terça-feira, 4 de janeiro de 2011

A Incrível História do CPNES - Parte 12

A VIDA É FILOPÉTICA

Alguns dos professores eram ruins, uns deles muito ruins, de um nível assustadoramente... assustador. A única explicação para nós, ingênuos, era o descaso da direção. Não cogitávamos que houvesse, por exemplo, uma indicação política ou militar. O fato é que era imperdoável. Um deles, não recordo o nome (ou prefiro não citar para não constrangê-lo em seu atual emprego, se é que alguém teve a coragem de contratá-lo), não dizia coisa com coisa, e quando tentava dizer, faltavam-lhe as palavras. Provavelmente, julgando-se esperto, improvisava e inventava uma palavra para ocupar o espaço na frase. Outra possibilidade é que ele imaginasse uma palavra e, confundindo, dissesse outra, de estrutura morfológica ou fonética semelhante. Já ouviram quando alguém, distraído, justifica dizendo “é que eu tava intertido”? Sempre que aparecia uma pérola daquelas, procurávamos no dicionário. Em vão. Era um inventor.

Algumas das pérolas que coletamos: planejório, espertício, empresalmente e por aí ia. Às vezes ele apenas queria falar difícil, mas errava, como quando quis dizer que algo que um aluno falara era uma tolice. No lugar de dizer estultícia (achamos esta, correta, no dicionário, notando ser perfeitamente cabível na situação), o tal professor disse: “ora, mas isso é uma espultícia”. Dispensável dizer que a sala caia na gargalhada.

Mas a palavra que mais gostávamos era uma que até perecia existir, tinha uma bela estrutura, era boa de se pronunciar. Todos nos apaixonamos por ela. Pensamos até em usá-la como nome da turma, na formatura. Assim que a disse pela primeira vez, nos entreolhamos, como a perguntar se era mais uma das dele. E era! “Filopética”.

Voltemos ao pôsti anterior, que acabou quando saímos no final da tarde com a decisão pela realização da peça, com pequenas censuras. Estávamos no ônibus, indo embora para a distante, empoeirada e desértica vila em que morávamos. Muitos iam em pé. Estávamos maravilhados. Todo aquele suspense, aquela reação do “sistema” e aquelas ameaças tiveram, ao contrário do intuito que certamente tinham, de nos amedrontar e disciplinar, outra reação completamente diferente. Se nossas intenções sempre foram provocar , havíamos acertado em cheio. Se não dessem a menor pelota para aquela peça, talvez nada acontecesse. Mas aquela reação nos deu muita moral, nos deu importância, nos sentimos chicos e caetanos, nos sentimos teatro de arena, arena canta zumbi, nos elevaram à categoria de importantes lideranças de esquerda. Era tudo o que queríamos.

Voltando ao ônibus, no trajeto Plano Piloto-Vila Desértica, discutíamos as censuras ao texto. Agora queríamos denunciar também a censura que sofrêramos. Resolvemos substituir todas as palavras riscadas pelo coronel não por outras que tivessem o mesmo sentido, mas por “filopética”, sim, a palavra que tanto adorávamos e que todos conheciam como mais uma das pérolas do professor. Isso seria fantástico, porque externaria a intromissão no texto.

Alguém perguntou: externaria mesmo? Ficaria claro que palavras haviam sido censuradas? É claro que não. Talvez algum percebesse e perguntasse depois o que fazia aquela palavra lá no meio, mas em geral, quase ninguém notaria e perderíamos uma bela oportunidade para afrontar, para marcar território, para mostrar força e ousadia, para ser topetudo! Assim, resolvemos explicar de algum modo.

E dois dias depois, a peça. Aqueles acontecimentos, a ameaça de desligamento, a pressão, as alterações no texto , fizeram com que a interpretação dos atores fosse ainda mais zombeteira. A experiência que tive, dois dias antes, de ficar sozinho com o coronel, que tragava com vagar e provocação sua cigarrilha (ele nunca havia feito aquilo em público), me deu munição. Gilsão, gordo como o coronel, fez um rei delicioso de se ver. Quando ia pressionar sua filha, a princesa, ou os súditos, tragava com vagar e provocação seu imenso charuto, segurando da mesma forma. Arletão, o escracho em pessoa, fez a princesa, a filha do rei, que se apaixonava e engravidava de um súdito, o Tiba. Sobral fez, com estranha (!) perfeição, a Ministra das Comunicações, uma evidentérrima paródia da mesma professora que, dois dias, antes nos havia salvado a pele (a minha e a da peça). Norberto parodiou um professor que pedia “dois cafézes” na cantina. Seu texto era curto, mas se alongava por uma eternidade, enxertado por “NÉs”, “TÁs” e “PÔs”. O povo delirava. Os outros professores, nas primeiras fileiras, seguravam as gargalhadas.

Não vou encher este pôsti com detalhes da história e da encenação, mesmo porque não eram, creiam, nenhuma maravilha. Você deve estar curioso é para saber como fizemos para que a palavra “filopética”, colocada três vezes no texto, desse a entender, claramente, que havíamos sido censurados. Pois é, depois de pensarmos muito, mudamos de ideia. Pensamos: se deixarmos claro que fomos censurados, o que vamos ganhar? Nada.

Nós queremos deixar claro que havíamos sido censurados ou queríamos fazer rir e, principalmente, provocar o censor?

Pois bem. Na hora da primeira “filopética”, o ator sai da velocidade normal da fala e pronuncia, pausadamente, “fi-lo-pé-ti-ca”. Isso, é claro, já fazia rir, primeiro intento cumprido. Todos os atores da cena congelaram neste momento. Entrou o Chakur: “a palavra ‘filopética’ substituiu a palavra originalmente colocada no texto, que se contundiu e não pôde vir a campo”. Segundo intento, a provocação, mais que cumprido, certamente.

Na segunda vez, a mesma coisa, só que desta vez é o Valter Jr: “devido a compromissos inadiáveis assumidos anteriormente, a palavra originalmente colocada no texto foi substituída por ‘filopética’, nossa querida curinga”.

Por fim, na terceira vez, entra o Markovitch e explica “a palavra original, desapareceu, há dois dias, a polícia trabalha com a hipótese de seqüestro, as buscas continuam.”

E seguiu-se a peça, até o fim. Aplausos gerais, o povo não acreditava no que tinham visto. Nascia o Cobra Parada Não Engole Sapo, justificando publicamente seu nome. Definitivamente, aqueles sapos de dois dias antes não haviam sido engolidos. Os aplausos não paravam mais. Não eram, evidentemente, pela qualidade do texto nem pelo maravilhoso desempenho dos atores, mas claramente pela nossa coragem de brincar com aquilo, de falar tudo o que estava entalado na garganta. Todos os 500 alunos acabavam de eleger, por aclamação, seus interlocutores: o CPNES.

Mas o espetáculo não terminaria ali. Ansioso por dar a última palavra, e também não engolir seu sapo, o coronel colocou a cereja no bolo. Pediu a palavra e subiu ao palco. Pediu que colocássemos uma mesa e uma cadeira para que ele falasse sentado (e com algo entre ele e os interlocutores - velha mania militar). Sentou-se e puxou uma cigarrilha do bolso. Puxou também seu isqueiro prateado. Olhou para a mesa e, nada vendo, pediu um cinzeiro. O pândego e mostárdico Dijon não se fez de rogado. Na falta de um cinzeiro, não teve dúvidas: pegou uma enorme lixeira de madeira, daquelas antigas de escritório, e colocou sobre a mesa. (Dez anos depois disso, fui conhecer o maravilhoso filme “Do Mundo Nada se Leva”, em que um poderoso vai à casa de “plebeus” e pede um isqueiro. Vem um gaiato com um isquerio do tamanho de um tambor e barulhentíssimo. A cena do filme é praticamente idêntica a esta, do coronel e do cinzeiro do Dijon).

O coronel, vendo aquele “cinzeiro”sobre a mesa, olha grave para o Dijon, que sai de fininho. O homem respira, afasta o cinzeiro para o canto da mesa, acende sua cigarrilha, dá uma longa baforada e, referindo-se à princesa interpretada pela Arlete, profere, grave e solene:

“Fiquem os senhores sabendo que eu não tenho filha, mas se tivesse, ela não seria dessas...”

Um comentário:

fernanda_cm disse...

Eu gostei de espultícia, mas filopética é ótimo! Por favor, que venham as cenas do próximo capítulo.

Postar um comentário

Blog Widget by LinkWithin