sábado, 21 de agosto de 2010

Tio Moa vai ao cinema: O Segredo dos Teus Olhos

O HOMEM QUE SUBLIMAVA DEMAIS

Peço desculpas aos leitores modernos, que gostam de textos curtinhos, mas neste terei que ser um pouco mais extenso. Só um pouco.

Há muito tempo li na Folha uma crítica do filme “Um Corpo Que Cai”, do Hitchcock. O título era “o homem que sublimava demais”. Achei o máximo o título remeter a outro filme do diretor (“O Homem Que Sabia Demais”). Me lembrei disso porque não há título melhor para falar de “O Segredo dos Teus Olhos”, que já deve estar nas locadoras (se ainda não viu, saia daí correndo assim que acabar de ler este post, vá a uma locadora, pegue o filme, assista umas duas ou três vezes e depois deposita uns 200 reais na minha conta, como agradecimento).

No dia da estréia do filme no cinema eu saí do trabalho e fui direto. Já entrei na sala sorrindo, feliz por estar prestes a ver um novo do Campanella. Na verdade o nome do diretor é Juan José Campanella, mas uso só um nome para demonstrar a intimidade. Se quiser impressionar alguém, fale, por exemplo, que adora o Almodóvar. Nunca fale do “diretor Pedro Almodóvar”, isso é distante. Fale “do Almodóvar”, como se estivesse falando de um vizinho, um cara qualquer que você vê todo dia. Bom, voltando ao Campanella, ele é Argentino, ou seja, um gringo boludo com mania de grandeza. Sorte nossa.

Falei que entrei na sala do cinema sorrindo de alegria e satisfação. E saí chorando. Não chorando assim pequenininho. Um baita choro, daqueles que você nem sabe bem porque está chorando, mas aquele choro vem forte lá de dentro e deixa a gente meio sem ar (é claro que, machérrimo, escondi das pessoas que estavam comigo).

Que tipo de filme é? É drama, comédia, suspense, thriller, depende da cena. Muitas cenas são tão boas que a gente pode admirá-las como um pequeno filme dentro do filme. Você está rindo e de repente você não está mais na comédia, mas num suspense, depois num thriller. É como se a gente tivesse num daqueles cinemas 3D em que as cadeiras se mexem conforme as subidas e descidas e a gente tem a sensação que vai cair mesmo.

Cada gênero é filmado ao estilo dos melhores: o melodrama tem ares de Almodóvar (até no título); o thriller à Scorcese, com uma cena de ação digna de um Brian de Palma; algumas cenas longas, tensas e sem falas são Hitchcock; a tocada das cenas de investigação lembra as comédias leves de Woody Allen (Scoop e Um Misterioso Assassinato em Manhattan). Visto assim, o filme é um pequeno compêndio de cinema, que se fecha esplendidamente com o take final à Ernst Lubitsch, um diretor de filmes leves e elegantes, que tinha a mania de esconder cenas atrás de uma porta. Apesar de tantas referências, tudo é bem costurado por um roteiro brilhante e por uma direção sensível, inventiva e humana: assinatura do diretor de “O Filho da Noiva”, “Clube da Lua” e “O Mesmo Amor, a Mesma Chuva”. É um filme para quem gosta de cinema se deliciar: cada tomada tem uma sutileza, uma elegância, um ponto de vista revelador. Isso tudo com uma tensão e angústia que atravessam todo o filme.

Falei tudo? Não, falta a história. Espósito (Ricardo Darin) tenta escrever um livro sobre uma investigação da qual participou há vinte anos e acaba viajando ao passado, quando além da história do crime, tinha a sua história com sua chefe, Irene (Soledad Villamil), que era louquinha por ele, mas o babaca (você vai ter uma raiva dele...) não tem coragem de chegar junto, e fica remoendo o resto da vida, até aqui, é claro.

Algumas cenas fantásticas (só algumas, o filme é cheio delas):

1. Logo no início, Espósito vai à cena de crime, conversando com um parceiro, numa conversa animada, cheia de palavrões, que é cortada um close em Darin quando ele entra numa casa e vê algo. A câmera está fechada em seu rosto, e é por ele que sabemos que o que está ali não é nada bom de ser visto. Coisa de ator dos bons e de diretor invulgar (a expressão invulgar é em homenagem à Fernanda, a quem o Inácio Araújo complicou toda – não entendeu? É piada interna, esquece). Em seguida um momento mágico de puro cinema: seus olhos percorrem o quarto, mostrando ora os fragmentos/sinais de uma vida feliz que enxerga pela sala, ora a horrível visão do corpo de mulher morta com muita violência. Viajamos com seus olhos e vivemos sua experiência. Fui enganado pelo gringo boludo: até ali, tudo levava a crer que era uma comédia.

2. Espósito examina uma foto e acha estranha a expressão de um sujeito. O movimento de câmera aproximando-se da foto, aliado à música, conta prá gente aquilo que para Espósito é leve suspeita.

3. A Hilária cena em que Espósito e seu amigo e colega de trabalho invadem uma casa à procura de pistas.

4. Logo depois, a genial cena do chefe passando uma descompostura em Espósito por ter feito aquela invasão. Incrível o timing de comédia (agora fui fundo: “timing de comédia”... Mas ao ver a cena você vai saber o motivo, quando o chefe soletrar “Es-po-si-...).

5. A cena em que o assassino, já solto, entra no elevador em que estão Esposito e Irene. Alí, numa descida de elevador, sem falas, Darin consegue relatar toda a nossa impotência diante da opressão da ditadura.

6. A cena do estádio é dos melhores planos-sequência da história do cinema: você se aproxima do estádio como se estivesse num helicóptero, depois acompanha o ataque, a bola na trave e desce para a arquibancada, onde, encontra Espósito e seu colega procurando alguém na multidão. Sai o gol na hora inacreditavelmente errada. Depois, a fuga e o desfecho da cena. Para os sobrinhos do tio Moa: plano-seqüência é uma cena feita sem cortes, com uma única câmera que vai filmando direto. O filme podia parar ali, para aplausos.

7. A linda e lacrimejante despedida, em flash back, me fez pensar “cena linda, mas maio apelativa”. Na cena seguinte, época atual, a própria protagonista ironiza a cena. O gringo boludo me enganou de novo. Campanella costura, brinca, mexe, diverte e até aterroriza (mas não vou falar das cenas de horror).

E os atores? Ricardo Darin é um monstro, não parece ator, de tão demasiadamente humano (frágil e impotente para mudar o rumo da sua vida). Ele sempre foi ótimo, mas neste filme subiu alguns degraus. O comediante Guillermo Francella, compõe Sandoval, um alcoólatra, com equilíbrio entre o humor e o drama pessoal. Soledad Vilamil faz sua Irene dizer tudo sem precisar falar nada, ou quase nada (“que no es lo mismo pero es igual”).

Numa cena, brilhante, Sandoval, meio borracho, explica sua tese para achar o suspeito, segundo a qual o homem pode abdicar de tudo, menos da paixão. A explicação fica na cabeça de Espósito, não apenas porque pode ajudar a encontrar o assassino, mas porque o lembra de sua própria fuga. O assassino do filme não foge, como previu Sandoval, de sua paixão, mas Espósito tentou fugir, no passado, quando deixou Irene na estação. Terá conseguido? Ele sabe que não.

Por que nós, os fracos, relutamos tanto quando chegamos perto de alcançar algo importante? Os mais fortes e determinados avançam. Mas os fracos, e desconfio que sejamos a maioria, fugimos e depois, para esconder a frustração, sublimamos, substituindo por algo nobre e inadiável: eu só não segui a carreira no teatro porque meu filho nasceu, foi por causa do meu casamento que não pude fazer aquela faculdade que eu tanto queria e que teria mudado minha vida. Fica mais fácil colocar a culpa em uma circunstância. No caso de Espósito, o homem que sublimava demais, a fuga foi justificada por um trabalho honroso que virou obsessão: pegar o assassino.

Viva a sua vida, diz o marido da vítima, quase no final do filme, mais de 20 anos depois. A ficha começa a cair e Espósito retorna, com angústia e esperança, para repensar, reviver e tentar de novo. A viagem de Espósito me fez viajar em mim mesmo. Descobri que meu choro no final do filme não foi só pela beleza do desfecho, pelas cenas bem feitas, mas principalmente pela angústia, pelo tempo perdido, por tudo de que já fugi.

Finalmente, o choro também foi de felicidade. Primeiro porque acho que as nossas fraquezas reafirmam mais a nossa humanidade do que o comportamento determinado e firme dos fortes. Segundo, porque percebi que ainda há tempo para, como diz Irene, deixar de ser lerdo, e buscar coisas que ainda quero, com as quais ainda sonho. Como disse Espósito, vai ser complicado, mas e daí?

A arte não faz milagres, mas um belo e poderoso filme pode economizar uma baita grana com terapia...

3 comentários:

fernanda_cm disse...

Poxa, que ótimo retorno! Invulgar, rs. Que pena, ainda não assisti o Segredo dos Teus Olhos, morro de vontade, mas agora tenho que economizar duzentos reais.
Assisti ontem o brasileiro Cabeça a Prêmio do Ricca (o diretor Marco Ricca):MARAVILHOSO!! Me deu um orgulho do cinema brasileiro, estou até agora com o ar preso...

fernanda_cm disse...

Assisti hoje Os Segredos dos Teus Olhos, ainda estou com lágrimas nos meus. Realmente invulgar, estou buscando forças dentro de mim, afinal quem garante que ainda haverá chance vinte anos depois...

Tio Moa disse...

Sempre há chance quando se ama. Se a gente não acreditar nisso e não der chance à chance, aí a vida seria uma merda, porque, afinal, viver é sonhar

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