domingo, 31 de outubro de 2010

"Tio Moa Viajou" explica Hitchcock - 1

Hitchcock é o mestre da linguagem do cinema

Pelé (parabéns pelos 70 anos) é conhecido no mundo todo como o Rei do Futebol. Perfeito. Hitchcock é o mestre do suspense. Não gosto desse título. Primeiro porque a grande maioria das pessoas associa “suspense” a um gênero de filme. Suspense é um estado de tensão que sentimos por não saber exatamente o que acontecerá a seguir e nem quando acontecerá, o que aumenta ainda mais a tensão, ou o suspense. Nisso, é bem verdade, provavelmente ninguém tenha sido melhor que Hitch (não quero parecer íntimo do mestre, mas não posso negar que temos alguns laços). Mas classificá-lo como mestre do suspense restringe demais a importância e a atuação do gordinho inglês e de sua obra. Para explicar melhor convido o ávido sobrinho a um pequeno passeio.

O teatro existe há milênios. Provavelmente começou lá na Grécia antiqüíssima (antes da antiga), quando os agricultores incorporavam deuses e encenavam rituais para abençoar a colheita (imagina que porre que era!). Mas tanto os atores quanto a platéia bebiam muito vinho prá encarar. Aí o negócio ficava bom. O teatro pegou e é forte até hoje. Já o cinema é coisa muito nova; não tem mais que seus 100 anos (sem essa de pesquisar data da invenção oficial do cinema, ein).

Quando o cinema começou a engrenar, muitos disseram que o teatro morreria. Erraram feio: o teatro nunca vai morrer porque não há nada que o substitua, nem o cinema. A experiência de ter um ator incorporando um personagem, ali, bem na sua frente, é inigualável. Você se relaciona com ele, troca experiências. Se você ri ou suspira, o ator ouve e, com ou sem intenção, altera a forma ou a intensidade da sua atuação. É uma troca que não ocorre no cinema. Isso sem falar que você, a qualquer momento, pode se levantar e entrar na cena, ou gritar algo para o ator, e o ator vai ouvir e vai se manifestar, porque no teatro, as coisas acontecem no presente, na sua frente, e não em algum lugar do passado. É claro que se você gritar num teatro seria um mega mico, mas essa simples possibilidade também faz parte da magia do teatro.
 Agora imagina se o cinema fosse feito como uma peça, com uma câmera parada, como se fosse você na platéia, apenas captando os atores interpretando, com os acontecimentos ocorrendo um após o outro, em sequência ininterrupta de tomadas estáticas. Seria exatamente igual ao teatro, só que sem o contato, sem aquela magia própria do teatro. Ou seja: seria um saco!

“Espera aí”, pode lembrar o atento sobrinho, “um trem no cinema é um trem de verdade, não um pedaço de pano pintado”. Sim, o trem é de verdade, mas não está ali, naquele momento, está apenas projetado, enquanto a ilusão do teatro faz com que o fato de ele ser de pano absolutamente não importe. O foco do teatro não é te convencer que você está ao lado de um trem de verdade, mas te convencer de que você está frente a frente com o espírito humano interpretado pelo ator.
 Não estou querendo dizer que o teatro é melhor que o cinema, mas que o cinema, para funcionar, teria que ser diferente. E conseguiu quando criou a sua própria linguagem, nova, diferente de todas as linguagens anteriores. Se o cinema se limitasse à forma do teatro de contar uma estória, não teria introduzido uma nova linguagem.
 O que fez do cinema a sétima arte não foi a tecnologia (projeção, movimento, som), mas o fato de ter inaugurado uma nova linguagem, o que não ocorreu quando inventaram a câmera e a projeção, mas sim quando os cineastas começaram a cortar as cenas, editá-las e montá-las e não . Quer um exemplo?

Uma cena mostra um homem num quarto se dirigindo à janela e olhando para baixo. Corta. Agora aparece outra imagem: um homem e uma mulher numa rua, conversando bem próximos, filmados do alto. Mesmo que ninguém nos diga, sabemos que o homem da cena anterior está olhando atento para eles (no início do cinema, um homem explicava, ao lado da tela, o que acontecia, já que as pessoas ainda não dominavam essa linguagem). Agora os dois se despedem com um beijo. Corta. Agora a câmera do lado de fora da janela, mostra, de baixo, o homem ma janela, com expressão de raiva.

Concluímos que o homem está enciumado e com muita raiva. Imagine que na próxima cena seja ele esteja estrangulando e matando a mulher da cena do beijo. Percebemos que ele é o marido ou algo parecido, e que está fazendo isso por ciúme.

Imagine que depois desta cena do estrangulamento, a próxima tomada fosse novamente do homem olhando para baixo, seguida por uma nova cena da mesma mulher, andando na rua. Ninguém pensaria que ela
ressuscitou depois do estrangulamento, nem que agora quem está na cena é a sua irmã gêmea. Entendemos a linguagem do cinema e concluiríamos oncluiríamos que ele, como marido traído, havia fantasiado um estrangulamento. Só concluímos isso depois de vê-la novamente na mesma rua em que andava, com a mesma roupa. Mas se o cineasta não quisesse que esperássemos a nova cena para mostrar a mulher viva, ele poderia fazer com que a cena do estrangulamento surgisse de modo granulado, ou com outra cor, ou se enevoar até desaparecer. No mesmo instante saberíamos tratar-se de imaginação, porque compreendemos a linguagem do cinema.


Mais: a mulher andando, de repente olha para cima e, num close, vemos sua expressão amedrontada; depois novamente a câmera mostra o homem, visto de baixo, à janela, com cara de mau. Os dois se relacionaram diretamente, não foi? Ela sabe que ele a viu e ele sabe que ela sabe que ele a viu. Agora vejam: isso tudo pode ser filmado em momentos diferentes, sem que o ator e a atriz se vejam. A rua pode ser em outra cidade. O cinema cria espaços, histórias e relações com um simples deslocamento do ponto de vista e muito corte, muita montagem. Ressalte-se que tiramos todas essas conclusões ao ver as cenas sem necessidade de uma única palavra, uma única explicação.

Essa é a linguagem do cinema, que nos coloca como seres inteligentes, interpretando ativamente o que acontece. Quanto mais rica a utilização da linguagem puramente cinematográfica em um filme, quanto mais códigos são inseridos e quanto mais a compreensão das cenas depende da interpretação desses códigos (e não apenas do texto que é dito), mais o filme nos desafia e mais gratificados nos sentimos ao compreendê-lo.

É claro que um filme pode ser bom pelo texto, pelo roteiro, tanto que Tio Moa é fanático por Billy Wilder e Woody Allen, mestres em roteiros e em textos fantásticos. Mas o que diferencia o cinema de qualquer outra arte, como a literatura e o teatro, é a rica utilização de sua própria linguagem, que é única. E nisto não tem prá ninguém: o maior de todos os tempos, é Sir Alfred Hitchcock, mestre não apenas do suspense, mas da experimentação, da criação e da plena utilização da linguagem cinematográfica, tudo a serviço do entretenimento, do cinema gostoso de ver, que prende, diverte e emociona. Hitchcock é o cara!

2 comentários:

fernanda_cm disse...

Olá, gostei da organização! Moa e suas faces (vc jamais será meu tio, rs).
Bjs

Néia Guimarães disse...

que bom poder usar a imaginação e conseguir ver estas tomadas de cinema,na imaginação,visualizar isto tudo sem estar vendo,como é bom ler tb!!!!

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