de Jeff, tudo é mostrado do apartamento dele. Por exemplo, numa cena em que ele está dormindo, as coisas estão acontecendo nas casas dos vizinhos e continuamos a ver apenas do ponto de vista da janela dele. Assim, Hitchcock nos coloca também como voyeurs, também bisbilhotando a vida alheia, aumentando ainda mais nossa identificação com Jeff. Inclusive há algo importante que nós vemos e ele não; Hitch nos dá uma informação relevante e não dá ao protagonista, o que aumenta ainda mais o suspense.
Tudo nos é mostrado como um mosaico, com pequenas cenas e muitos, mas muitos cortes mesmo, como na seqüência abaixo, o que vemos é:
ð      Jeff olhando para baixo;
ð      Corte para a janela da “Srta Coração Solitário”;
ð      Corte para o rosto de Jeff, interpretando o que vê - num diálogo conosco, felizes expectadores do filme e da vida alheia. Depois os olhos de Jeff sobem e vão um pouco para a esquerda;
ð      Corte para o apartamento da bailarina;
ð      Corte para o rosto de Jeff interpretando o que vê. Depois seus olhos sobem mais e vão para a direita;
ð      Corte para o apartamento do compositor em crise criativa;
Vista parcial do cenário de janela Indiscreta 
E assim por diante, numa seqüência de centenas de cortes que, montados, compõem um todo linear e harmônico, fácil para o expectador acompanhar, mas ultra-complexo de executar. Janela Indiscreta deveria ganhar um Oscar eterno de montagem. Uma obra-prima. Tudo isso é feito num cenário gigantesco, dentro de um galpão em que aproveitaram até os dois andares de porão (cortaram o chão do estúdio para ampliar a altura). A iluminação também é genial: há luzes para manhã, para tarde, para fim de tarde e para a noite.
Voltando à nossa heroína, ela realmente dá um baile! Este blógui já falou do “O Feitiço do Tempo” afirmando que o filme coloca a mulher num pedestal, com o homem tendo que dar duro, trabalhar e suar muito para melhorar como ser e merecer o seu amor. Pois em Janela Indiscreta a mulher é ainda mais valorizada: Lisa é inteligentíssima, espirituosa, tem espírito de aventura, coragem e capacidade para resolver as coisas e ainda enganar o homem, fingindo submeter-se, para que ele possa viver a ilusão masculina. O take final, de ironia sutil e inteligente, sintetiza isso (confira). Hitchcock devia ser idolatrado pelas mulheres.
Leitor e leitora: com a masculina autoridade de autor deste blógui a que você, femininamente se submete, eu ordeno: pegue agora mesmo o DVD na sua estante e reveja o filme. O quê? Não tem? Não acredito... Tudo bem, vá lá, está perdoado (a), desde que corra neste instante até a locadora, volte e veja uma, duas, três vezes antes de devolvê-lo. É um favor que você faz a você mesmo.
Para os mais novos, para os sobrinhos do Tio Moa, a para os que têm dificuldades de ver filmes antigos (as dificuldades são tratáveis, fique tranquilo): vejam este trailer montado do jeito moderno.
Tem balada? Que nada!

Algum Show? No, no, no!

Viagem? Bobagem!
Fique com Janela Indiscreta e depois agradeça ao Tio Moa, ao Laraia, a este blógui e a deus, ops, Deus.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

PERNAMBUCO, CONDÉ E ACÁCIAS AMARELAS


Tem coisas que a gente não se lembra como nem porque passou a gostar, mas adora aquilo. Dia desses descobri de onde vinha minha paixão por macarrão alho-e-óleo. Não quero falar de massas, mas de minha impressionante a identificação com tudo o que vem de Pernambuco, e isso certamente se reflete no que escrevo, afinal, este blógui é seguido por pessoas de Pernambuco que nunca havia visto antes. Esta semana surgiu mais uma seguidora pernambucana, a cantora Rogéria, de Caruaru.
Conheço Pernambuco mais que nenhum outro estado, sem nunca, entretanto, ter estado lá. Este paradoxo me remete a Campos de Carvalho:
“Aos 16 anos matei meu professor de lógica. Invocando a legítima defesa – e qual defesa seria mais legítima? – logrei ser absolvido por cinco votos contra dois, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris”. (A Lua Vem da Ásia)
Sentia-me um adolescente pernambucano. Vidas passadas? Acho que não, afinal, não sei se houve um rei em Pernambuco (já reparou que quem acredita nisso sempre foi rei em vidas passadas? Haja rei). O certo é que Rogéria, por ser de Caruaru, me fez brilhar uma fagulha de luz aqui dentro dos meus miolos a acabei por descobrir minha ligação oculta, que nem era tão oculta assim: a gente é que, no piloto automático da vida, para de pensar nas coisas que nos marcaram. Como é bom recuperar segredos guardados nos recônditos da mente. Como é bom lembrar de Terra de Caruaru:
“Há muitos anos que não havia tanta animação em Caruaru... O Abanadores e o Bela-União arrastando grande onda delirante no passo, sob a cadência dos frevos entoados pelas fanfarras.  De repente, o encontro dos dois clubes rivais que vinham pela Rua da Matriz... Abanadores do lado direito, Bela-União no esquerdo – e, à frente, a massa enlouquecida... Então, subitamente, o povo ficou em delírio. Já não era dança: sob a leve névoa de poeira que se erguia do chão, todo mundo pulava e gritava tomado de uma alegria selvagem. Tudo isso demorou menos de três minutos.”
A alma de Pernambuco está ou não todinha aí? Não, é claro: todinha não, porque...
Passado o delírio momentâneo e tendo as duas agremiações tomado o rumo normal do desfile, mestre Ananias, que comandava a fanfarra do Abanadores, viu Cravo Branco caído, o tronco magro curvado sobre as pernas.
- Gente! gritou...
- Chamem o doutor Gonzaga – pediu o mestre Ananias.
Ergueram o negro e o levaram nos braços até a calçada.
- Faca – afirmou alguém.
Nas costas, a fantasia de Luis XV de Cravo Branco era uma só mancha de sangue. Do começo da rua vinha a música do Bela-União, o vozerio do povo, a alegria do Carnaval que havia acabado para o presidente do Clube Mixto Carnavalesco Abanadores.
- Pobre dele – disse uma voz.
A violência, que caminha bem pertinho da alegria, não vem de agora, não surgiu no Amarelo Manga nem no Baixio das Bestas. Nem sei se vem da vida severina tão bem descrita por João Cabral. Mais certo é que venha da própria essência do homem a violência da morte matada, antiga como o tempo, como a chuva.
Começou a chover. Chuva forte que faz o povo fugir para as calçadas. Somente os que acompanhavam o corpo de Cravo Branco não tiveram medo do aguaceiro. Entraram no beco que ia dar na praça Euterpe, tomando rumo da Rua do Comércio quase às escuras àquela hora tardia. Pouco importava a chuva, porque Cravo Branco estava morto; o eco longínquo do frevo tocado pelo Bela-União soava como uma marcha fúnebre.
- Nunca fez mal a ninguém – lamentava-se a mulata... arrancava os próprios cabelos.
Sob o teto do casebre de Cravo Branco os nervos da mulata se acalmaram...
O enterro saiu às quatro horas.

Os trechos que estou citando são de Terra de Caruaru, do escritor que me transportou, adolescente, a Pernambuco, e cuja leitura me despertou, como nunca antes, o romântico, o apaixonado, o noctívago, o perturbado. Ou seja, grande parte da culpa é do tal de José Condé, nascido em Caruaru, ora pois.
Abriram-se todas as portas e janelas da rua pobre para seus moradores verem a passagem do cortejo. Mas ninguém chorava. Mestre Ananias deu o sinal e a banda começou a tocar a marcha fúnebre.
- Isso é triste demais – disse Jovina, que seguia ao lado do caixão.
- Lasque um frevo, mestre.
- O quê?
- Isto mesmo. Faça a vontade do morto. Toque um frevo.
De José Condé (1917 – 1971) devorei Histórias da Cidade Morta, Os Dias Antigos, Um Ramo para Luísa, Terra de Caruaru, Vento do Amanhecer em Macambira, Noite contra Noite, Pensão Riso da Noite: Rua das Mágoas (Cerveja, Sanfona e Amor) e Tempo Vida Solidão. Mais que um escritor pernambucano, Condé escrevia livros pernambucanos. Ler Condé era estar de verdade em Recife, em Caruaru, porque a arte faz a verdade transcender a realidade, a arte te leva com mais veracidade a um lugar do que mil férias turísticas.
Amei minha primeira mulher, Luísa, às margens do Capibaribe, embora nunca tenha estado no Recife. Paguei à vista.
Pararam a marcha fúnebre e o cortejo se deteve por uns instantes, toda gente curiosa por saber o que havia acontecido. Foi quando, súbito, a orquestra largou os primeiros acordes do frevo que melhor fora ensaiado naquele ano. Não se soube depois como tudo havia começado. Soube-se apenas que, à frente do caixão, o porta-bandeira deu alguns passos agitando a bonita bandeira vermelha do Clube Mixto Carnavalesco Abanadores e o povo o imitou imediatamente. Daí a pouco todo mundo dançava. Inclusive Jovina, que fazia o passo enquanto as lágrimas lhe caíam do rosto aberto em estranho sorriso.
Condé tinha aquilo que Chico Science falava: era enfiado na lama do Manguetown, mas tinha as parabólicas ligadas no mundo. Sua obra retrata o humano e suas universais angústias, mas também era engraçado e popular. Quem não tem a idade dos sobrinhos do Tio Moa (em suma, quem for mais velho) há de se lembrar de uma mini-série muito engraçada, que fez muito sucesso na Globo, com o Ney Latorraca na pele  de Seu Quequé em Rabo de Saia. História de um adorável caixeiro viajante mulherengo, que tinha uma família em cada cidade. Obra de José Condé. Veja que beleza:
Dois dias mais tarde, da janela do trem da Great Western, Ezequias Vanderlei Lins via a cidade ficando para trás, sob a névoa do amanhecer – e, com ela, Eleuzina e os Filhos, que tinham ido levá-lo à estação. Como das vezes anteriores, sentia-se comovido, pois, apesar de ter sido sempre, pela profissão, homem de muito viajar, achava que um pouco de si mesmo se perdia na hora de cada despedida. Como se não fosse retornar nunca mais; como se lhe roubassem parte essencial do seu ser.
Mas essas impressões que o envolviam, só o inquietavam por breves momentos. Embora se repetissem, inevitavelmente, amanhã, daí a um ou dois meses – e, assim, pela existência afora – logo recuperava o equilíbrio emocional, porque o que predominava acima de tudo era a vida – a convicção de que, acontecesse o que acontecesse, ele continuaria sendo, única e verdadeiramente, Ezequias Vanderlei Lins, seu Quequé para os íntimos, o mais eficiente caixeiro-viajante da forma atacadista Oliveira & Rodrigues.
Quando comecei a fazer teatro pensei um colocar algum José Condé no palco. Qual? Um Ramo Para Luísa é belíssimo, tocante, denso, mas eu queria um teatro mais visceral, mais porradão. Visceral? Noite Contra Noite! Porradão, pero sin perder la beleza. É dali a passagem de que tanto o Panta gostava: “maio frio de acácias amarelas caindo na grama do jardim público. Cheiro de Mar que o vento trazia de uma esquina”. Aliás, toda a obra de Condé espalha acácias amarelas por nossa existência.
Urbano Tavares, protagonista, faz um brinde ao tédio do casal: “Viva o silêncio, que é a forma mais decente de duas criaturas se entenderem e encontrarem a paz”.
Em setembro de 1988, em Florianópolis, o Teatro do Parixoréu estreava Noite Contra Noite, com um objetivo acordado com o filho do escritor em troca da liberação da montagem: divulgar a obra do pai. E assim fizemos, em entrevistas (milhares de entrevistas, milhares).
Depois de um mês, o dono da Livrarias Catarinense comunicou que os livros de Conde, recém chegados, haviam se esgotado!

Na peça, o enigmático “homem de chapéu coco”, além de outros personagens, foi feito por Atílio Maurício, com uma entrega quase catártica. Atílio, alguns anos depois, se foi em circunstância triste. Segue este pequenino e raríssimo trecho, em que Atílio interpreta dois personagens, como homenagem póstuma para eternizá-lo nas nuvens da grande rede. Graaande Atílio!

E viva José Condé, Pernambuco, Caruaru, Recife, Chico Science, João Cabral, Lirinha, Karina Buhr, Cleide, Nívia, Rogéria, Cravo Branco e as acácias amarelas. 

sábado, 15 de outubro de 2011

PLEASANTVILLE E A COR DA NOSSA VIDA


Sabe quando a vida está boa... mas nem tanto?
Quando não há nada de errado com sua vida, você não está triste, algumas coisas vão bem, outras nem tanto, enfim, sabe quando a vida está normal, caminhando sem sobressaltos?
É como se sua vida estivesse bem, tudo claro, tudo bem nítido, mas... já sei: é como se sua vida estivesse em preto e branco. Você não sabe que sua vida está em preto e branco porque você nem pensa na cor, você vive a sua vida.
Na “Jornada do Herói” é como se você estivesse no estado de inocência, quando o herói, sem saber, se prepara apara o que vai vir. Mas você não sabe o que virá, nem se virá algo. Minha tia chamaria isso de vida sem sal, minha mãe chamaria isso de inconstância, uma amiga chama isso de sábado. Podemos chamar também de tédio inconsciente.
Matisse sem edição... Como é melhor!!!
Mas eis que, de repente, alguém aparece do nada, alguém novo ou alguém que você não via (ver é relativo nestes dias de banda larga) há muito tempo... E essa pessoa vem como se tivesse uma aquarela numa mão e um pincel na outra, e vem colorindo a parede da sua sala, do seu quarto, de todos os cômodos da sua vida...
Lembrei da música do Itamar: “bem que você podia, entrar na sala, da minha tarde vazia, como uma poesia”.
Você já sentiu alguém colorindo a sua vida e te deixou vibrando por dentro, como se um esquilo estivesse pulando dentro de você? É claro que já sentiu. Tem gente que é assim, carrega aquarela e vai colocando cor por onde passa.
Acabei de assistir o magnífico “Pleasantville”, de 1998, que por aqui levou o nome de “A Vida em Preto e Branco”. David (Tobey Maguire) é um rapaz viciado numa séria antiga, dos anos 50, Pleasantville. Obviamente a série é em preto e branco. Sua irmã, a fútil loira burra Jennifer (Reese Whiterspoon – era ótima já novinha) pega no pé do irmão nerd viciado numa série do passado. O roteiro (não interessa como) acaba mandando os dois para dentro da TV, mais precisamente para dentro da série, que mostra uma família sem sal de classe média. Eles entram como o casal de filhos da família. David, fanático pela série e conhecedor de todos os personagens, guia a irmã por aquele mundo onde tudo é totalmente certinho, tudo com horário, tudo funciona, no basquete do colégio ninguém erra cesta e, pasme-se: a irmã ex-loira burra é inteligente. É ou não é uma maravilha a vida em Pleasantville?
Boa, mas com um problema: é em preto e branco. Lá David (agora Bud) se sente à vontade como nunca se sentira no mundo real. Tão à vontade que começa a se soltar, e a soltar suas idéias libertárias pela cabeça do povo, e tudo começa a se colorir em Pleasantville, para assombro dos conservadores.
O filme é suave, elegante, delicado e lindo de se ver, maravilhosa direção de arte.
O clipe abaixo é quase um resumo do filme: veja que maravilha.

O que mais importa é que, ao final, você tem vontade de também pegar uma aquarela e sair colorindo o mundo e a vida das pessoas.
Lembrei de Chapecó, oeste de Santa Catarina, onde morei por cerca de dois meses e chefiei uma unidade pequena, com algo em torno de 15 ou 20 pessoas. Foi pouco tempo, mas com muita intensidade. Eu, basicamente um soturno anti-social convicto, freqüentei as casas de todos, conheci suas famílias, dei e ganhei presentes, fui ao estádio em turmas, aos churrascos e, sobretudo, conversei. A cultura era muito diferente e achei estranha a subserviência aos superiores, a pouca importância que davam às suas próprias opiniões e o quase nulo desejo de participar com idéias e mudar a vida, ao menos no trabalho. 
Resolvi que eu não daria ordem alguma, tudo eles decidiriam. Também disse que aos sábados todos pensariam em mudanças, dariam opiniões e decidiriam sobre algo novo, qualquer coisa, a fazer no ambiente de trabalho já na semana seguinte. Foram 2 ou 3 meses maravilhosos. 
Colorir a vida talvez seja algo como comer uma maçã no paraíso
Às vésperas de eu ir embora, uma mulher que trabalhava comigo (miseravelmente não me lembro de seu nome) me perguntou se eu tinha consciência da minha missão na vida. Devo ter gaguejado alguma coisa, enfim, não sabia, ou achei que não tinha, como acho até hoje. Ela falou, e começou a chorar, que ter consciência da missão é muito importante e que se ela podia me dar algum presente era me comunicar que a minha missão era melhorar as pessoas, era dar significado à vida dos outros.  E disse que eu tinha feito isso com todos eles. Não acho que tenha merecido aquilo, mas “a missão” ficou na minha cabeça e serve, ao menos, para eu me cobrar fazer algo, despertar a mim mesmo e às pessoas de vez em quando. Escrevendo isso, me lembro da despedida do chefe no final de “A Riviera Não É Aqui”, filme francês que já mereceu um pôsti neste aclamado (por mim) blógui.   
Não sei, e desconfio que ninguém saiba, o que dá mais prazer: colorir a vida dos outros ou ter a vida colorida por alguém.  Este emocionado pôsti, dedicado aos Matisses que colorem nossas vidas, termina com a música que fecha o filme, a maravilhosa “Across The Universe”, dos Beatles, cantada por Fiona Apple. No clipe ela está na cena em que os conservadores quebram a lanchonete que ousou ter uma vitrine com cores.


sexta-feira, 14 de outubro de 2011

DEUS É TUDO! - Parte 2

No pôsti anterior eu disse que Deus fez uma participação especial num disco do Travelling Wilburys (George Harrison, Bob Dylan, Roy Orbison, Jeff Lynne e Tom Petty), em Handle With Care. Pois então veja, mas antes lembre-se que para se chegar a Deus é necessário seguir algumas regras, no caso, ouvir a música em alto volume, afinal, Deus só se revela em voz alta, nunca em sussurro nem como fundo musical (você já viu seu, ops, Seu vozeirão nos filmes?).

Bem, ouça isso (link abaixo). O som é maravilhoso e mágico desde o início (também, com as essas feras..). Mas aos 40 segundos, a coisa não é mais bonita, nem maravilhosa, nem reveladora: é divina, ops, Divina. Deus entra travestido de Roy Orbison com o verso

I'm so tired of being lonely
I still have some love to give
Won't you show me that you really care




Veja até o fim, porque Deus entra de novo na segunda parte.

Bom, se você, caro leitor deste blógui semi-evangelizado, pensa que estou brincando, que isso é desrespeito com Deus, pense no seguinte: se Deus se manifesta nas pequenas coisas, em que tipo de pequenas coisas Ele escolheria se manifestar, já que o mundo é composto, basicamente de quaquilhões de pequenas coisas?

Talvez na igreja? Talvez... Mas, pensando bem, ao contrário do que se fala, uma igreja não é o tempo de Deus, mas de uma determinada religião.. E religião, sei não... Pense em todas as atrocidades que se cometem, desde os tempos imemoriais até os dias de hoje, em nome da religião. Pense em todas as guerras, em todos os dízimos, em todas as riquezas das religiões... Em toda a pedofilia, em toda a associação com os poderes dominantes. Pense que o Papa, na África assolada pela AIDS, pediu para não usarem camisinha. Pense nos Edires...

Deus faz as coisas de modo enigmático: depois de eu escrever, inusitadamente, um pôsti sobre Deus, passei pela NET e vi, no HBO, um trecho de uma stand-up comedy, com Bill Maher. O cara não gosta muito de religião... Estava falando sobre o Deus que as pessoas inventaram. Um Deus que tem um filho, Jesus, de uma virgem... Bom, aí estão lá, Pai e filho.
“E aí, paizão, o que a gente vai fazer hoje?”.
“Que tal descer à Terra?”
“Legal, e o que a gente vai fazer lá”.
“Bem, não é bem a gente... Você vai sozinho”
“E o que eu vou fazer lá?”
“Bem... como dizer... você vai lá ser crucificado. Legal, né?”
“O quê?”

Finaliza Maher: que pai faz isso com um filho?

Bom, caríssimo leitor temente a Deus (estranho essa coisa de temer, não é?), se você acha que estou exagerando, que as religiões não são tão más assim, que na verdade as pessoas buscam as orações e as rezas como forma de se aproximar de Deus, veja esta: sabia que todos os boleiros, profissionais ou não, jogadores do Corinthians, do Flamengo, do Jiripoca FC, do seu bairro, e até o seu namorado que joga bola no fim de semana e disputa algum campeonatinho do clube ou da empresa, todos eles, absolutamente todos, são devotos e fazem um ritual, igualzinho em todos os gramados e campos de terra, e a TV, vira e mexe, está mostrando sempre com um comentário ressaltando a “espiritualidade” dos jogadores? Antes de entrar em campo, os jogadores, em roda, se abraçam e rezam “a oração que Ele nos ensinou”. É exatamente assim (por favor, não ria):

 
Eu disse para não rir. Mas compreendo, é difícil. Sabe o que fazem depois dessa comovente demonstração de espiritualidade guerreira? Vão para campo guerrear em nome do senhor, ops, Senhor. E dão pontapé, cusparadas, cotoveladas, se ofendem o tempo todo, e depois os vencedores saem agradecendo a Deus e os perdedores dizendo que se Deus quiser, com muito trabalho e fazendo o que o professor mandar, na próxima o resultado será melhor. Imagino Deus, se existisse em forma de um Editor de TV, como eles devem acreditar, tendo que escolher entre os dois times que o invocaram...

Kim Novak aparece, como que vindo do além,
transmada em Madeleine, numa das cenas mais
lindas  e transcendentais da história do cinema
Prefiro acreditar que, se Deus existe, e estão aí o Ar Condicionado e a Coca-Cola como provas cabais e Sua existência, Ele se manifesta na arte e pode estar, sim, num campo de futebol, mas só em raríssimas ocasiões, numa igreja (o Dedo de Deus, na capela Sistina, foi feito por Deus nas mãos de Michelangelo), em músicas, como a que citei, ou no cinema, como por exemplo quando Hitchcock é tomado por Deus ao filmar Kim Novak, diante de um perplexo Jimmy Stewart e sob a luz verde do neon que invade o quarto, sair do banheiro, definitiva e completamente transformada em Madeleine. Uau... Meu Deus!

E por falar em verde, não tem como deixar de ver, por estes dias de volta das chuvas em Brasília, sob a palha de uma seca torrencial, Deus brotando naquele verde vivo e fresco, tão presente na nossa visão do paraíso. 

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

DEUS É TUDO! - Parte 1


Amo Deus. Adoro Deus. Não, não acordei convertido. Sempre amei a deus, ops, Deus, sobre todas as coisas. Por exemplo, quando uma das minhas ex-posas pediu que eu tirasse o ar condicionado do quarto, e falou "ou eu ou o ar", não tive dúvidas: ar condicionado. Ela, revoltada: você não me ama mais? É claro que amo, mas amo a Deus sobre todas as coisas.

Quem ama Deus sabe que ele, digo, Ele se manifesta nas pequenas coisas, algumas delas nem tão pequenas assim. Você, descrente do que digo, pense no paraíso, que é um lugar que todos gostariam de estar. O que você imagina do paraíso? Um lugar bonito, com colinas verdejantes. Essa visão é geral, todos, absolutamente todos, vêem a mesma coisa, porque todos somos manifestações de Deus, que, afinal, criou o paraíso.

Pronto, agora esqueça o paraíso. Pense que você está na estrada, seu carro pifou, o celular está fora de área e você vê uma casa ao longe e decide que vai até lá para ver se tem um telefone para ligar para o maldito seguro (maldito porque te cobra uma fortuna), que, quando te salva de um apuro, se transforma automaticamente em bendito seguro. Só que de onde você está até a casa tem uma distância enorme, e você vai ter que caminhar até lá. O lugar é bonito, tem grama, mas está um sol desgraçado, uns 40 graus (o sol deixa tudo mais bonito, mas não necessariamente agradável) e o caminho é um pasto (verdejante, lembra da descrição do paraíso?) com o piso todo irregular e fofo, que exige um esforço danado para caminhar numa subida que parece não ter fim. Lembra da colina da descrição do paraíso? Na real, a descrição física, ou paisagística do paraíso é aquela mesmo: um lugar bonito, com colinas verdejantes. Então porque você está detestando, se você está num lugar exatamente igual? Eu te respondo: o que torna o paraíso um lugar agradável não é o que aparece na foto, mas a sensação que você imagina ao estar lá: um lugar fresquinho e agradável. Fresquinho... agradável... Está captando? Ainda não? 

Então pense na sua casa, num calor infernal de uma tarde de domingo. Você tem um ar condicionado no quarto e o ligou há meia hora, antes de almoçar. Já almoçou, lavou os pratos e seu apartamento está quente como o caminho para a casa na estrada. Mas você agora vai para o seu quarto. Assim que entra, sente aquele frescor maravilhoso e pensa: aqui é o paraíso.

Você tem razão: o paraíso existe, Deus existe, e se manifesta no ar condicionado, por exemplo. Por isso eu amo Deus.

Bom, são 16h, meu almoço está pronto, a casa limpinha, cozinha brilhando, janela aberta batendo um divino vento fresco e na vitrola Travelling Wilburis, que por sinal, tem uma participação especialíssima de Deus.  Mas depois eu conto o resto. 

domingo, 2 de outubro de 2011

AS AMIZADES MODERNAS E A ALTA FEROCIDADE

Tenho recebido muitas solicitações de amizade no facebook, mas reluto muito em aceitar. Não que eu não goste da pessoa que me convida, não é isso. A seta do mouse até chega ao botão de confirmar, mas algo me trava e resolvo deixar para depois. Sinto-me um anti-social ao não aceitar logo, como amigos, algumas pessoas muito muito muito legais. Tem o Márcio, o Eusébio, a Eunice, o Nérso e mais um monte de gente que gosto muito. O problema é que ainda estou muito preso ao antigo conceito de amigo: aquele que a gente pode contar todas as nossas bobagens, contar quando pulou a cerca, quando brochou; amigo é aquele que a gente dá dura, que diz pra gente não comer sal, que a gente pode até dizer que não quer vê-lo naquele dia. É aquele que a gente pode pedir dinheiro emprestado (mais do que pra família, até).

Cena do Segura a Onda (Curb your entusiasm), que passa na HBO: (aquela série do ator de “Tudo Pode Dar Certo”, do Woody Allen). Larry David (ele interpreta a si próprio) está em Nova York, em viagem; entra num restaurante chinês pra pegar comida para viagem que houvera encomendado e encontra um conhecido, creio que do trabalho.
Conhecido: Oi Larry, você também está aqui?
Larry: Parece, não é?
Conhecido: Que ótimo
Larry: Por que ótimo?
Conhecido: Ora, porque... Porque é bom ver alguém conhecido. Vamos almoçar?
Larry: Não, eu estou levando almoço para viagem, vou almoçar no hotel.
Conhecido: Para quê comer sozinho no hotel? Vamos almoçar juntos.
Larry: Na verdade eu não acho uma boa idéia.
Conhecido: Ora, por que não? Somos da mesma cidade e estamos aqui, de viagem. Porque não almoçarmos juntos?
Larry: Porque iríamos almoçar juntos em outra cidade se nunca almoçamos juntos na cidade em que moramos?... Quem disse que estarmos juntos em Nova York é um motivo para almoçarmos juntos? Sinto muito, eu só almoço com amigos.
Conhecido: Você já parou para pensar que nós só não somos amigos porque nunca almoçamos juntos?
Eu sei que o atual conceito de amigo não é mais aquele antigo, mas enquanto eu não descobrir qual é o novo conceito só aceitarei amigos no Facebook de acordo com o conceito que falei acima, ou seja, aqueles para quem eu possa pedir dinheiro emprestado... Ei, isso não foi para afugentar ninguém, não! Não foi nada do tipo “pense bem antes de pedir minha amizade no Facebook”. Pode continuar pedindo; não estou excluindo ninguém, estou apenas deixando lá, esperando eu mudar meu conceito de amigo...  Ou entender como é essa nova amizade nas redes sociais.
Tem mais um problema: essas redes sociais me assustam um pouco, ou “um muito”... Parece haver uma predisposição para a briga. Muita gente confunde ser contundente em suas opiniões sobre um tema com ser grosseiro com uma pessoa que está passando por ali. As pessoas estão sempre se sentindo ofendidas. Estão sempre prontas a interpretar qualquer coisa como uma agressão.
Um dia desses estava no trânsito e em algum momento me distraí e passei um pouco para a faixa ao lado, pouca coisa, creio que, no máximo, um metro, nada que tivesse posto em risco quem estava ao lado. De fato, havia alguém ao lado. Nem deu tempo para ele buzinar, pois corrigi na mesma hora. Entretanto ele deve ter se assustado e reduziu: normalíssimo, é o que fazemos por prudência. Depois percebi um carro ao meu lado, mantendo a minha velocidade. Demorei a perceber que era o tal, o ofendido.  Olhei para o lado, ele estava lá, me encarando. Pedi desculpas com um sinal. Voltei a olhar para frente e desacelerei um pouco para o cara seguir seu caminho com seu mau humor, só que ele também reduziu. Olhei de novo e ele estava lá, de vidro aberto, me encarando, querendo dizer alguma coisa. Xinga e extravasa, pensei. O que mais eu podia fazer além de pedir desculpas? Fiz outro sinal de desculpas, mas acho que não era isso que ele queria: continuou ali. Eu acelerava, ele acelerava, eu reduzia, ele reduzia. Aí olhei fazendo aquela expressão de “o que você quer, o que eu posso fazer, errei, pronto, acabou?”. Ele começou a vociferar. Achei ótimo... Só que ele não parava, não parava e não parava. Mudei de tática: dei um sorriso e mandei um beijo bem gay, atirando com a palma da mão. Perturbado, ele desacelerou, depois deve ter se refeito, acelerou, ultrapassou-me, botou as duas mãos para fora da janela, a mão direita deu um soco na esquerda, espalmada. Não sei se ele entende sinal de desculpas, mas eu entendo o sinal de “vou te dar uma surra”. Eu mandei mais um beijo, entrei à direita e ele sumiu... Imagino que deve ter tido um infarto fulminante.
Voltando ao Larry David, ele levou a comida para o hotel, mas todos os potes vazaram. Ele ficou puto. Num outro dia voltou ao restaurante e contou ao dono o que havia acontecido, reclamou muito, contou com detalhes, falou que quem lida com comida para viagem, tem que se preocupar com tudo, não apenas com a qualidade da comida, mas também com a qualidade da embalagem, que tem que fechar com fitas e grampos. Depois de ouvir tudo, o chinês falou.
Chinês do restaurante: Eu entendo. Vou agora mesmo mandar fazer outra comida para o senhor.
Larry: Não, o senhor não entendeu. Eu não vim até aqui para pedir outra comida.
Chinês do restaurante: Mas você tem direito.
Larry: Tenho, mas não preciso disso. Quero apenas alertá-lo de que as embalagens foram mal fechadas, que se deve ter cuidado com as embalagens, que vocês têm que pensar que as pessoas levam em sacolas, que as sacolas se mexem, balançam, e as embalagens viram.
Chinês do restaurante: E então...?
Larry: Como “e então?” As embalagens têm que ser reforçadas, tem que colocar fita adesiva, grampos.
Chinês do restaurante: O senhor já falou isso, já falou da qualidade, dos grampos, da sacola que vira. Eu já ofereci outra comida e o senhor recusou e está repetindo tudo de novo. O que eu tenho que fazer pára o senhor parar de falar e me deixar trabalhar?
Larry: (sorri, com aquela carinha de astuto irônico) Que tal um pedido de desculpas?
Chinês do restaurante: (respira fundo, contorna o balcão para ficar de gente com Larry e inclina levemente o dorso para frente, em reverência) Desculpe-me senhor.
Larry: (surpreso, feliz e muito impressionado) Ah! Puxa, isso foi uma reverência? Foi com reverência e tudo?
Chinês do restaurante: É um costume do nosso povo
Larry fica mostra-se muito satisfeito e sai.
Retornando ao meu medo de redes sociais, que na verdade é um medo das pessoas, pegue qualquer noticiário via internet e veja os comentários. Um comenta, o outro agride quem comenta, aparece um monte de agressores que se esquecem do que discutiam e trocam ofensas. Um horror isso que chamam de participação das pessoas.
O bom de tudo isso é que todos têm espaço para emitir sua opinião, expor sua arte, expor seus gostos, expor suas preferências, expor seus anseios, expor suas dúvidas, expor seus amores, seus amigos, expor... Ei, não é exposição demais, não? “Parece um pouco assustador, não é?” (Arnaldo Baptista) Mas é moderno, é real, é isso aí mesmo... O mundo mudou. Talvez recusar isso tudo seja entrar na caverna de Platão. Talvez precisemos de um meio termo, afinal, de tudo isso, dos amigos que não são amigos pode aparecer um grande amigo, do amor virtual pode nascer um grande amor...
Mas o Larry, andando pelo Central Park viu um grupo de orientais e um derrubou o sorvete do outro. O senhor que derrubou pediu desculpas e fez uma reverência inclinando o dorso para frente, como aquele do restaurante fizera, só que este se inclinou muito, praticamente 90 graus. Larry ficou com a pulga atrás da orelha e abordou o grupo, perguntando sobre aquele movimento. Um senhor que falava inglês explicou que era muito importante fazer aquilo para provar que realmente estava pedindo desculpas.
Larry: Sim, eu entendi. Mas eu percebi que você não se inclinou só um pouquinho, você se inclinou muito.
Oriental: Sim, sinal de respeito e de verdade.
Larry: É um belo costume. Agora suponha que alguém derrube o sorvete do outro e no lugar de fazer assim (faz a reverência de 90 graus) fizesse só assim? (faz a reverência com leve inclinação, como o chinês do restaurante fizera)
Chinês do restaurante: (franze a sobrancelha) Ele não estaria sinceramente arrependido, estaria zombando de você... Seria um grande desrespeito!
Larry, obviamente, foi correndo ao restaurante!
Como navegar nesse novo mundo, com novas tecnologias e novas pessoas? Não faço a menor idéia. Talvez a caverna seja a salvação do mundo. Talvez o mundo nem precise de salvação, porque durante toda a história da humanidade existe a constatação (ou a sensação) de que as pessoas estão cada vez piores e de que o mundo está se acabando, e, como se vê, o mundo ainda não se acabou.
Durante a nova discussão com o chinês do restaurante, Larry descobriu que o cara com quem ele não almoçou, quase morreu engasgado naquele almoço e está internado. Sentindo-se culpado, pegou comida chinesa para viagem, que o dono do restaurante embalou cuidadosamente, em potes lacrados com fitas e grampos).
Larry lmoçou no quarto do hospital, com seu novo amigo. 
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