Hoje um amigo, vítima de inclassificáveis intenções ou de
outra bobagem qualquer, postou a frase, atribuída a Augusto Cury, “a crise não
afasta os amigos, apenas os selecionam”. Discordo: o correto seria “...apenas os
seleciona”, assim, no singular, sem o “m” (a crise seleciona os amigos). O erro
não foi do meu amigo, foi de quem montou o banner, ou terá sido do autor? Discordo
da gramática, mas não do conteúdo. Na verdade, acho que no facebook, mesmo os que tem 800 amigos, estão à caça, no bom sentido, de amigos, meia dúzia que seja, na melhor das hipóteses, do tipo que sobrevive às crises. Como diz uma amiga de Bauru, dá trabalho demais fazer amizade, amigos já bastam os poucos que tenho.
Outro amigo, o mais paulista dos cariocas que conheço, também
postou hoje: “por mais que você seja legal, gente boa, solidário, amigo e o
escambau, pode ficar certo de que, em algum momento, você vai ser julgado mesmo
é pela sua falha. Aquela única, banal, que você cometeu. E que talvez sequer
seja uma falha”. Essa ressalva final é a cerejinha de crueldade. Se já é
estúpido marcarmos alguém por ter falhado, que dirá quando sequer houve falha.
Mais uma, esta mais otimista: um terceiro amigo, sorridente, pequeno
e circular, finalmente, depois de anos de em abdução em uma trama kafkiana, está de volta, “livre,
leve e solto”. “Leve” é maneira de dizer. Para este, felizmente, tudo parece voltar
ao normal... Ih, desculpe, mas me lembrei de “Notícia de Jornal”, do Chico (não é um saco gente que se faz de
íntimo do artista e chama o Chico Buarque de Chico?)
Tentou contra a existência
Num humilde barracão
Joana de tal, por causa de um tal João
Num humilde barracão
Joana de tal, por causa de um tal João
Depois de medicada
Retirou-se pro seu lar
Aí a notícia carece de exatidão
Retirou-se pro seu lar
Aí a notícia carece de exatidão
O lar não mais existe
Ninguém volta ao que acabou...
Ninguém volta ao que acabou...
Para quem se interessa pelo tema dos exemplos acima e não sabe
de detalhes destes meus amigos, eu poderia aconselhar “Desejo e Reparação”, aquele
filme com a sempre deslumbrante Keira (serei íntimo dela ou simplesmente não sei
escrever seu sobrenome?), mas não aconselho, porque o filme é, basicamente, um
pé-no-saco; nem a Keira o salva.
Bem melhor, zilhões de vezes, é o imperdível filme dinamarquês
em cartaz, “A caça”, que também fala de acusação injustiça. Numa cidadezinha
cuja principal diversão é a caça, um cara que trabalha numa creche é bizarra e
injustamente acusado de molestar uma menina, justamente a filha de seu melhor
amigo. Seu filho adolescente estava para se mudar para sua casa, ele acabava de
arrumar uma namorada muito interessante e sua vida parecia que ia voltando aos
eixos após a separação, mas a neurose da diretora e dos pais das crianças vira sua
vida, que começa a escorrer ralo adentro. Os mecanismos pelos quais a diretora
e os pais se convencem da culpa do professor são homenagens exemplos claros de burrice,
de visão estreita e principalmente de como o animus puniendi pode guiar as ações
e desconsiderar toda a vida pregressa do acusado e acabar com qualquer racionalidade
e inteligência. Não adianta nem a criança falar “ele não fez nada”. O rótulo já
foi impresso e colado.
Sabiamente, a polícia não é mostrada em nenhum momento, a não
ser quando dois policiais saem com ele, preso, enquanto o filho está chegando. Por
que é sábio não mostrar a polícia, nem nada da investigação policial, tampouco
a defesa do professor? Porque não é isso o que interessa ao filme. O que
importa é o julgamento que a sociedade faz, por mais absurdo que seja. É aí que
a crise seleciona os amigos.
Atuações fantásticas e um jeito de filmar e de contar a
história que não se apoia em soluções mágicas e descobertas de última hora, nos
colocam dentro do filme, não na frente dele, como normalmente acontece num
típico filme hollywoodiano (em tempo: adoro filmes tipicamente hollywoodianos).
A Caça, ao contrário de morder e assoprar, morde e morde mais forte, queima, dá
porrada, provoca. Muita gente na plateia não se aguenta e quer participar, dar sugestão,
mostrar indignação. Você, que não gosta de barulho no cinema, tente abstrair ou
vá a uma sessão num dia e horário de poucas pessoas.
Eu fiquei mais envolvido em tentar adivinhar e torcer por
uma quase impossível solução para o calvário do personagem, para sua paixão em
que só faltou mesmo a cruz. Embora provoque emoções, o filme não abre mão da
beleza, mesmo em algumas cenas quase catárticas, como uma das últimas, justamente
da missa de Natal, época em que se relembra a paixão de Cristo, numa associação
comovente.
Mas nem tudo são flores na vida de Joseph Klimber. Haverá
mais uma violência a vencer: o julgamento dos medíocres e dos boçais do
dia-a-dia. Por mais que alguém tenha
dado um milhão de bons exemplos, a maioria das pessoas, de vida medíocre e raciocínio
simplista, apenas espera, torce até, que esse alguém cometa uma falha, única que
seja.
Acho que funciona assim o inconsciente dessa gente: eu,
simples e banal, não consigo me livrar de minha mediocridade e isso me angustia
diariamente. Só me alivio quando alguém melhor do que eu se dá mal. “Olha só,
ele é pior que eu, que delícia! Ele não podia ser aquela maravilha toda! Ufa,
agora já posso dormir em paz”. É mais ou
menos como um pontepretano, que nunca soube o que é ganhar um título, vibrar
com o rebaixamento do Guarani, o arqui-rival, por isso eu sei como funciona.
Talvez seja assim com todos: temos uma natureza cruel e somos,
em maior ou menor escala, medíocres, embora afirmemos odiar a mediocridade. Por
isso, nossos bolsos vivem cheios de pedras, que pesam e atrasam nosso caminhar,
mas o prazer que dá quando temos alguém para apedrejar...
Quem toma consciência disso pode mudar, ou ao menos se policiar
e fugir da mediocridade e viver uma vida mais plena e mais rica. Só que assim pode
se tornar alvo. E, embora talvez eu desaponte meu circular amigo, desconfio que
nunca faltarão oportunidades aos medíocres de nos jogar pedras, ou de nos dar
um tiro de alerta nos dizendo que ainda somos a caça.
Fazer o quê, amigos? Levanta e sacode a poeira. E bora co’essa
prá cruzeta que tá mui da tucandêra!