sexta-feira, 18 de setembro de 2015

STREEP E CASÉ - A REDENÇÃO DAS MÃES QUE ABANDONAM

Dois filmes sobre filhas “abandonadas” pelas mães estão em cartaz nos cinemas. As aspas se devem à divergência entre as visões das mães (não abandonei) e das filhas (fui abandonada). Ricki and the Flash é uma produção americana com nada menos que Meryl Streep, mais o ótimo Kevin Kline e Mamie Gummer, a filha abandonada, que vem a ser filha de Meryl Streep também na vida real (é uma pena que a expressão ‘vida real’ esteja caindo em desuso). Direção do bissexto Jonathan Demme, de O Silêncio dos Inocentes. O segundo, Que Horas Ela Volta?, é brasileiro e tem como protagonista a atriz com cara de pobre, Regina Casé, que interpreta uma pobre: Val, vinda do interior de Pernambuco para ser babá do filho de um casal rico do Morumbi. Direção de Anna Muylaert, de Durval Discos. 


Ricki deixou o marido e três filhos para ser roqueira. Toca guitarra, canta, alopra, e você não vê nem sombra da Diaba que vestiu Prada, da Dama de Ferro, da Mamma Mia ou da Sofia, a mãe que sofria. Você pode procurar Meryl Streep, mas só verá uma velha roqueira que toca numa banda de cinquentões e sessentões, daquelas ótimas, mas que nunca passaram daquilo. Não há nem sombra da Meryl Streep. Aliás, quem é Meryl Streep? Ninguém sabe, ela nunca foi vista, a não ser nas cerimônias do Oscar. O filme tem bons diálogos, principalmente quando a família está reunida (a cena do restaurante é sensacional). Como atriz, Meryl deve ter ficado menos com a filha do que esta desejava, o que pode ter gerado uma eletricidade especial nas cenas entre elas, que tratam exatamente de abandono. Apesar de nada surpreendente, o final é delicioso. Tenho certeza, a cena final é capaz de levantar o astral de qualquer derrotado depressivo em vias de ligar para o 141.

Parêntese urgente: calma, Ana, estou bem, de verdade, este filme não salvou minha vida, eu nem sabia o número do CVV, tive que procurar no Google. Aos demais, explico: sei que minha irmã, ao ler o final do parágrafo anterior, já estava pronta para gritar “Edson, como é que ele sabe o número do CVV? Deve estar pensando em usar. Vamos já para Brasília”. “Calma, bem, primeiro liga pra ele”. “Ele não gosta de falar no telefone e vai negar, vamos já, que eu quero ver com os meus próprios olhos, que a terra não há de comer”. “Ele deve estar bem, senão não ia escrever no blog”. “O post no blog pode ser carta de despedida, ele foi abandonado pelo pai, a mãe morreu, ele está solteiro, ele não sabe ficar solteiro! Sabia que ele não estava bem. Eu vou. Se quiser, você fica”. “Calma, bem, não é assim, primeiro precisa ver se tem passagem”. “Eu ein! O que você acha que eu fiz nos últimos dois minutos?”. “Nos últimos 2 minutos você surtou”. “Lembra que mulher faz duas coisas ao mesmo tempo? Posso perfeitamente surtar e comprar passagem ao mesmo tempo. Aliás, pega o cartão de embarque na impressora... Ei, o que está fazendo que ainda não se arrumou?”.

Desculpem-me por misturar assuntos familiares, mas seria difícil continuar a escrever se tivesse que sair para o aeroporto, buscá-los. Voltando ao filme, o fato é que Meryl está fantástica. Já no Que Horas Ela Volta?, Regina Casé interpreta uma empregada que deixou a filha no interior de Pernambuco para tentar ganhar dinheiro em São Paulo e sustentar o estudo da filha. Só que a coisa não deu muito certo e as duas deixaram de se falar. Até que a filha vem fazer vestibular em São Paulo e fica com a mãe, que mora na casa dos patrões, no cubículo de empregada. Os patrões ricos ficam assombrados com a menina prestar o mesmo vestibular que o filho. “Tem certeza? É um dos mais difíceis. Em que escola você estudou?” A situação fica constrangedora. E quanto mais problemas entre as castas surgem, como a filha ter entrado na piscina, mais constrangimento.

Agora, sincero leitor, responda rápido, sem pestanejar, se você tivesse que optar, qual dos filmes você veria? Claro, o da Meryl Streep. Sorte que não somos Sofia e não precisamos escolher – veja os dois. Mas se quiser escolher o melhor, aí sim, vá ao da Anna Muylaert, mais profundo, mais comovente e mais emocionante.

Anna Muylaert, como sempre, nos leva, vagarosa e continuamente, para algum lugar, sem que saibamos para onde, o que mantém a ansiedade e o suspense. Foi assim em Durval Discos e É Proibido Fumar, por exemplo. Em Que Horas Ela Volta?, seu melhor filme, como no excepcional Faça a Coisa Certa, do Spike Lee, o conflito na casa do Morumbi vai aumentando, pouco a pouco, mas não sabemos se, e quando, desembocará em algo mais trágico.

Camila Márdila
Meryl Streep é Deusa, diva, ET, sei lá, aprendeu a tocar guitarra, ok, mas sua personagem, a roqueira velha, pobre e legal, é um estereótipo (que o filme exigia). Personagens assim, Meryl Streep põe em sua máquina alienígena e pronto, now just go to Oscar. Já Regina Casé fez um mergulho e sensível numa mãe em conflito interior, que sofre com a ausência da filha e que substituiu o afeto que não pôde dar a ela pela devoção ao filho do casal rico. A intepretação minimalista da nossa atriz com cara de pobre é sensacional. Aliás, por este filme, Regina Casé ganhou o premio de melhor atriz no Sundance Film Festival (aquele do Robert Redford). Mas não ganhou sozinha, o prêmio foi dividido. Sabe com quem? Com Nicole Kidman, que também concorria? Não. O premio de melhor atriz foi dado para Regina Casé e Camila Márdila, sua filha no filme, atriz brasiliense, de Taguatinga (é nóis na fita!).

Para quem tem medo de filmes de baixo orçamento e, consequentemente, menor ênfase na técnica, como alguns que Anna já fez, Que Horas Ela Volta? não assusta – a Globo Filmes está na excelente produção. Já quem se assusta, com razão, com a Globo Filmes e seus inúmeros filme tipo ZTPC (Zorra Total Piorada no Cinema), fique tranquilo: a Globo sempre soube separar o joio do trigo – este está na cota do trigo, pequena e ocasional, evidentemente.

Que Horas Ela Volta? é mais rico em camadas e significados, tem mais sutileza e vai muito além do conflito mãe e filha: opõe uma geração mais submissa e consciente de seu lugar à geração atual, para a qual a diferença social (tão profunda hoje quanto antes) não faz ninguém abaixar a cabeça ou deixar de sonhar. O final é de uma beleza de abrir a bolsa pra tirar lenço.

Perdoem-me, mas vou finalizar com dois recados pessoais:

Ana, irmã: venham à Brasília, não como SOS espiritual, mas como visita, porque estou ótimo. Estou muito bem sozinho, não estou dando tiro pra tudo que é lado.

Anna, diretora: você estava linda no Programa do Jô... Está com alguém no momento?
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