domingo, 21 de abril de 2013

A CAÇA AOS AMIGOS




Hoje um amigo, vítima de inclassificáveis intenções ou de outra bobagem qualquer, postou a frase, atribuída a Augusto Cury, “a crise não afasta os amigos, apenas os selecionam”. Discordo: o correto seria “...apenas os seleciona”, assim, no singular, sem o “m” (a crise seleciona os amigos). O erro não foi do meu amigo, foi de quem montou o banner, ou terá sido do autor? Discordo da gramática, mas não do conteúdo. Na verdade, acho que no facebook, mesmo os que tem 800 amigos, estão à caça, no bom sentido, de amigos, meia dúzia que seja, na melhor das hipóteses, do tipo que sobrevive às crises. Como diz uma amiga de Bauru, dá trabalho demais fazer amizade, amigos já bastam os poucos que tenho. 

Outro amigo, o mais paulista dos cariocas que conheço, também postou hoje: “por mais que você seja legal, gente boa, solidário, amigo e o escambau, pode ficar certo de que, em algum momento, você vai ser julgado mesmo é pela sua falha. Aquela única, banal, que você cometeu. E que talvez sequer seja uma falha”. Essa ressalva final é a cerejinha de crueldade. Se já é estúpido marcarmos alguém por ter falhado, que dirá quando sequer houve falha. 

Mais uma, esta mais otimista: um terceiro amigo, sorridente, pequeno e circular, finalmente, depois de anos de em abdução em uma trama kafkiana, está de volta, “livre, leve e solto”. “Leve” é maneira de dizer. Para este, felizmente, tudo parece voltar ao normal... Ih, desculpe, mas me lembrei de “Notícia de Jornal”, do Chico (não é um saco gente que se faz de íntimo do artista e chama o Chico Buarque de Chico?)
Tentou contra a existência
Num humilde barracão
Joana de tal, por causa de um tal João
Depois de medicada
Retirou-se pro seu lar
Aí a notícia carece de exatidão
O lar não mais existe
Ninguém volta ao que acabou...
Para quem se interessa pelo tema dos exemplos acima e não sabe de detalhes destes meus amigos, eu poderia aconselhar “Desejo e Reparação”, aquele filme com a sempre deslumbrante Keira (serei íntimo dela ou simplesmente não sei escrever seu sobrenome?), mas não aconselho, porque o filme é, basicamente, um pé-no-saco; nem a Keira o salva.
Bem melhor, zilhões de vezes, é o imperdível filme dinamarquês em cartaz, “A caça”, que também fala de acusação injustiça. Numa cidadezinha cuja principal diversão é a caça, um cara que trabalha numa creche é bizarra e injustamente acusado de molestar uma menina, justamente a filha de seu melhor amigo. Seu filho adolescente estava para se mudar para sua casa, ele acabava de arrumar uma namorada muito interessante e sua vida parecia que ia voltando aos eixos após a separação, mas a neurose da diretora e dos pais das crianças vira sua vida, que começa a escorrer ralo adentro. Os mecanismos pelos quais a diretora e os pais se convencem da culpa do professor são homenagens exemplos claros de burrice, de visão estreita e principalmente de como o animus puniendi pode guiar as ações e desconsiderar toda a vida pregressa do acusado e acabar com qualquer racionalidade e inteligência. Não adianta nem a criança falar “ele não fez nada”. O rótulo já foi impresso e colado.

Sabiamente, a polícia não é mostrada em nenhum momento, a não ser quando dois policiais saem com ele, preso, enquanto o filho está chegando. Por que é sábio não mostrar a polícia, nem nada da investigação policial, tampouco a defesa do professor? Porque não é isso o que interessa ao filme. O que importa é o julgamento que a sociedade faz, por mais absurdo que seja. É aí que a crise seleciona os amigos.  

Atuações fantásticas e um jeito de filmar e de contar a história que não se apoia em soluções mágicas e descobertas de última hora, nos colocam dentro do filme, não na frente dele, como normalmente acontece num típico filme hollywoodiano (em tempo: adoro filmes tipicamente hollywoodianos). A Caça, ao contrário de morder e assoprar, morde e morde mais forte, queima, dá porrada, provoca. Muita gente na plateia não se aguenta e quer participar, dar sugestão, mostrar indignação. Você, que não gosta de barulho no cinema, tente abstrair ou vá a uma sessão num dia e horário de poucas pessoas.

Eu fiquei mais envolvido em tentar adivinhar e torcer por uma quase impossível solução para o calvário do personagem, para sua paixão em que só faltou mesmo a cruz. Embora provoque emoções, o filme não abre mão da beleza, mesmo em algumas cenas quase catárticas, como uma das últimas, justamente da missa de Natal, época em que se relembra a paixão de Cristo, numa associação comovente.

Aqui não estou mais falando do filme, nem de meninas: o problema é que nenhuma menina é mais a mesma depois do estupro. Mas isso é o que menos importa, porque meus amigos podem, e devem, sair até melhor disso tudo, porque, como postou hoje um deles, ao menos poderão selecionar melhor suas companhias.

Mas nem tudo são flores na vida de Joseph Klimber. Haverá mais uma violência a vencer: o julgamento dos medíocres e dos boçais do dia-a-dia.  Por mais que alguém tenha dado um milhão de bons exemplos, a maioria das pessoas, de vida medíocre e raciocínio simplista, apenas espera, torce até, que esse alguém cometa uma falha, única que seja.

Acho que funciona assim o inconsciente dessa gente: eu, simples e banal, não consigo me livrar de minha mediocridade e isso me angustia diariamente. Só me alivio quando alguém melhor do que eu se dá mal. “Olha só, ele é pior que eu, que delícia! Ele não podia ser aquela maravilha toda! Ufa, agora já posso dormir em paz”.  É mais ou menos como um pontepretano, que nunca soube o que é ganhar um título, vibrar com o rebaixamento do Guarani, o arqui-rival, por isso eu sei como funciona.

Talvez seja assim com todos: temos uma natureza cruel e somos, em maior ou menor escala, medíocres, embora afirmemos odiar a mediocridade. Por isso, nossos bolsos vivem cheios de pedras, que pesam e atrasam nosso caminhar, mas o prazer que dá quando temos alguém para apedrejar...
Quem toma consciência disso pode mudar, ou ao menos se policiar e fugir da mediocridade e viver uma vida mais plena e mais rica. Só que assim pode se tornar alvo. E, embora talvez eu desaponte meu circular amigo, desconfio que nunca faltarão oportunidades aos medíocres de nos jogar pedras, ou de nos dar um tiro de alerta nos dizendo que ainda somos a caça.

Fazer o quê, amigos? Levanta e sacode a poeira. E bora co’essa prá cruzeta que tá mui da tucandêra!
Blog Widget by LinkWithin