domingo, 30 de setembro de 2012

OS ASNOS SÃO LITERALMENTE BURROS?


Há dias em que desacredito brutalmente da humanidade. Nos demais dias desacredito menos. Não pense o leitor que não conhece este autor, que sou do tipo pessimista. Nada disso, muito pelo contrário. Sou até bastante otimista, tanto que acredito até em mim mesmo! O problema é que é difícil deixar de ser realista. Os sinais de que a humanidade não tem mais jeito são numerosos demais.

Quer ver? A gente liga a televisão e um cara pergunta prá gente porque o Gino Passione está feliz! A resposta é: “porque você está feliz”. Quem disse que eu estou feliz? Quem autoriza o cara a supor que eu saiba quem é o Gino Passione? Quem quer saber de um estúpido ursinho e que fica feliz porque eu fiz a revisão do meu carro naquela porcaria de concessionária? E mais: quem o autoriza a colocar aquela música ridícula que me inferniza desde que eu tinha iuns 6 anos? As pessoas fingem que gostam da música só porque é legalzinho gostar de música africana. Legal é gostar de música boa, seja africana, paquistanesa, inglesa, ou de que país for, exceto, vamos combinar, música japonesa (pedirei a Buda para que os fãs de música japonesa indignados não saiam por aí queimando embaixadas brasileiras). Sabe qual é a música que toca na propaganda? Aquela que diz assim:
“Sat wuguga 
sat ju benga 
sat si pata pata”. 
E o refrão, com a bestinha família do tal do Gino dançando de mãos dadas?  
“Hi ha mama, hi-a-ma 
sat si pata pata”. 
As TVs deviam ter aquele recurso dos e-mails: na hora que vai passar propaganda indesejada, a TV impediria e a gente escolheria o que colocar no lugar. Ah, me poupe... Gino Passione!


Falando em ursinho, está passando um filme nos cinemas, Ted, sobre um menino que ganhou um ursinho e na noite de Natal o ursinho ganhou vida e virou celebridade. O tempo passou e os dois são trintões. O ursinho ainda fala, mas também anda, pensa, bebe, fuma maconha e pega a mulherada (pega porque é famoso, é claro). Li críticas negativas, mas esses dias, estimulado pela efusiva recomendação do Márcio Guedes, da ESPN (último reduto do jornalismo esportivo inteligente), fui ver e gostei muito, bem mais do que pensava que gostaria. Diversão garantida, a não ser que você seja um daqueles moralistas que se revoltam, saem do cinema e vão incendiar estúdios de cinema.

Mas, por falar em jornalismo esportivo e incêndios, voltemos às besteiras televisivas: hoje o estádio do Manchester United sofreu um incêndio, ateado por um jogador, por sinal, japonês. Ao menos foi o que o narrador disse: “Kagawa entrou e literalmente incendiou a partida”. Outra tragédia, pouco comentada, foi a morte do corredor Lewis Hamilton, decapitado após realizar uma manobra perigosa. Ao menos foi o que o Galvão Bueno disse: “Lewis Hamilton literalmente perdeu a cabeça”. Você, leitor não idiota, já percebeu que ninguém mais diz nada sem colocar o tal “literalmente” para reforçar? E em 99% dos casos, erradamente. 

Em alguns casos não altera o sentido, como em “eu estou literalmente escrevendo este texto”. É idiota mas não altera muito. Mas na imensa maioria dos casos altera o sentido, mata pilotos e incendeia estádios. Outro dia ouvi que o excesso de notícias sobre o Ganso estaria "literalmente" afogando o jogador. Imaginei o jogador sob uma piscina cheia de jornais. 

Alguém precisa avisar essa gente que deve-se usar o “literalmente” quando se quer diferenciar uma metáfora de uma situação concreta. “Estar literalmente de pernas para o ar” significa estar com as pernas erguidas e não vagabundeando. Será que teremos que “estar fazendo” uma campanha contra o “literalmente” como foi feita contra aquela imbecilidade do gerundismo, que felizmente ficou restrita aos call-centers? Tudo bem que um idiota qualquer use “literalmente” para tudo, mas um jornalista, mesmo idiota, não poderia falar tanta asneira, com o perdão dos asnos, que não têm nada a ver com isso.


Mas, por falar em estupidez, voltemos ao meu pessimismo ou realismo com relação à humanidade: neste momento em que impera a intolerância seguida de violência, a ditadura do politicamente correto (que homem, além do Justin Bieber, não comeria a Vanessa Camargo grávida?), em que a economia mundial está em vias de explodir (ou implodir, sei lá) e, principalmente, neste momento em que o Mano Menezes ainda está no comando da seleção brasileira, é quando mais precisamos da inteligência dos seres humanos para salvar a humanidade, que está literalmente na corda bamba (piada - tá vendo como é ridículo esse “literalmente”? Imagina todas as pessoas do planeta debaixo de uma lona de um gigantesco circo, ao mesmo tempo equilibrando-se na corda que liga um mastro ao outro).

Pena que a inteligência esteja (não "literalmente") sendo engolida pela idiotice. Na história do desenvolvimento humano, quanto maior foi o uso da linguagem, maior foi o crescimento do homem. É um moto-contínuo: quanto mais o homem se desenvolve, mais desenvolve a linguagem, e quanto mais a linguagem se desenvolve, mais o homem evolui. As pessoas mais bem sucedidas são aquelas que mais e melhor sabem usar a linguagem. Mas hoje a língua está como os Pandas, em extinção. Cada vez mais simplificada (para que as pessoas não tenham o trabalho de pensar no que dizer), ela diz cada vez menos.

Pode alguém dizer que sempre foi assim, que a inteligência sempre foi rara, mas que o mundo sempre foi salvo pela ação das grandes inteligências, dos grandes cientistas, dos grandes líderes mundiais e, finalmente, dos grandes jornalistas em seu papel de esclarecer e formar, com sua visão crítica e independência, a opinião pública.

Infelizmente, no entanto, os grandes líderes mundiais hoje são mais raros que os Pandas (se é que os Pandas, de fato, algum dia existiram – desconfio que tenham sido inventados e que os que aparecem no Discovery sejam robôs de pelúcia), os cientistas dependem dos grandes líderes (em extinção), ou dos políticos, que tem mais o que fazer para ficarem se preocupando em liberar verbas para pesquisa. Restam os grandes jornalistas, que, ou estão em falta, ou com o rabo preso (financiados, não têm a necessária independência).  Já dei, acima, exemplo de como o jornalismo anda mal. Esse vídeo aí embaixo é feito por novas jornalistas, recém-formadas... Não precisa ir até o fim, ele não melhora. Mas ver um pouquinho é bom para ter noção do perigo que o jornalismo corre no futuro. 


Por falar em jornalismo, e para que você não se suicide depois de sair deste quase sempre otimista blógui, vou te dizer que há uma série na HBO (amanhã será o nono episódio), sobre jornalismo. The Newsrom fala sobre o dilema ético entre a necessidade de audiência e o dever de informar com independência o que deve ser informado para desenvolver a sociedade. Fala de trabalho em equipe. E fala de mais um monte de coisas subjacentes, com atores de primeiríssima, comandados pelos espetaculares Jeff Daniels e Sam Waterston. Com roteiro fantástico, aborda tudo o que está por trás de um telejornal, inclusive a produção e todos os percalços antes e depois de entrar no ar. É sensacional e, além de tudo, sempre emocionante.


Bem, juntando 3 jóias como “Ted”, “The Newsroom” e “Intocáveis”, divertidíssima, tocante e incorreta comédia francesa que está em cartaz nos cinemas, com grande sucesso popular, a gente acaba por resgatar a esperança de que haverá luz no fim do túnel, embora seja certo que no final da luz haverá um outro túnel, provavelmente mais longo. 

Finalizando, morreu a Hebe, o que pode ser grave: quem pode garantir que amanhã os aparelhos de TV no Brasil funcionem?

domingo, 9 de setembro de 2012

CARA OU COROA - CINEMA COM ALMA



A arte é a forma nova, é o inconsciente do artista. Creio que foi Glauber Rocha, o maior cineasta brasileiro de todos os tempos, ao menos por um tempo, que disse isso.  Ora, se a “forma nova” é, como o nome diz, nova, ela então é desconhecida e, portanto, inclassificável. Se vem do inconsciente do artista, como parece sugerir o gênio baiano, então a arte, além de inclassificável, tem caráter altamente subjetivo.

É por isso que as grandes obras, músicas, filmes, peças de teatro, poemas, nos tocam de maneira tão profunda, tão distinta e muitíssimas vezes, de modo incompreensível. Se um palestrante nos fala do sucesso que somos hoje, depois pede para nos lembrarmos da nossa mãe morta ao som de uma música sentimental com imagens de filhos felizes com mães sorridentes, é fácil demais chorarmos, o que não significa que o cara é um artista: está mais para oportunista; não fez nada mais do que manipular nossa memória emotiva, ligando o racional ao sentimental. 

Assim é com filmes ruins, mesmo que nos façam chorar ou rir. A grande arte é diferente: mexe com a gente de forma menos compreensível, mais poética, mais diletante, mais no nível submental (puxa, o Word não grifou esta palavra, o que significa que deve, de fato, existir – vou deixá-la aí). 

Walmor Chagas, o General
Penso isso a respeito da sensação que me transmitiu o filme “Cara ou Coroa”, do Ugo Giorgetti, que estreou neste final de semana nos cinemas. Estar naquela sala foi como rever um bom e velho amigo depois de muitos anos, num bar, sem pressa, ouvindo suas novas histórias, ou mesmo as velhas histórias contadas sob uma nova ótica, o que as transforma em novas histórias... Foi como encontrar um Panta num banco de jardim, e ficar ali, de bobeira, conversando ao sabor do vento fresco que traz o cheiro das acácias em flor. 

Porque tudo isso? Porque o filme é bom? Porque evoca lembranças? Porque diz respeito a um tempo que vivi? Porque, como disse o crítico da Folha, tem alma? Talvez. O filme parece evocar, como disse o Glauber, o inconsciente, a forma nova, o peito humano, que ainda resiste e pulsa sob essa nossa conturbada vida social, profissional, econômica e política. 

O filme trata das recordações de um tal Getúlio sobre o longínquo 1971, quando, jovem, morava com o tio (um taxista que odeia comunistas), não sabia o que fazer na vida e namorava a linda universitária Lilian, que por sua vez morava sozinha com o avô, um influente general reformado. O irmão de Getúlio é um diretor de teatro financiado pelos comunistas, vive na dureza, gasta o pouco que tem em jogos, está sendo abandonado pela mulher e sua peça caminha para o naufrágio. Aí o partido lhe pede para dar guarida por alguns dias para dois procurados pela ditadura. Os dois acabam sendo escondidos em um quartinho escuro dos jardins da casa do avô de Lilian, a namorada do protagonista, o General, sem que este saiba, é claro. 

O bom argumento poderia facilmente descambar para o filme engajado, para o cinema denúncia. Mas Giorgetti não é disso. Ele é um sentimental, um cara que gosta de conversar, um cara para quem nada importa mais do que as pessoas, suas crises, sua vida, seus acertos e erros, seus risos e choros; a ele importa mais as pessoas que o cinema. Seu cinema assiste, divertido, as pessoas. Assim é no genial Festa (1989), que se passa no andar de baixo de onde se realiza uma festa numa mansão, onde os personagens conversam enquanto aguardam sua hora para subir e animar a festa. Assim é em “Sábado” (1995), em que uma propaganda é filmada num antigo prédio do centro de São Paulo, antigamente de alto padrão, mas atualmente é quase uma favela vertical. Conversa é o que não falta no delicado e sensível Boleiros (1998), que teve uma boa continuação em 2004. 

Em “Cara ou Coroa” também é assim: o filme vai se passando, despretensiosamente, de conversa em conversa. E conversas ótimas, porque são reais, sem textos “inteligentes”, e porque os atores são ótimos, passeiam por seus papéis e nos inserem na conversa: Otávio Augusto (o delicioso taxista), Walmor Chagas (em pleno domínio do seu general reformado), Emílio de Mello (muito, muito bom como o Diretor de teatro fracassado – ih!) e Juliana Ianina (uau, supreendente, baita atriz, altamente crível como a estudante, neta do General). 

Jose Geraldo Rodrigues (Getúlio) não está no mesmo nível, o que poderia ser lamentável, já que é o protagonista, mas como o filme trata de como ele via as coisas, os que estavam à sua volta aparecem muito mais e ele acaba não comprometendo. Talvez ainda seja implicância minha, talvez o próprio desenho do personagem, um jovem perdido às voltas com gente bem resolvida, exigisse aquilo... Ainda assim, poderia ser um ator melhor. Sua voz atual, entretanto, a que narra o filme, é ótima (Paulo Betti). De qualquer forma, a eventual infelicidade escolha do o ator parece não ter tido importância, diante da grandeza simples e direta do filme.   

Além do humor, alma e sensibilidade, comuns a seus filmes, Giorgetti acrescentou uma visão diferente e mais ampla daquela época, mostrando que nem a ignorância, nem a humanidade, eram exclusividades de uma ou outra parte. Mostrou o lado do exército que conheci nos livros do Elio Gaspari sobre a ditadura.

Além disso, duas coisas novas no cinema de Giorgetti: 

1. Uma produção primorosa, com ótimas câmeras, tratamento visual e uma excelente reconstituição de época;

2. Suspense: as conversas despretensiosas aos poucos vão nos enredando aos poucos até estarmos ali, quase sem respirar, até a cena final, com a incrível Julia dando um show; show contido, mas show... É um final do tipo que, se fosse outro, seria falso.

Giorgetti tem isso, esse compromisso com a verdade, aquela verdade das pessoas comuns que vivem suas vidas cheias de problemas, de frustrações, de realizações e, sobretudo, cheias de humanidade, o que faz com que a gente saia de sessão com mais otimismo para viver o que restar de nossas vidas, com a sensação de que, afinal, viver é melhor do que tudo, do que qualquer frustração, do que qualquer plano não realizado, do que qualquer desamor. 

Ao final da sessão, algo a mais me convenceu a escrever sobre ele: a incomum reação da minha filha que, como ainda adolescente, não é nenhum prodígio em termos de animação. Ainda mais ela, que estuda cinema e acaba sendo mais exigente. Pois ao final do filme, me surpreendi com seus olhos arregalados me olhando: bateu sua mão direita na minha, e deu um "Yeah, adorei!"

Blog Widget by LinkWithin