Música é um
treco abstrato demais! É uma arte que a gente não vê, como um quadro ou um
balé. A danada entra na gente pelos ouvidos. E é por isso mesmo, por ser tão abstrata,
é que ela dá tanto prazer. A música desafia a mente: ao tentar decifrá-la para prever
seus próximos acordes, estimulamos nossa fantasia e emoção – daí o prazer que a
música dá. E isso também vale para o cinema. Apesar de não ser tão abstrato
quanto a música, um bom filme também sabe deixar margem para abstração e abre espaços
para a fantasia e emoção.
Assim como podemos
ouvir uma música que adoramos umas mil vezes, também vemos alguns filmes muitas
e muitas vezes... Como? Você não vê filme repetido porque já sabe o que
acontece? Larga disso, rapá! Saber o que acontece num filme é o de menos. Um filme
não é feito só para contar que o Nicolas Cage queria achar um tesouro, foi lá,
achou e, de quebra, pegou a Diane Kruger. O filme, pelo menos os bons, entram
dentro da gente, desafiam nossa mente e emocionam. Claro, nem todo filme é
assim. A maioria dá pra ver uma vez só e olha lá. Mas quando um filme é bom
mesmo...
O problema é
que fazer um grande filme não é pra qualquer um. Fazer com que a plateia entre
no filme e jogue o seu jogo exige domínio da linguagem do cinema para dar a
quem vê o máximo de emoção, suspense e surpresa – enfim: diversão.
Você já viu Curtindo a Vida Adoidado, certo? De cada
10 pessoas, umas 7 já viram o filme e pelo menos 4 o viram várias vezes, mesmo sabendo
que o Ferris Buller vai se fingir de doente para matar a aula, sair com os
amigos e voltar pra casa sem que os pais descubram nada. Ainda assim, esse
filme conseguiu algumas proezas: ser popular, não envelhecer e ter fãs de todas
as idades – gente, esse filme passa na sessão da tarde há mais de 30 anos! Por
quê? Simples: é uma obra prima! Todo o filme é planejado, filmado e montado
usando os recursos para criar suspense, alegria, beleza, riso e emoções.
Mas, como
aqui no Cobra Parada a gente mata a
cobra e mostra o pau, vamos logo aos tais recursos que estão por trás de Curtindo a Vida Adoidado. Quem não
quiser se chatear com linguagem cinematográfica, tchau! Aos que ficam, boa
viagem. Em tempo: não vou falar das qualidades mais óbvias, como a atuação
genial do protagonista ou a magnífica cena da parada, ok? Só destaco algumas
cenas que são exemplo do domínio do diretor e roteirista John Hughes sobre os
recursos e de sua criatividade para encontrar sempre a melhor forma de montar
uma cena para que ela dê o maior prazer possível à plateia.
§ É um filme musical!Não, fica frio, aqui “musical” não é gênero. Sabe quando um filme é poético e não significa que o filme é em versos? A música é sempre importante nos filmes de John Hughes, mas neste ela é mais ativa, fresca e vigorosa. E nem é que todas sejam maravilhosas, mas é incrível é como ele conseguiu juntar músicas de várias décadas e gêneros, mais dos 80’s, claro, e ainda assim obter um todo harmônico.
§ Não é filme de adolescentes, é sobre adolescentes. Seus dilemas não são preguiçosos, tipo ‘com
quem vou ao baile?’. Os dilemas ali são os que carregamos por toda vida. O
filme ensina que, para falar de algo profundo, não é preciso ser chato.
§ Texto primoroso. Não sobram nem faltam palavras. Tudo que é dito se refere aos
dilemas de que trata o filme ou serve à trama. Há cenas em que nada é dito,
porque não precisa, como a da bolsa de valores, onde os gestos ironizam o
símbolo do capitalismo selvagem e questionam seu sentido, ou a do museu, que...
Depois falo dela.
§ Plasticamente belíssimo. Cada imagem, cada corte, cada tomada de câmera cria
beleza visual ou ilustra o que os personagens estão vivendo.
Melhor parar de
falar sobre isso, porque as imagens do filme valem muito mais do que as quarenta
e cinco palavras deste parágrafo. Veja essa tomada, aí do lado, da cena do museu;
§ Montagem e roteiro:
1. Ferris deitado, péssima
aparência. Seus pais o mandam ficar na cama, mas ele diz que tem prova e quer se
dedicar aos estudos para “poder desfrutar de uma vida de trabalho”. Corte
para os pés de uma adolescente, um deles batendo contra o chão, gestual de ‘você não me engana, seu safado!’, depois
para as mãos na cintura, dedos nervosos. Hughes usa 4 segundos para nos contar,
de forma criativa, que Ferris está mentindo, que sempre faz isso e que sua irmã
sabe. Dizer muito, com muito pouco, e deixar a interpretação pra gente é dominar
a linguagem.
2. Ferris desliga o
telefone, volta ao assunto que importa, seu amigo, e diz à câmera: “aposto que neste momento o Cameron está no
carro, decidindo se vem ou não”. Corta, close em Cameron, no carro, decidindo
se vai ou não: “ele vai ficar me ligando,
vai ligar até eu ir!”. Sem ser explicadinho, sem fala do tipo “somos amigos
há 10 anos e eu te conheço demais...”. São 15 segundos de falas curtas e
cortes, e sabemos o quanto são amigos, o quanto eles sabem como o outro pensa e
faz e, de quebra, trás a plateia para dentro da relação.
3. Rooney, o
inspetor, foi a um bar para flagrar Ferris e provar que ele não está doente,
mas não o encontra. Na TV, em segundo plano, um jogo de beisebol. Rooney abaixa
a cabeça para limpar os olhos enquanto, na TV, a câmera mostra Ferris pegando
uma bola que foi rebatida e caiu na torcida. Quando Rooney levanta a cabeça, a
TV volta ao jogo. E pronto, a cena passa para os amigos no jogo e acaba, filme
que segue... O que esta cena tem de mais?... Deixa pra depois.
4. Rooney recebe
telefonema do pai de Sloane (namorada de Ferris) contando que sua avó morreu e
que ela precisa sair da aula. Rooney está certo de que a voz ao telefone é de Ferris
passando-se pelo pai dela. Até então, nos telefonemas que já tinham acontecido,
eram mostrados os dois lados, mas agora a cena só mostra Rooney, que se diverte
passando um tremendo esculacho em Ferris. Enquanto isso, a secretária do
inspetor vem a Rooney e diz “telefone
para o senhor na outra sala, é o Ferris”. Rooney está exculachando um pai
de aluno? Música clássica de terror, close em Rooney, olhos arregalados, um momento
delicioso, exemplo do uso criativo de clichê. Só depois a câmera mostra o outro
lado e vemos que não era o pai da Sloane, mas Cameron se passando por ele. Veja
bem: se soubéssemos, antes, que era Cameron ao telefone, não haveria
emoção – todo o prazer da cena foi pensarmos que era realmente o pai da aluna e
que o inspetor tinha se ferrado feio. Esconder e soltar no momento certo as informações
determina a reação da plateia. É a essência da arte do cinema.
5. Cenas no fundo. Mais um exemplo de não dar tudo mastigado e deixar a plateia ver as coisas por si. Enquanto uma cena está acontecendo, algo pode estar acontecendo lá atrás. Na cena em que deixam a Ferrari no estacionamento, Cameron está preocupadíssimo com o carro do pai, não gostou do cara que recebeu o carro no estacionamento. Ferris o acalma. Saem e sobem a rua. Veja ao lado: lá atrás, sem que seja dado nenhum destaque, aparece o rapaz saindo com a Ferrari . Outra: na delegacia, a irmã de Ferris discute com um drogadito, Charlie Cheen (sua estreia no cinema), cada um de um lado do sofá, bem separados. Depois, em outra tomada, a mãe está na sala do delegado. Quando ela se levanta, pelo vidro da sala podemos ver, bem la no fundo, a filha aos beijos com o tal. O filme confia na observação da plateia, não precisa conduzi-la pela mão. Não precisa enquadrar tudo o que é importante. Deixa a gente descobrir sozinho! E quando a gente vê aquilo ao fundo, nos sentimos bem, tipo "peguei", "eu vi aquilo"
6. Ferris quer pegar
a Ferrari do pai de Cameron. “Ferris, meu
pai ama este carro mais que a própria vida”. Ferris responde “alguém com prioridades tão erradas não
merece um carro de luxo”. E pega o carro. Um luxo de texto! Não precisa
explicar mais nada, aqui se falou de materialismo, exibicionismo, falta de amor
do pai e de mais um tanto de coisa...
7. Ferris nos fala sobre
o que pensa da vida. Enquanto isso, mexe com um troféu, um barbante e num
aparelho de som cheio de botões, sem contar o que faz. Mais de meia hora de
filme depois, enquanto Ferris está se divertindo no centro de Chicago, sua mãe
volta para ver se ele está bem. Sobe à escada, e vai em direção ao quarto do
filho que, sabemos, não está lá. A câmera subjetiva (o olhar da mãe) se aproxima
devagar e ficamos em suspense. Quando ela abre a porta, o vê coberto, virando-se
na cama, roncando. Satisfeita, fecha a porta e sai, nós ficamos aliviados e nos
perguntando quem estava no quarto. Só que a mãe se lembra que Rooney a avisara
que Ferris a enganava e faltava às aulas. Ela resolve voltar, para conferir. Só
que desta vez a cena é mostrada não mais pelos seus olhos, mas por dentro do
quarto, e vemos, os detalhes: o barbante ligando a porta a um boneco coberto na
cama, o troféu servindo de contrapeso e o aparelho de som acionado e emitindo o
ronco. Aí vemos que o cara é um gênio! Mas veja: em qualquer filme comum,
saberíamos o que Ferris estava fazendo com o barbante e o troféu – e não
haveria suspense, não teríamos nos perguntado quem estaria no quarto e mal acreditaríamos
que aquela armação pudesse funcionar. Domínio da linguagem, do tempo e do
roteiro para gerar suspense e dar emoção à plateia.
8. A cena do
museu!!! Sem uma única fala, começa com uma escultura em primeiro plano,
quadros ao fundo, pessoas observando. Aí surge uma professora dando a mão a uma
criança, que puxa outra, e depois muitas outras puxando a de trás pela mão.
Elas cruzam o plano da cena, até que aparecem, de mão dadas com elas, Ferris,
Sloane e Cameron. Tomadas com contemplação, outras com ironia, todas belíssimas
e com música emocional e densa. Destaque para Cameron impactado pelo quadro de Georges
Seurat, em pontilhismo. Intercalam-se tomadas de seu rosto e da menina do
quadro, cada vez com mais aproximação. Cena genial, poética, um respiro no meio
daquele ritmo todo em que o filme estava.
9. Ah, sabe o item
3, que não diz nada de incrível na cena do beisebol? Pois é... No fim do filme,
Ferris, depois de escapar de mil situações em que quase foi pego, chega ao
quarto e se deita, no momento em que os pais estão chegando ao quarto. Só que,
quando os pais estão abrindo a porta, o aparelho é acionado e começa o som de ronco.
Não há tempo para levantar e desligar o aparelho. De nada valeu ele ter
escapado de todos os perigos antes. Envolvidos e torcendo por ele, pensamos “ih, fudeu!”. Quando ele se ilumina com
uma ideia, mete a mão no bolso, tira a bola de beiseball, faz mira e a acerta
no botão on/off do aparelho, vibramos, “caralho!”.
Ele se cobre e os pais entram. Veja bem: em qualquer filme, a bola que ele
pegou no estádio seria valorizada, ele diria algo como “vou guardar, posso
precisar dela”. Não, mas o vemos colocando a bola no bolso e ela desaparece do
filme, mas não da nossa memória. O resgate da bola faz a gente vibrar, infla
nosso pulmão, é um carinho na alma.
Curtindo a Vida Adoidado não é popular por contar uma
história legal. É porque é cinema de primeira. E não é o caso de memória
afetiva, não, porque não vi o filme na época. Não fui destes que o acompanhou sessões
da tarde afora. Eu era um intelectualoide que desprezava entretenimento, ainda
mais ‘juvenil’.
Ao corajoso e persistente leitor que chegou até aqui
e que quer a receita da felicidade e da realização pessoal, sugiro: reveja o
filme. Ele vai te ajudar muito mais do que qualquer coach charlatão, desses que
brotam feito mato por aí. Enfim, sabe
a ilha deserta para onde você só pode levar 10 filmes? Na minha mala, tem Curtindo a Vida Adoidado e mais nove.
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