Brasília, sexta feira, 21h. Haveria um importante e difícil jogo da Ponte Preta, contra a líder da série B, a Portuguesa, no campo do adversário, o Canindé. A Ponte estava subindo e se aproximava do G4, vinha de 4 vitórias seguidas e apesar de ser improvável a quinta vitória, eu estava louco para ver o jogo. Quando os times entraram em campo, a TV saiu do ar. Fui ao micro pensando ver pela internet, ou em ouvir numa radio on-line, mas a internet também havia caído. Combo é assim, acaba uma coisa, acaba tudo. Liguei do celular e a previsão de retorno do sistema era para depois do final do jogo. Aí lembrei que no radio do carro talvez estivesse transmitindo, afinal, o jogo era em São Paulo e a Jovem Pan de São Paulo tem retransmissora em Brasília. Como diria Nelson Rodrigues, batata! Ouvi o jogo, que foi dificílimo, mas a POnte venceu, com gol de William, 1x0, a quinta vitória seguida do meu time, num jogo eletrizante. Uma informação importante: pelo rádio, todos os jogos são eletrizantes...
Depois do jogo subi para o apartamento, liguei a TV e esperei para ver a reprise, que começou a 1h. Foi incrível! É impressionante o poder que tem o rádio de nos fazer construir imagens. Cada lance que via na TV era como se eu já tivesse visto e não apenas ouvido. Imaginava os lances de forma muito parecida como ocorreram na realidade. Reconhecia os lances. Uma transmissão por rádio utiliza códigos: no rádio ouvi “desce Malaquias pela meia direita, corta, traz para o pé esquerdo, sai da ponta, vai pra meia” e a mente construiu uma imagem. Quando vi o lance na TV, a imagem que minha cabeça havia projetado era quase igual. Ou seja, ver o que ouvi apenas ratificou, não trouxe quase nada a mais. A única diferença fundamental foi a favor do rádio: pela TV é muito menos emocionante. O locutor do rádio dá uma emoção que o da TV jamais chega perto. Pela TV, o cara não pode, tem que se ater ao que aconteceu. No rádio ele cria mais perigo do que existe, ainda que não minta sobre o lance.
Não estou querendo dizer que não verei mais na TV, só “verei” pelo rádio. Mas algo mudou. Se todos os jogos da Ponte fossem, como dizia minha santa mãezinha, "irradiados" onde moro, eu ficaria com muito menos pressa de chegar em casa e ligar a TV. O rádio satisfaz plenamente.
A noite de sexta me provocou muitas recordações da infância e adolescência, o que acabou me levando a um dos meus filmes preferidos do Woody Allen, “Radio Days”, no qual ele traz recordações de infância, que tinham como pano de fundo o rádio, que ocupava o lugar que há poucos anos foi da TV. Sobrinhos do tio Moa, acreditem: as pessoas se juntavam ao redor do rádio para ouvir novela ou futebol!
Em 1969 minha mãe e meu avô estavam nervosíssimos ao lado do rádio. Jogavam, na Vila Belmiro, a pequenina Ponte e o poderoso Santos de Pelé. Naquele ano, a Ponte acabava de subir para a primeira divisão e fazia uma campanha surpreendente. O primeiro tempo acabou 0 x 0. Perto do final do segundo tempo, todos estavam nervosíssimos, torcendo para que o Santos, que pressionava, não conseguisse o gol. A Ponte atacava pouco e parecia muito difícil que fizesse um gol no poderoso Santos de Pelé. Mas não tomar gol já estaria de bom tamanho. O rádio (à válvula, caixa de madeira) estava falhando um pouco, o chiado de estática encobria a voz do narrador, e não sabíamos quem estava no ataque quando finalmente saiu o grito de gol. Não sabíamos de quem era. Um suspense absurdo enquanto o locutor gritava um interminável gooooooool, ao final do qual ele finalmente falou “Santos, em jogada sensacional...” (chiado forte encobrindo a voz do locutor). Meu vô sacramentou "raios que o partam, foi do Santos". Minha mãe, nervosíssima, explodiu com as expressões que usava muito nessas ocasiões de contrariedade: “Lazarento-morfético-filho da puta”. Mas o locutor continuou: “Ponte 1, Santos 0". E a família urrou. "Não foi do Santos, foi da Ponte". Até o meu avô, um carrancudo português que de cada 10 frases oito eram “raios que o partam”, sorriu e berrou de alegria (não me lembro de outra vez que tenha feito isso na vida). Depois me explicaram: Santos era o nome do lateral esquerdo da Ponte Preta que fez uma grande jogada que resultou em gol da Ponte, que ganhou de 1 a 0 do poderoso Santos, de Pelé, em plena Vila Belmiro. Foi neste momento que larguei minha simpatia pelo Palmeiras e virei pontepretano.
Também me lembro das tardes sombrias de sábado, que eu tornava sombrias, pois escurecia o quarto para ouvir um programa que contava histórias de medo, de espíritos e mistérios.
Voltando ao Radio Days, ele começa com dois assaltantes levando tudo o que tinha numa casa. Aí toca o telefone. Com medo de despertar os vizinhos, um deles atende. É um programa de rádio que distribui prêmios para respostas certas. Os ladrões acertam as 3 perguntas e caem fora com o produto do roubo. No dia seguinte, a família está desolada quando chega o caminhão de prêmios, tudo novinho. Esse início já dá o tom: é um filme do bem!
Leve e cheio de poesia, é narrado pelo Woody Allen e o traz menino, em sua família, com suas irmãs mais velhas, seus tios e tias, alguns morando na mesma casa, outros visitando nas festas. Há o namorado da irmã, que o leva ao cinema pela primeira vez. Há a tia cantando Carmem Miranda, com seus típicos trejeitos, no banheiro, quando chegam dois tios e fazem o refrão, num dos momentos mais marcantes do filme. Há uma garçonete fanha que presencia um assassinato e é pega pelo bandido, que antes de matá-la a leva à casa de sua mãe, também “funcionária” da máfia. Acabam gostando dela, resolvem não matá-la e ainda a colocam como cantora no rádio.
Rádio Days provoca identificação muito forte porque é composto de situações cotidianas muito próximas de nós. Ao lembrarmos nossa infância, sempre sentimos aquela nostalgia boa, mas meio doída; sempre vemos tudo como mais leve, mais puro e mais gostoso. Talvez seja porque o tempo elimina as bobagens que no momento em que viemos, inventamos para a nossa vida. Com o tempo, o que fica mais nítido na memória são os momentos de amor, de alegria, as coisas boas que compartilhamos e a parte boa das pessoas que nos rodeiam.
Ver Radio Days é bom porque quase todos tivemos vizinhos chatos, tios, irmãs mais velhas, uma tia que apertava a bochecha da gente; todos nós fomos ao cinema pela primeira vez e em algum momento gostamos de super heróis; todos nós tivemos natais e réveillons.
Aliás, é num réveillon que o filme acaba, me deixando, sempre que vejo, em transe, tocado, sensibilizado, querendo ser poeta e sentindo minha alma imensa e inflada como um balão.
Viva o Rádio!
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