Ricki deixou o marido e três filhos para ser roqueira. Toca guitarra, canta, alopra, e você não vê nem sombra da Diaba que vestiu Prada, da Dama de Ferro, da Mamma Mia ou da Sofia, a mãe que sofria. Você pode procurar Meryl Streep, mas só verá uma velha roqueira que toca numa banda de cinquentões e sessentões, daquelas ótimas, mas que nunca passaram daquilo. Não há nem sombra da Meryl Streep. Aliás, quem é Meryl Streep? Ninguém sabe, ela nunca foi vista, a não ser nas cerimônias do Oscar. O filme tem bons diálogos, principalmente quando a família está reunida (a cena do restaurante é sensacional). Como atriz, Meryl deve ter ficado menos com a filha do que esta desejava, o que pode ter gerado uma eletricidade especial nas cenas entre elas, que tratam exatamente de abandono. Apesar de nada surpreendente, o final é delicioso. Tenho certeza, a cena final é capaz de levantar o astral de qualquer derrotado depressivo em vias de ligar para o 141.
Parêntese urgente: calma, Ana, estou bem, de verdade, este filme não salvou minha vida, eu nem sabia o número do CVV, tive que procurar no Google. Aos demais, explico: sei que minha irmã, ao ler o final do parágrafo anterior, já estava pronta para gritar “Edson, como é que ele sabe o número do CVV? Deve estar pensando em usar. Vamos já para Brasília”. “Calma, bem, primeiro liga pra ele”. “Ele não gosta de falar no telefone e vai negar, vamos já, que eu quero ver com os meus próprios olhos, que a terra não há de comer”. “Ele deve estar bem, senão não ia escrever no blog”. “O post no blog pode ser carta de despedida, ele foi abandonado pelo pai, a mãe morreu, ele está solteiro, ele não sabe ficar solteiro! Sabia que ele não estava bem. Eu vou. Se quiser, você fica”. “Calma, bem, não é assim, primeiro precisa ver se tem passagem”. “Eu ein! O que você acha que eu fiz nos últimos dois minutos?”. “Nos últimos 2 minutos você surtou”. “Lembra que mulher faz duas coisas ao mesmo tempo? Posso perfeitamente surtar e comprar passagem ao mesmo tempo. Aliás, pega o cartão de embarque na impressora... Ei, o que está fazendo que ainda não se arrumou?”.
Desculpem-me por misturar assuntos familiares, mas seria difícil continuar a escrever se tivesse que sair para o aeroporto, buscá-los. Voltando ao filme, o fato é que Meryl está fantástica. Já no Que Horas Ela Volta?, Regina Casé interpreta uma empregada que deixou a filha no interior de Pernambuco para tentar ganhar dinheiro em São Paulo e sustentar o estudo da filha. Só que a coisa não deu muito certo e as duas deixaram de se falar. Até que a filha vem fazer vestibular em São Paulo e fica com a mãe, que mora na casa dos patrões, no cubículo de empregada. Os patrões ricos ficam assombrados com a menina prestar o mesmo vestibular que o filho. “Tem certeza? É um dos mais difíceis. Em que escola você estudou?” A situação fica constrangedora. E quanto mais problemas entre as castas surgem, como a filha ter entrado na piscina, mais constrangimento.
Agora, sincero leitor, responda rápido, sem pestanejar, se você tivesse que optar, qual dos filmes você veria? Claro, o da Meryl Streep. Sorte que não somos Sofia e não precisamos escolher – veja os dois. Mas se quiser escolher o melhor, aí sim, vá ao da Anna Muylaert, mais profundo, mais comovente e mais emocionante.
Anna Muylaert, como sempre, nos leva, vagarosa e continuamente, para algum lugar, sem que saibamos para onde, o que mantém a ansiedade e o suspense. Foi assim em Durval Discos e É Proibido Fumar, por exemplo. Em Que Horas Ela Volta?, seu melhor filme, como no excepcional Faça a Coisa Certa, do Spike Lee, o conflito na casa do Morumbi vai aumentando, pouco a pouco, mas não sabemos se, e quando, desembocará em algo mais trágico.
Camila Márdila |
Para quem tem medo de filmes de baixo orçamento e, consequentemente, menor ênfase na técnica, como alguns que Anna já fez, Que Horas Ela Volta? não assusta – a Globo Filmes está na excelente produção. Já quem se assusta, com razão, com a Globo Filmes e seus inúmeros filme tipo ZTPC (Zorra Total Piorada no Cinema), fique tranquilo: a Globo sempre soube separar o joio do trigo – este está na cota do trigo, pequena e ocasional, evidentemente.
Que Horas Ela Volta? é mais rico em camadas e significados, tem mais sutileza e vai muito além do conflito mãe e filha: opõe uma geração mais submissa e consciente de seu lugar à geração atual, para a qual a diferença social (tão profunda hoje quanto antes) não faz ninguém abaixar a cabeça ou deixar de sonhar. O final é de uma beleza de abrir a bolsa pra tirar lenço.
Perdoem-me, mas vou finalizar com dois recados pessoais:
Ana, irmã: venham à Brasília, não como SOS espiritual, mas como visita, porque estou ótimo. Estou muito bem sozinho, não estou dando tiro pra tudo que é lado.
Anna, diretora: você estava linda no Programa do Jô... Está com alguém no momento?