sábado, 6 de julho de 2013

ROUND MIDNIGHT

Por volta da meia-noite, vindo do teatro, onde assisti uma belíssima visão dos cortiços por um grupo mineiro com uma atriz magnífica, e, na sequência, alimentado por um inebriante crepe mexicano, com direito a duas cocas para aplacar a pimenta, tendo ainda uns vinte e poucos quilômetros pela frente, ligo o rádio para afastar o sono que a noite e o estômago despejavam na minha cabeça.
Mais que músicas ou notícias, nessas horas prefiro ouvir entrevistas. Gente conversando no rádio me desperta. Acho uma entrevista. Ela, boa voz, entrevista um músico baiano de afro-MPB. “Afro-MPB, tu vê!”, costumava dizer o Humba, um amigo distante ao se dar com denominações bizarras. O cantor/compositor falava sobre seu disco “Manufaturas”, guarde este nome.
“Essa musicalidade afro lá em Salvador já vem desde criança, na vitamina”. Pronto, estou desperto.
Com um leve, quase imperceptível, toque de cinismo (ou seria ironia?) na voz, o que pode ser coisa da minha cabeça, ela faz aquela típica entrevista para apresentar e promover novas vozes, gente que “canta na noite”.  Estranha a expressão “canta na noite”. Será um eufemismo para “canta no fundo do barzinho”? E essa, então: “barzinho”? O que será um “barzinho”? Talvez seja um daqueles lugares sem cara nem estilo, nem luz, onde casaizinhos vão tomar chope com fritas, em que o cara só percebe que tem alguém lá no fundo cantando MPB quando a menina que ele quer comer diz “essa eu conheço, é do Djavan!” E cantarola, voltada para o músico, com os olhos semicerrados “você deságua em mim e eu oceano”. “Não é linda”, pergunta ela, meio que testando. “Ah, é... linda... E aí, vamos pedir a conta, dar uma volta?” “Mas aqui tá tão bom”. Sem chance, ele não vai comer.
Mas signifique o que significar a expressão “canta na noite”, o fato é que eu ouvia, cada vez mais atento, aquela entrevista “do bem”, com perguntas tipo “com que músicos você toca”, que trazem resposta do tipo “com fulano; ele é muito competente,  a gente se complementa, a gente tem uma verdadeira simbiose musical.”
¾     E como foi a gravação?
¾     Foi todo um processo!
Ah, bom, está explicado. “Todo um processo” não é de matar? Depois de alguns segundos de silêncio, ela, disfarçando o incômodo:
¾     Sim, mas e aí, como foi todo esse processo? (ela é engraçada demais, intencionalmente ou não)
¾     Eu dei bastante liberdade para os músicos. Eles puderam imprimir sua individualidade musical... A música do jazz trabalha muito com essa liberdade dos músicos, e eu resolvi trazer para o disco. Então ficou aquela coisa muito criativa, solta.
¾     Você podia mostrar como isso acontece na música?
¾     Sim, é claro. Por exemplo, a segunda música.... Por favor, coloca a segunda, é “Massunim” (ou algo parecido)
Ouve-se a música. Trinta segundos de música e nada de especial, só aquela base típica de MPB. Começa a parte cantada. Nada demais. Um minuto de música e nada de aparecer algo além daquele sonzinho básico de MPB, ou afro-MPB, que seja. Deu para ouvir suspiro dela. Segundos depois:
¾     E aí?
¾     O quê?
¾     Você estava falando da liberdade, daquela, e pediu para mostrar a música dois para dar um exemplo...
¾     Sei...
¾     E então, como essa liberdade, essa coisa muito criativa, solta se reflete nessa música?
¾     (confuso)... Ela se reflete em todo o disco.
¾     Ah, sei...
¾     Eu dou essa liberdade, depois vou esculpindo.
¾     Ah, você vai esculpindo?
¾     Isso mesmo!
¾     Interessante... Eles gravam, depois você esculpe... (decifrando o enigma) Por isso o nome do disco: “Manufaturas”?
¾     Exato!
¾     Puxa vida... Olha só... Muito bom.
¾     É. É gratificante.
¾      E você quer mostrar mais alguma música?
¾     Sim, “Cauecitã” (ou algo parecido)
¾     Que é sua música preferida, certo?
¾     Não, não. Eu não tenho música preferida.
¾     É que eu tinha lido isso aqui, em algum lugar.
¾     Sim, é que “Sua Música Preferida” é o nome de uma outra música.
¾     Ah, olha só, que coisa! Vamos ouvir a música?
¾     Qual?
¾     Sua música preferida, ou a que você preferir...

O sinal da rádio se perde no estacionamento do subsolo. Fecho o carro, subo pelo elevador e entro em casa com um persistente sorriso no rosto. Nada como uma comédia involuntária para fechar a noite.
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