Por volta da meia-noite, vindo do
teatro, onde assisti uma belíssima visão dos cortiços por um grupo mineiro com
uma atriz magnífica, e, na sequência, alimentado por um inebriante crepe
mexicano, com direito a duas cocas para aplacar a pimenta, tendo ainda uns vinte
e poucos quilômetros pela frente, ligo o rádio para afastar o sono que a noite
e o estômago despejavam na minha cabeça.
Mais que músicas ou notícias, nessas
horas prefiro ouvir entrevistas. Gente conversando no rádio me desperta. Acho
uma entrevista. Ela, boa voz, entrevista um músico baiano de afro-MPB. “Afro-MPB,
tu vê!”, costumava dizer o Humba, um amigo distante ao se dar com denominações bizarras.
O cantor/compositor falava sobre seu disco “Manufaturas”, guarde este nome.
“Essa musicalidade afro lá em
Salvador já vem desde criança, na vitamina”. Pronto, estou desperto.
Com um leve, quase imperceptível, toque
de cinismo (ou seria ironia?) na voz, o que pode ser coisa da minha cabeça, ela
faz aquela típica entrevista para apresentar e promover novas vozes, gente que
“canta na noite”. Estranha a expressão “canta
na noite”. Será um eufemismo para “canta no fundo do barzinho”? E essa, então: “barzinho”?
O que será um “barzinho”? Talvez seja um daqueles lugares sem cara nem estilo,
nem luz, onde casaizinhos vão tomar chope com fritas, em que o cara só percebe
que tem alguém lá no fundo cantando MPB quando a menina que ele quer comer diz “essa
eu conheço, é do Djavan!” E cantarola, voltada para o músico, com os olhos
semicerrados “você deságua em mim e eu oceano”. “Não é linda”, pergunta ela,
meio que testando. “Ah, é... linda... E aí, vamos pedir a conta, dar uma volta?”
“Mas aqui tá tão bom”. Sem chance, ele não vai comer.
Mas signifique o que significar a
expressão “canta na noite”, o fato é que eu ouvia, cada vez mais atento, aquela
entrevista “do bem”, com perguntas tipo “com que músicos você toca”, que trazem
resposta do tipo “com fulano; ele é muito
competente, a gente se complementa,
a gente tem uma verdadeira simbiose musical.”
¾
E como foi a gravação?
¾
Foi todo um processo!
Ah, bom, está explicado. “Todo um
processo” não é de matar? Depois de alguns segundos de silêncio, ela, disfarçando
o incômodo:
¾
Sim, mas e aí, como foi todo esse processo? (ela é engraçada demais, intencionalmente ou
não)
¾
Eu dei bastante liberdade para os músicos. Eles
puderam imprimir sua individualidade musical... A música do jazz trabalha muito
com essa liberdade dos músicos, e eu resolvi trazer para o disco. Então ficou
aquela coisa muito criativa, solta.
¾
Você podia mostrar como isso acontece na música?
¾
Sim, é claro. Por exemplo, a segunda música....
Por favor, coloca a segunda, é “Massunim” (ou
algo parecido)
Ouve-se a música. Trinta segundos
de música e nada de especial, só aquela base típica de MPB. Começa a parte
cantada. Nada demais. Um minuto de música e nada de aparecer algo além daquele
sonzinho básico de MPB, ou afro-MPB, que seja. Deu para ouvir suspiro dela.
Segundos depois:
¾
E aí?
¾
O quê?
¾
Você estava falando da liberdade, daquela, e
pediu para mostrar a música dois para dar um exemplo...
¾
Sei...
¾
E então, como essa liberdade, essa coisa muito criativa, solta se reflete nessa
música?
¾
(confuso)... Ela se reflete em todo o disco.
¾
Ah, sei...
¾
Eu dou essa liberdade, depois vou esculpindo.
¾
Ah, você vai esculpindo?
¾
Isso mesmo!
¾
Interessante... Eles gravam, depois você esculpe...
(decifrando o enigma) Por isso o nome do disco: “Manufaturas”?
¾
Exato!
¾
Puxa vida... Olha só... Muito bom.
¾
É. É gratificante.
¾
E você
quer mostrar mais alguma música?
¾
Sim, “Cauecitã” (ou algo parecido)
¾
Que é sua música preferida, certo?
¾
Não, não. Eu não tenho música preferida.
¾
É que eu tinha lido isso aqui, em algum lugar.
¾
Sim, é que “Sua Música Preferida” é o nome de
uma outra música.
¾
Ah, olha só, que coisa! Vamos ouvir a música?
¾
Qual?
¾
Sua música preferida, ou a que você preferir...
O sinal da rádio se perde no estacionamento do subsolo.
Fecho o carro, subo pelo elevador e entro em casa com um persistente sorriso no
rosto. Nada como uma comédia involuntária para fechar a noite.