sábado, 3 de outubro de 2015

100 ANOS DE ORLANDO SILVA

Orlando Silva

Houve um tempo em que havia elegância. Não sei se foi o tempo de pardais, de verdes nos quintais, quando ainda havia fadas, mas a contar pelas imagens que o Google nos mostra das meninas aladas, ah, sim, havia elegância.

Também não sei ao certo se o tempo em que havia elegância era aquele mesmo, dos galos, noites e quintais, antes do mal que a força sempre faz, mas creio que sim, a contar pelo que evoca a imagem de um galo cantando, tendo ao fundo, no residual escuro do céu, as estrelas mais resistentes ao iminente nascer do sol, este sim, em toda sua ardida e ferina deselegância.

O fato é que houve um tempo em que havia elegância, disso não há dúvida, a contar pelo fato de que um cantor mirrado e feio, ou, para os policiais dos sentimentos alheios, um cantor desprovido de formosura, fez um estrondoso sucesso tendo como base apenas a voz, não um vozeirão de arrasar quarteirão, mas uma voz sutil e magicamente elegante.

Orlando Silva, o Cantor das Multidões, não tinha essa alcunha por acaso ou por exagero. O cara lotava estádios, levava mais público, em Belém, que o Sírio de Nazaré, levava mais gente às ruas do Rio que uma praia aos 40 graus, cidade maravilha purgatório da beleza e do caos.

Orlando Silva parece ter sido o primeiro fenômeno de massas da música brasileira, e isso tudo sem uma voz potente, como tinham os cantores de sucesso à época, sem corpão sarado, sex appeal ou a cara de bonitão de um Vicente Celestino.
Vicente Celestino

Orlando Silva, que hoje completa 100 anos (“completaria” o cacete – tá certo que ele morreu há quase 40 anos, mas nunca o conheci, e para mim, ele é a sua voz, que estou ouvindo neste exato instante, vivíssima), tinha uma voz impressionantemente calma, se é que calma é um adjetivo apropriado para classificar a voz de um cantor, e se não for, a partir de agora passa a ser. Basta ouvi-lo cantar e nossa alma fica leve, flutuando. Isso, ele tem voz flutuante, outro adjetivo perfeito. A forma como ele trata as vogais, sem esmurrá-las, pegando-as, com carinho, lá em baixo e levando-as aos céus, ecoando-as como as trombetas do paraíso, modulando-as sem sacolejar, para depois devolvê-las para baixo novamente, suavemente, repousando-as ao som doce da melodia, uau, é fantástico.

Ouvir Orlando Silva é fazer essa viagem. Isso é elegância pra mais de metro!

Seus sucessos mais conhecidos hoje são “Rosa” (tu és divina e graciosa, estátua majestosa...), “Carinhoso” (meu coração, não sei por quê...) e “Lábios que beijei” (lábios que beijei, mãos que afaguei), mas minha preferida é “Apoteose do Amor” (ouça no link acima), uma deslavada declaração de amor cheia de metáforas e imagens belíssimas, com uma melodia inspiradíssima e uma interpretação... O que dizer da interpretação? Ah, já disse - escrevi aquilo (céu, trombetas, etc) ouvindo justamente Apoteose do Amor, na qual, por sinal, há um verso que se refere ao que hoje chamaríamos de chupar os peitinhos, mas, como disse, era um tempo em que a elegância falava mais alto:

São dois lírios os teus seios alabastrinos

Quase divinos, parecem feitos para os meus beijos...

Caso queira acompanhar a música ouvindo a letra, há dois erros absolutamente bizarros em todos os sites de letras de músicas – não sei de onde tiram exatamente os mesmos erros. No lugar de Muito almejo dos lábios teus o dulçor, colocaram Muito almejo dos lábios teus por um som! Isso mesmo. O cara ouve, não tem vocabulário para entender dulçor, e tasca um por um som. Que falta de elegância! E tem mais: no lugar de Minha alma mendiga amor, curvada aos teus pés, aparece um Minha alma, bendito amor, curvada aos teus pés. Oh céus! Mas ouça, que é de levantar vôo.

Houve um tempo em que os grandes artistas brasileiros eram devidamente homenageados no centenário. Duvido que hoje apareça em destaque o centenário do maior cantor brasileiro de todos os tempos, e cantor dos mais populares, como já desse, mas, com o perdão da deselegância, se o Ximbinha tá ou não comendo a Joelma, ah, isso tá em tudo que é canto dessa internet dos infernos. É deselegância prá mais de quilômetro!
Orlando Silva

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