segunda-feira, 30 de agosto de 2010

A Incrível História do CPNES - Parte 4

Não quero me repetir, por isso, sem delongas, apresento o membro número 5. Lembro apenas que, ao falar de algum membro, acabarei abordando o grupo Cobra Parada não Engole Sapo, cuja atuação no início dos anos 80 mudou a cara de Brasília, do Brasil e, por conseqüência, do Mundo, no campo das artes, da política e da filosofia.


Membro número 5. Uma noite, após uma apresentação de “A Morte de Humberto Laraia” que tinha na platéia nada mais nada menos que o Caetano (sim, ele, o Veloso), fomos todos ao Beirute. Eu poderia dizer que o Caetano foi à nossa peça porque estava louco para vê-la, porque sua fama tinha chegado a ele, etc. Mas, como vocês sabem, eu prezo a verdade e prefiro contar o real motivo da ida do Caetano. Na noite anterior ele havia feito um show no Teatro Nacional; o ingresso era caríssimo para nossos padrões. Mas como o Tiba queria catar uma menina que era fã do Caetano, ele tanto fez que conseguiu entrar no camarim para pegar um autógrafo. Sabem como era o Tiba, aquela carinha de caipira desprotegido, aqueles olhos negros como a noite...

Bem, no dia seguinte estava lá o Caetano na platéia do CPNES, louco para ver a peça. Aplaudiu demais, foi ao nosso camarim e depois saímos todos e fomos ao Beirute. Todos não. O Tiba foi atrás da menina, levar o autógrafo. Caetano estava com uma cara péssima. Mas ao seu lado na mesa estava alguém cuja conversa mudou a sua noite e o influenciou a compor seu disco mais moderno e surpreendente, além de um dos mais inspirados.

Quem estava ao lado do Caetano? Vamos lá, desde o início:

Ela ainda era uma semente do que seria quando, descendente direta da linhagem de abastados senhores do café, vivia entre a cruz e a espada. A cruz era a religião, que, como se sabe, era usada pelos senhores para alentar os escravos e convencê-los de que havia algum sentido no fato de trabalhar de sol a sol sem ganhar lhufas, ou, ganhar, no máximo, o que Luzia ganhou atrás da horta (aos sobrinhos: não foi salsa o que Luzia ganhou atrás da horta, nem cebolinha, e certamente também não foi rúcula ou erva doce).

Voltando aos escravos, eles eram negros, como se sabe. Também eram, como se sabe, bem dotados... de força e determinação. Para acalmá-los e desviá-los dessa coisa de justiça terrena, os senhores pregavam a religião, lembrando que após a morte a vida é eterna e, portanto, muito mais duradoura que a vida antes da morte. Lá os escravos seriam ricos e comeriam aquelas branquinhas sem precisar ser jogador de futebol nem cantar pagode. Os pobres seriam ricos e os ricos seriam pobres e lamberiam seus pés chulezentos, o que podia ser considerado o inferno. Assim os mantinham serenamente agradecendo as chibatadas.

Voltando ao membro número 5, na sua adolescência continuava a viver entre a cruz e a espada. A espada era o comprovado, o exato, e a cruz, a religião, que se dizia portadora do moralmente certo. Mas o membro número 5 questionava tudo, a começar pelo seu próprio nome: “Mãe, como eu posso como ter “mar” no meu nome se eu vivo em Minas?” Sua mãe respondia que era prá ela ter a cabeça além daquelas montanhas, no que ela não pode ver.

Questionando tudo o que não podia ver, resolveu entregar-se ao que podia ver e comprovar, entregar-se ao que era o certo, no sentido de exato, concreto. Assim chegou à engenharia civil. Entretanto, ao visitar os prédios mais representativos, percebeu que não ligava a mínima para a resistência dos materiais, nem para as estruturas, pilares e vigas, mas sim pela beleza dos acabamentos. Tanto isso é verdade que até hoje finge fazer exercícios, em Brasília, para admirar obras de arte, como os azulejos de Athos Bulcão (o Correio Brasiliense, que vive atrás de membros do CPNES, a entrevistou numa dessas saídas - pode procurar no Google).

Insatisfeita com a engenharia civil transferiu-se então para a engenharia elétrica na esperança de encontrar as respostas para suas indagações, mas descobriu que, ao subir num poste de alta tensão, o que a encantava não eram os componentes citados pelo Helio Creder em seu livro de instalações, não os campos elétricos mas o campos verdejantes e o horizonte. Na verdade, adorava o que não podia ver, o que estava além, como vaticinara a mãe.

Certa manhã saiu para pensar nas suas dúvidas sobre a vida. Caminhando descalça, afundando os pés na lama gelada das margens do rio Paraibuna, que corta Juiz de Fora, viu Roque, um santeiro (escultor de santos) que tinha uma queda por ela e que havia sido morto 3 dias antes. Ele apareceu para ela e disse: “vá para Brasília, lá você vai encontrar o que procura”.

No dia seguinte ela pegou as malas e sumiu pela estrada. Dito e feito: lá ela se encontrou, e foi no exato instante em que, durante uma aula de contabilidade, dormindo os seus costumeiros e profundíssimos sonos, sonhou que não era uma bíblia e que também não era um capacitor, mas sim uma flor, a mais linda das flores, e que viveria rodeada de outras rosas, cravos, jasmins, violetas, e árvores como as centenárias ceratonas, os ipês e tudo mais o que Burle Marx já inventou. No sonho, a fragrância de suas pétalas inspiraria todos aqueles que lutassem pelo que é belo e pelo que é justo e que seus espinhos sangrariam as mãos dos impuros. Quando o último aluno saiu da sala e bateu a porta, ela acordou. Já não era mais mar. Era Flor.

E seu sonho se cumpriu. Rosaflor, de inteligência invulgar, amante das letras, da poesia e de Guimarães Rosa, ajudava nos textos escritos pelo Tio Moa (que ainda não era tio, mas sobrinho) e nas músicas; nos inspirava a todos na luta contra a injustiça e na busca da beleza, o que faz ainda hoje, com seu jeito mole e sua fala mansa, que diz ao balanço do vento.

Voltando ao início, Caetano estava irritado. Ao lado, a Rosa que, já meio alterada, começou a chamá-lo de Velô (como todos do CPNES, sempre afrontando autoridades...). “O, Velô, você tem que ler o Guimarães Rosa”. E falava sobre Camões, sobre paródias e confusões de prosódia, poesia concreta, flor do Lácio, e todas aquelas coisas que ela sempre dizia prá gente quando estava alta. Só que a gente nunca fez daquilo uma música. Caetano compôs, ali mesmo, na nossa frente, diretamente influenciado pela Rosa, a música “Língua”, que gravou no disco do ano seguinte, chamado “Velô”. Por algum motivo, acho que outra música do mesmo disco, “Podres Poderes”, tem algo a ver com o Tiba. Rosa tem um filho. Adivinhem o nome...

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

A Incrível História do CPNES - Parte 3

Na parte 1 você viu que o “Cobra Parada Não Engole Sapo” (CPNES) foi um grupo que fez arte no início dos anos 80 e mudou a cara de Brasília, do Brasil e, por conseqüência, do Mundo, no campo das artes, da política e da filosofia. Você viu também o quanto os brasilienses Renato, Bi, Dado e Dinho, ícones do Rock Brasil dos anos 80, viajavam com o CPNES e o quanto foram influenciados.


Na parte 2 você foi lembrado de que o CPNES foi um grupo que fez arte no início dos anos 80 e mudou a cara de Brasília, do Brasil e, por conseqüência, do Mundo, no campo das artes, da política e da filosofia. Você também conheceu 3 membros do grupo: o Panta, o Sobral e o perseverante Marcovitch

Esta parte 3 terá é dedicada ao único galã, do grupo, desaparecido em circunstâncias misteriosas.

Membro número 4: Um cantor e poeta cearense, autor de Pavão Misteriozo (pavão misteriozo/ pássaro formoso/ tudo é mistério/ neste seu voar), costumava andar por Brasília, cantando em festivais, se deliciando com a cidade planeta e passando horas no Beirute, um bar freqüentado por artistas, gays, pais e mães de família totalmente normais, peladeiros pós-pelada, punks e pats. Era, e ainda é, um bar eclético e de aceitação. Naquela época era comum você conhecer gente nova e de lá sair para uma festa ou mesmo para um singelo passeio pela superquadra, entre a relva e os majestosos fícus benjamins, ceratonas e ipês. Ednardo saiu do bar para dar um desses passeios e encontrou pelo caminho um caipira risonho e viajandão, dando voltas com os braços abertos até deitar no chão e olhar pro céu. Ednardo estava admirado da cena, um cara sozinho no meio da superquadra, brincando de super-homem ou de avião.
- Quer viajar? Deita aí e olha pro céu.
Ednardo obedeceu.
- VeR o céu ajuda a abriR a poRta da peRcepção.
Imagine essa última frase dita com um sotaque bem caipira do interior de São Paulo
- Qual a sua graça?
- Ednardo – que riu da expressão antiga para perguntar seu nome.
- Prazer, Altibano.
Aquele cara não existia, pensou o cearense, achando que o cara tivesse fumado algo. Ele não conhecia mesmo o Tiba... Quando voltou para a mesa, Ednardo pegou uns guardanapos e começou a escrever. A maravilhosa “Serenata prá Brazilia” diz o seguinte:
É uma ilha solitária, mil sotaques
Uma trilha que descobre uma Babel
Encruzilhada de destinos
Super-homens, super quadras, multi-solidão
Cidade-avião, vôo rasante, aeroplanta, o Altibano do chão
Cidade planeta, um desaguar de viajantes...

Quando gravou a música, Ednardo resolveu subsituir Altibano por Altiplano, para evitar comentários maledicentes.

Para quase tudo o que se falasse ao Tiba, ele respondia com “É”, um misto de exclamação e pergunta, como se não soubesse do que se tratava mas devesse concordar. Estava sempre meio perdido, meio deslocado, mas encantava-se por tudo, especialmente por mulheres. Com aquele ar perdido que as mulheres amam, e com seu tipo entre o galã e o jeca, Tiba era irresistível. As meninas, e até um menino, o amavam. Mas Tiba não amava ninguém. No máximo, comia, quero dizer, alentava esperanças. Mas nada, nem ninguém, podia amarrá-lo.

Mas nem tudo são flores na vida, nem na do Tiba. Um dia, Tiba estava num ambiente formalíssimo e sisudo de trabalho (achavam que ser sério era ter compromisso e civilidade – rir era quase uma subversão). Juntando a paixão por desafiar a força da gravidade (mania de voar), a mania de afrontar autoridades (como típico membro do CPNES), sua condição de totalmente perdido e sua genialidade, Tiba viu um tubo no chão e um pedaço de madeira por perto. Não teve dúvidas: pos a madeira sobre o tubo e, tentando equilibrar-se, brincou de surfista. Foi um show. Ele nunca havia surfado, mas o tubo e a madeira ele dominava. Todo mundo parou de trabalhar e se aproximou. O ambiente se encheu de alegria. Começaram a gritar e aplaudir. Uns começaram a marcar o tempo e fazer apostas. Ele se mantinha ali, equilibrado. Às vezes quase caía, mas com incrível destreza e habilidade, curvava o corpo, quase tocava o chão, como se estivesse num tubo tocando as ondas, e se erguia novamente. As 50 pessoas que se juntaram festejavam. Nunca haviam sido tão felizes no trabalho. Quando achou que era o momento de parar... Mentira, ele nunca acharia que era hora de parar... Quando se cansou (agora sim), deu um salto, bem alto, e, ao cair, bateu com o pé na ponta da tábua, que subiu, numa manobra feita com a intenção de pegá-la com a mão sem se abaixar, como os skatistas fazem com o skate. Mas, muito empolgado com seu desempenho espetacular e com o delírio da platéia, bateu forte demais na madeira, que subiu muito e fugiu dele. Todos olharam para cima acompanhando a madeira subindo, girando, subindo, diminuindo a velocidade da subida e do giro, até que lá em cima quase parou no ar antes de descer. Quiçá tivesse parado no ar, como helicóptero, como um beija-flor, como o Dadá Maravilha, ou como se alguém desse uma pausa. Mas não, ela não parou. Pior, caiu, caiu rápido, sem voltinhas, reta, dura, direto na cabeça do chefe-boçal-militar-sem-farda-nem-competência, que caiu desmaiado, ao que o povo urrou de alegria, enfim vingados do déspota inútil. Gritavam em coro “Ei chefia, vai tomar no cu”. Ops, acho que agora fui eu que viajei. Fui emocional e inventei coisa. Volta a fita. A madeira não caiu na cabeça, como os presentes gostaríamos, mas ao lado do manda-chuva, que se levantou e gritou ninguém sabe o quê. Só se sabe que o povo voltou rápido e em silêncio para os seus lugares, com ar de “o que era doce acabou, tudo tomou seu lugar, depois que o Tiba passou, e cada qual no seu canto, em cada canto uma dor, depois do Tiba passar surfando ondas de amor”. Depois daquilo Tiba sumiu. Conta-se que foi visto somente vários anos depois, pelas bandas de São Paulo, com os mesmos cabelos negros e lisos caídos para o lado, mas sem se lembrar exatamente de quem era. Quando lhe perguntaram "você é o Tiba?" ele respondeu "É ! ?"

Se alguém souber do paradeiro do Tiba, solicitamos entrar em contato com este blog ou com o jornalista Marcelo Resende, que prepara um programa sério sobre o misterioso desaparecimento. E, já que o achou, aproveite e lhe dê uma noticia: o chefe-boçal-militar-sem-farda-nem-competência dançou, foi decapitado e deportado. Mas não pense que o Tiba vai achar o máximo. Tiba jamais será vingativo. Para ele tudo sempre esteve e sempre estará bem. Quando você disse “o cara dançou” ele dirá respnderá “É ! ?”

P.S. Tiba foi o súdito bebum que desafiou o Rei e traçou a princesa em “Nosso Reino”. Também foi o inesquecível Xerxes, no maior sucesso do grupo, “A Morte de Humberto Laraia”. Xerxes reclamava da sua esposa, a Norma, porque ela era muito certinha. A peça acaba com Xerxes entrando pelo espelho e saindo de cena. Definitivamente. Sumiu dias depois. A peça seguinte do CPNES foi “O Homem que Usava Cabeça de Papelão”, um desafio ao poder constituído e uma homenagem ao Tiba, como se pode constatar no folder.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Tio Moa e suas reminiscências - Radio Days

Brasília, sexta feira, 21h. Haveria um importante e difícil jogo da Ponte Preta, contra a líder da série B, a Portuguesa, no campo do adversário, o Canindé. A Ponte estava subindo e se aproximava do G4, vinha de 4 vitórias seguidas e apesar de ser improvável a quinta vitória, eu estava louco para ver o jogo. Quando os times entraram em campo, a TV saiu do ar. Fui ao micro pensando ver pela internet, ou em ouvir numa radio on-line, mas a internet também havia caído. Combo é assim, acaba uma coisa, acaba tudo. Liguei do celular e a previsão de retorno do sistema era para depois do final do jogo. Aí lembrei que no radio do carro talvez estivesse transmitindo, afinal, o jogo era em São Paulo e a Jovem Pan de São Paulo tem retransmissora em Brasília. Como diria Nelson Rodrigues, batata! Ouvi o jogo, que foi dificílimo, mas a POnte venceu, com gol de William, 1x0, a quinta vitória seguida do meu time, num jogo eletrizante. Uma informação importante: pelo rádio, todos os jogos são eletrizantes...


Depois do jogo subi para o apartamento, liguei a TV e esperei para ver a reprise, que começou a 1h. Foi incrível! É impressionante o poder que tem o rádio de nos fazer construir imagens. Cada lance que via na TV era como se eu já tivesse visto e não apenas ouvido. Imaginava os lances de forma muito parecida como ocorreram na realidade. Reconhecia os lances. Uma transmissão por rádio utiliza códigos: no rádio ouvi “desce Malaquias pela meia direita, corta, traz para o pé esquerdo, sai da ponta, vai pra meia” e a mente construiu uma imagem. Quando vi o lance na TV, a imagem que minha cabeça havia projetado era quase igual. Ou seja, ver o que ouvi apenas ratificou, não trouxe quase nada a mais. A única diferença fundamental foi a favor do rádio: pela TV é muito menos emocionante. O locutor do rádio dá uma emoção que o da TV jamais chega perto. Pela TV, o cara não pode, tem que se ater ao que aconteceu. No rádio ele cria mais perigo do que existe, ainda que não minta sobre o lance.

Não estou querendo dizer que não verei mais na TV, só “verei” pelo rádio. Mas algo mudou. Se todos os jogos da Ponte fossem, como dizia minha santa mãezinha, "irradiados" onde moro, eu ficaria com muito menos pressa de chegar em casa e ligar a TV. O rádio satisfaz plenamente.

A noite de sexta me provocou muitas recordações da infância e adolescência, o que acabou me levando a um dos meus filmes preferidos do Woody Allen, “Radio Days”, no qual ele traz recordações de infância, que tinham como pano de fundo o rádio, que ocupava o lugar que há poucos anos foi da TV. Sobrinhos do tio Moa, acreditem: as pessoas se juntavam ao redor do rádio para ouvir novela ou futebol!

Em 1969 minha mãe e meu avô estavam nervosíssimos ao lado do rádio. Jogavam, na Vila Belmiro, a pequenina Ponte e o poderoso Santos de Pelé. Naquele ano, a Ponte acabava de subir para a primeira divisão e fazia uma campanha surpreendente. O primeiro tempo acabou 0 x 0. Perto do final do segundo tempo, todos estavam nervosíssimos, torcendo para que o Santos, que pressionava, não conseguisse o gol. A Ponte atacava pouco e parecia muito difícil que fizesse um gol no poderoso Santos de Pelé. Mas não tomar gol já estaria de bom tamanho. O rádio (à válvula, caixa de madeira) estava falhando um pouco, o chiado de estática encobria a voz do narrador, e não sabíamos quem estava no ataque quando finalmente saiu o grito de gol. Não sabíamos de quem era. Um suspense absurdo enquanto o locutor gritava um interminável gooooooool, ao final do qual ele finalmente falou “Santos, em jogada sensacional...” (chiado forte encobrindo a voz do locutor). Meu vô sacramentou "raios que o partam, foi do Santos". Minha mãe, nervosíssima, explodiu com as expressões que usava muito nessas ocasiões de contrariedade: “Lazarento-morfético-filho da puta”. Mas o locutor continuou: “Ponte 1, Santos 0". E a família urrou. "Não foi do Santos, foi da Ponte". Até o meu avô, um carrancudo português que de cada 10 frases oito eram “raios que o partam”, sorriu e berrou de alegria (não me lembro de outra vez que tenha feito isso na vida). Depois me explicaram: Santos era o nome do lateral esquerdo da Ponte Preta que fez uma grande jogada que resultou em gol da Ponte, que ganhou de 1 a 0 do poderoso Santos, de Pelé, em plena Vila Belmiro. Foi neste momento que larguei minha simpatia pelo Palmeiras e virei pontepretano.

Também me lembro das tardes sombrias de sábado, que eu tornava sombrias, pois escurecia o quarto para ouvir um programa que contava histórias de medo, de espíritos e mistérios.

Voltando ao Radio Days, ele começa com dois assaltantes levando tudo o que tinha numa casa. Aí toca o telefone. Com medo de despertar os vizinhos, um deles atende. É um programa de rádio que distribui prêmios para respostas certas. Os ladrões acertam as 3 perguntas e caem fora com o produto do roubo. No dia seguinte, a família está desolada quando chega o caminhão de prêmios, tudo novinho. Esse início já dá o tom: é um filme do bem!

Leve e cheio de poesia, é narrado pelo Woody Allen e o traz menino, em sua família, com suas irmãs mais velhas, seus tios e tias, alguns morando na mesma casa, outros visitando nas festas. Há o namorado da irmã, que o leva ao cinema pela primeira vez. Há a tia cantando Carmem Miranda, com seus típicos trejeitos, no banheiro, quando chegam dois tios e fazem o refrão, num dos momentos mais marcantes do filme. Há uma garçonete fanha que presencia um assassinato e é pega pelo bandido, que antes de matá-la a leva à casa de sua mãe, também “funcionária” da máfia. Acabam gostando dela, resolvem não matá-la e ainda a colocam como cantora no rádio.

Rádio Days provoca identificação muito forte porque é composto de situações cotidianas muito próximas de nós. Ao lembrarmos nossa infância, sempre sentimos aquela nostalgia boa, mas meio doída; sempre vemos tudo como mais leve, mais puro e mais gostoso. Talvez seja porque o tempo elimina as bobagens que no momento em que viemos, inventamos para a nossa vida. Com o tempo, o que fica mais nítido na memória são os momentos de amor, de alegria, as coisas boas que compartilhamos e a parte boa das pessoas que nos rodeiam.

Ver Radio Days é bom porque quase todos tivemos vizinhos chatos, tios, irmãs mais velhas, uma tia que apertava a bochecha da gente; todos nós fomos ao cinema pela primeira vez e em algum momento gostamos de super heróis; todos nós tivemos natais e réveillons.

Aliás, é num réveillon que o filme acaba, me deixando, sempre que vejo, em transe, tocado, sensibilizado, querendo ser poeta e sentindo minha alma imensa e inflada como um balão.

Viva o Rádio!

sábado, 21 de agosto de 2010

Tio Moa vai ao cinema: O Segredo dos Teus Olhos

O HOMEM QUE SUBLIMAVA DEMAIS

Peço desculpas aos leitores modernos, que gostam de textos curtinhos, mas neste terei que ser um pouco mais extenso. Só um pouco.

Há muito tempo li na Folha uma crítica do filme “Um Corpo Que Cai”, do Hitchcock. O título era “o homem que sublimava demais”. Achei o máximo o título remeter a outro filme do diretor (“O Homem Que Sabia Demais”). Me lembrei disso porque não há título melhor para falar de “O Segredo dos Teus Olhos”, que já deve estar nas locadoras (se ainda não viu, saia daí correndo assim que acabar de ler este post, vá a uma locadora, pegue o filme, assista umas duas ou três vezes e depois deposita uns 200 reais na minha conta, como agradecimento).

No dia da estréia do filme no cinema eu saí do trabalho e fui direto. Já entrei na sala sorrindo, feliz por estar prestes a ver um novo do Campanella. Na verdade o nome do diretor é Juan José Campanella, mas uso só um nome para demonstrar a intimidade. Se quiser impressionar alguém, fale, por exemplo, que adora o Almodóvar. Nunca fale do “diretor Pedro Almodóvar”, isso é distante. Fale “do Almodóvar”, como se estivesse falando de um vizinho, um cara qualquer que você vê todo dia. Bom, voltando ao Campanella, ele é Argentino, ou seja, um gringo boludo com mania de grandeza. Sorte nossa.

Falei que entrei na sala do cinema sorrindo de alegria e satisfação. E saí chorando. Não chorando assim pequenininho. Um baita choro, daqueles que você nem sabe bem porque está chorando, mas aquele choro vem forte lá de dentro e deixa a gente meio sem ar (é claro que, machérrimo, escondi das pessoas que estavam comigo).

Que tipo de filme é? É drama, comédia, suspense, thriller, depende da cena. Muitas cenas são tão boas que a gente pode admirá-las como um pequeno filme dentro do filme. Você está rindo e de repente você não está mais na comédia, mas num suspense, depois num thriller. É como se a gente tivesse num daqueles cinemas 3D em que as cadeiras se mexem conforme as subidas e descidas e a gente tem a sensação que vai cair mesmo.

Cada gênero é filmado ao estilo dos melhores: o melodrama tem ares de Almodóvar (até no título); o thriller à Scorcese, com uma cena de ação digna de um Brian de Palma; algumas cenas longas, tensas e sem falas são Hitchcock; a tocada das cenas de investigação lembra as comédias leves de Woody Allen (Scoop e Um Misterioso Assassinato em Manhattan). Visto assim, o filme é um pequeno compêndio de cinema, que se fecha esplendidamente com o take final à Ernst Lubitsch, um diretor de filmes leves e elegantes, que tinha a mania de esconder cenas atrás de uma porta. Apesar de tantas referências, tudo é bem costurado por um roteiro brilhante e por uma direção sensível, inventiva e humana: assinatura do diretor de “O Filho da Noiva”, “Clube da Lua” e “O Mesmo Amor, a Mesma Chuva”. É um filme para quem gosta de cinema se deliciar: cada tomada tem uma sutileza, uma elegância, um ponto de vista revelador. Isso tudo com uma tensão e angústia que atravessam todo o filme.

Falei tudo? Não, falta a história. Espósito (Ricardo Darin) tenta escrever um livro sobre uma investigação da qual participou há vinte anos e acaba viajando ao passado, quando além da história do crime, tinha a sua história com sua chefe, Irene (Soledad Villamil), que era louquinha por ele, mas o babaca (você vai ter uma raiva dele...) não tem coragem de chegar junto, e fica remoendo o resto da vida, até aqui, é claro.

Algumas cenas fantásticas (só algumas, o filme é cheio delas):

1. Logo no início, Espósito vai à cena de crime, conversando com um parceiro, numa conversa animada, cheia de palavrões, que é cortada um close em Darin quando ele entra numa casa e vê algo. A câmera está fechada em seu rosto, e é por ele que sabemos que o que está ali não é nada bom de ser visto. Coisa de ator dos bons e de diretor invulgar (a expressão invulgar é em homenagem à Fernanda, a quem o Inácio Araújo complicou toda – não entendeu? É piada interna, esquece). Em seguida um momento mágico de puro cinema: seus olhos percorrem o quarto, mostrando ora os fragmentos/sinais de uma vida feliz que enxerga pela sala, ora a horrível visão do corpo de mulher morta com muita violência. Viajamos com seus olhos e vivemos sua experiência. Fui enganado pelo gringo boludo: até ali, tudo levava a crer que era uma comédia.

2. Espósito examina uma foto e acha estranha a expressão de um sujeito. O movimento de câmera aproximando-se da foto, aliado à música, conta prá gente aquilo que para Espósito é leve suspeita.

3. A Hilária cena em que Espósito e seu amigo e colega de trabalho invadem uma casa à procura de pistas.

4. Logo depois, a genial cena do chefe passando uma descompostura em Espósito por ter feito aquela invasão. Incrível o timing de comédia (agora fui fundo: “timing de comédia”... Mas ao ver a cena você vai saber o motivo, quando o chefe soletrar “Es-po-si-...).

5. A cena em que o assassino, já solto, entra no elevador em que estão Esposito e Irene. Alí, numa descida de elevador, sem falas, Darin consegue relatar toda a nossa impotência diante da opressão da ditadura.

6. A cena do estádio é dos melhores planos-sequência da história do cinema: você se aproxima do estádio como se estivesse num helicóptero, depois acompanha o ataque, a bola na trave e desce para a arquibancada, onde, encontra Espósito e seu colega procurando alguém na multidão. Sai o gol na hora inacreditavelmente errada. Depois, a fuga e o desfecho da cena. Para os sobrinhos do tio Moa: plano-seqüência é uma cena feita sem cortes, com uma única câmera que vai filmando direto. O filme podia parar ali, para aplausos.

7. A linda e lacrimejante despedida, em flash back, me fez pensar “cena linda, mas maio apelativa”. Na cena seguinte, época atual, a própria protagonista ironiza a cena. O gringo boludo me enganou de novo. Campanella costura, brinca, mexe, diverte e até aterroriza (mas não vou falar das cenas de horror).

E os atores? Ricardo Darin é um monstro, não parece ator, de tão demasiadamente humano (frágil e impotente para mudar o rumo da sua vida). Ele sempre foi ótimo, mas neste filme subiu alguns degraus. O comediante Guillermo Francella, compõe Sandoval, um alcoólatra, com equilíbrio entre o humor e o drama pessoal. Soledad Vilamil faz sua Irene dizer tudo sem precisar falar nada, ou quase nada (“que no es lo mismo pero es igual”).

Numa cena, brilhante, Sandoval, meio borracho, explica sua tese para achar o suspeito, segundo a qual o homem pode abdicar de tudo, menos da paixão. A explicação fica na cabeça de Espósito, não apenas porque pode ajudar a encontrar o assassino, mas porque o lembra de sua própria fuga. O assassino do filme não foge, como previu Sandoval, de sua paixão, mas Espósito tentou fugir, no passado, quando deixou Irene na estação. Terá conseguido? Ele sabe que não.

Por que nós, os fracos, relutamos tanto quando chegamos perto de alcançar algo importante? Os mais fortes e determinados avançam. Mas os fracos, e desconfio que sejamos a maioria, fugimos e depois, para esconder a frustração, sublimamos, substituindo por algo nobre e inadiável: eu só não segui a carreira no teatro porque meu filho nasceu, foi por causa do meu casamento que não pude fazer aquela faculdade que eu tanto queria e que teria mudado minha vida. Fica mais fácil colocar a culpa em uma circunstância. No caso de Espósito, o homem que sublimava demais, a fuga foi justificada por um trabalho honroso que virou obsessão: pegar o assassino.

Viva a sua vida, diz o marido da vítima, quase no final do filme, mais de 20 anos depois. A ficha começa a cair e Espósito retorna, com angústia e esperança, para repensar, reviver e tentar de novo. A viagem de Espósito me fez viajar em mim mesmo. Descobri que meu choro no final do filme não foi só pela beleza do desfecho, pelas cenas bem feitas, mas principalmente pela angústia, pelo tempo perdido, por tudo de que já fugi.

Finalmente, o choro também foi de felicidade. Primeiro porque acho que as nossas fraquezas reafirmam mais a nossa humanidade do que o comportamento determinado e firme dos fortes. Segundo, porque percebi que ainda há tempo para, como diz Irene, deixar de ser lerdo, e buscar coisas que ainda quero, com as quais ainda sonho. Como disse Espósito, vai ser complicado, mas e daí?

A arte não faz milagres, mas um belo e poderoso filme pode economizar uma baita grana com terapia...
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