domingo, 9 de setembro de 2012

CARA OU COROA - CINEMA COM ALMA



A arte é a forma nova, é o inconsciente do artista. Creio que foi Glauber Rocha, o maior cineasta brasileiro de todos os tempos, ao menos por um tempo, que disse isso.  Ora, se a “forma nova” é, como o nome diz, nova, ela então é desconhecida e, portanto, inclassificável. Se vem do inconsciente do artista, como parece sugerir o gênio baiano, então a arte, além de inclassificável, tem caráter altamente subjetivo.

É por isso que as grandes obras, músicas, filmes, peças de teatro, poemas, nos tocam de maneira tão profunda, tão distinta e muitíssimas vezes, de modo incompreensível. Se um palestrante nos fala do sucesso que somos hoje, depois pede para nos lembrarmos da nossa mãe morta ao som de uma música sentimental com imagens de filhos felizes com mães sorridentes, é fácil demais chorarmos, o que não significa que o cara é um artista: está mais para oportunista; não fez nada mais do que manipular nossa memória emotiva, ligando o racional ao sentimental. 

Assim é com filmes ruins, mesmo que nos façam chorar ou rir. A grande arte é diferente: mexe com a gente de forma menos compreensível, mais poética, mais diletante, mais no nível submental (puxa, o Word não grifou esta palavra, o que significa que deve, de fato, existir – vou deixá-la aí). 

Walmor Chagas, o General
Penso isso a respeito da sensação que me transmitiu o filme “Cara ou Coroa”, do Ugo Giorgetti, que estreou neste final de semana nos cinemas. Estar naquela sala foi como rever um bom e velho amigo depois de muitos anos, num bar, sem pressa, ouvindo suas novas histórias, ou mesmo as velhas histórias contadas sob uma nova ótica, o que as transforma em novas histórias... Foi como encontrar um Panta num banco de jardim, e ficar ali, de bobeira, conversando ao sabor do vento fresco que traz o cheiro das acácias em flor. 

Porque tudo isso? Porque o filme é bom? Porque evoca lembranças? Porque diz respeito a um tempo que vivi? Porque, como disse o crítico da Folha, tem alma? Talvez. O filme parece evocar, como disse o Glauber, o inconsciente, a forma nova, o peito humano, que ainda resiste e pulsa sob essa nossa conturbada vida social, profissional, econômica e política. 

O filme trata das recordações de um tal Getúlio sobre o longínquo 1971, quando, jovem, morava com o tio (um taxista que odeia comunistas), não sabia o que fazer na vida e namorava a linda universitária Lilian, que por sua vez morava sozinha com o avô, um influente general reformado. O irmão de Getúlio é um diretor de teatro financiado pelos comunistas, vive na dureza, gasta o pouco que tem em jogos, está sendo abandonado pela mulher e sua peça caminha para o naufrágio. Aí o partido lhe pede para dar guarida por alguns dias para dois procurados pela ditadura. Os dois acabam sendo escondidos em um quartinho escuro dos jardins da casa do avô de Lilian, a namorada do protagonista, o General, sem que este saiba, é claro. 

O bom argumento poderia facilmente descambar para o filme engajado, para o cinema denúncia. Mas Giorgetti não é disso. Ele é um sentimental, um cara que gosta de conversar, um cara para quem nada importa mais do que as pessoas, suas crises, sua vida, seus acertos e erros, seus risos e choros; a ele importa mais as pessoas que o cinema. Seu cinema assiste, divertido, as pessoas. Assim é no genial Festa (1989), que se passa no andar de baixo de onde se realiza uma festa numa mansão, onde os personagens conversam enquanto aguardam sua hora para subir e animar a festa. Assim é em “Sábado” (1995), em que uma propaganda é filmada num antigo prédio do centro de São Paulo, antigamente de alto padrão, mas atualmente é quase uma favela vertical. Conversa é o que não falta no delicado e sensível Boleiros (1998), que teve uma boa continuação em 2004. 

Em “Cara ou Coroa” também é assim: o filme vai se passando, despretensiosamente, de conversa em conversa. E conversas ótimas, porque são reais, sem textos “inteligentes”, e porque os atores são ótimos, passeiam por seus papéis e nos inserem na conversa: Otávio Augusto (o delicioso taxista), Walmor Chagas (em pleno domínio do seu general reformado), Emílio de Mello (muito, muito bom como o Diretor de teatro fracassado – ih!) e Juliana Ianina (uau, supreendente, baita atriz, altamente crível como a estudante, neta do General). 

Jose Geraldo Rodrigues (Getúlio) não está no mesmo nível, o que poderia ser lamentável, já que é o protagonista, mas como o filme trata de como ele via as coisas, os que estavam à sua volta aparecem muito mais e ele acaba não comprometendo. Talvez ainda seja implicância minha, talvez o próprio desenho do personagem, um jovem perdido às voltas com gente bem resolvida, exigisse aquilo... Ainda assim, poderia ser um ator melhor. Sua voz atual, entretanto, a que narra o filme, é ótima (Paulo Betti). De qualquer forma, a eventual infelicidade escolha do o ator parece não ter tido importância, diante da grandeza simples e direta do filme.   

Além do humor, alma e sensibilidade, comuns a seus filmes, Giorgetti acrescentou uma visão diferente e mais ampla daquela época, mostrando que nem a ignorância, nem a humanidade, eram exclusividades de uma ou outra parte. Mostrou o lado do exército que conheci nos livros do Elio Gaspari sobre a ditadura.

Além disso, duas coisas novas no cinema de Giorgetti: 

1. Uma produção primorosa, com ótimas câmeras, tratamento visual e uma excelente reconstituição de época;

2. Suspense: as conversas despretensiosas aos poucos vão nos enredando aos poucos até estarmos ali, quase sem respirar, até a cena final, com a incrível Julia dando um show; show contido, mas show... É um final do tipo que, se fosse outro, seria falso.

Giorgetti tem isso, esse compromisso com a verdade, aquela verdade das pessoas comuns que vivem suas vidas cheias de problemas, de frustrações, de realizações e, sobretudo, cheias de humanidade, o que faz com que a gente saia de sessão com mais otimismo para viver o que restar de nossas vidas, com a sensação de que, afinal, viver é melhor do que tudo, do que qualquer frustração, do que qualquer plano não realizado, do que qualquer desamor. 

Ao final da sessão, algo a mais me convenceu a escrever sobre ele: a incomum reação da minha filha que, como ainda adolescente, não é nenhum prodígio em termos de animação. Ainda mais ela, que estuda cinema e acaba sendo mais exigente. Pois ao final do filme, me surpreendi com seus olhos arregalados me olhando: bateu sua mão direita na minha, e deu um "Yeah, adorei!"

Um comentário:

Anônimo disse...

Tio Móça,
seria um banco de jardim em Cerqueira César?
abraços
Panta

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