segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

A Incrível História do CPNES - Parte 11

O DIA EM QUE A TERRA PAROU


Já falei sobre vários membros do CPNES e em breve falarei de outros tantos. Agora, entretanto, é a vez da primeira vez, da estréia, do primeiro espetáculo, por mais inadequada ao objeto que seja essa palavra.

O Cobra Parada Não Engole Sapo nasceu do desejo, da necessidade e da vontade. Você tem sede de quê?

Desejo de fazer arte. Desejo era fazer arte em grupo, o que é um barato totalmente diferente de fazer arte individualmente.

Necessidade de gritar, de fazer-se ouvir, de marcar território, de resistir. Necessidade de simplesmente preencher o tempo.

Vontade de se divertir. Vontade de aparecer.

Nossa Cidade é uma peça de Thorton Wilder, que tinha (ainda tem, é claro) o poder de expressar coisas maiores da existência humana, por meio de coisas pequenas do cotidiano. Havia visto a peça em Campinas, em 1981, numa noite em que apenas eu e mais cinco testemunhas estávamos na platéia. A peça começou com atraso porque os atores decidiam se a apresentariam ou não, devido à falta de quórum. A força do texto, a qualidade e a garra dos atores diante daquela não-platéia, me arrebataram totalmente. Saí dali perplexo e pensando que se algo nobre existe, seria fazer teatro. Especialmente uma atriz, uma diva, teve uma atuação inacreditável. Ela quem anunciara ao público que a peça iria acontecer e que eles dariam o melhor de si. E deram. Pena que não me recordo o nome da atriz. Espero que alguém, dentre as centenas de milhares de leitores deste blógui, saiba seu nome.

Pois agora (agora, vocês sabem, é outrora) finalmente eu podia descarregar toda aquela impressão. Na nossa universidade quartel eu ouvia o que todos mais criticavam, reclamavam. Resolvi colocar num texto teatral, com o auxílio luxuoso da irmã Rosa (irmã em todos os sentidos, menos no de relação consangüínea). Nascia “Nosso Reino”, a peça. 

Paralelamente, arregimentávamos atores, pessoas que tivessem bom humor, vontade de transgredir e de se expor para dar vida à sanha revolucionária dos cabeças do CPNES, se é o grupo tinha cabeças e se é que algum dos cabeças prezava a cabeça que tinha, se é que algum tinha alguma cabeça.

O texto era bastante crítico, do sistema em que vivíamos ali, dos professores (porta-vozes do poder, para eles tudo estava bem, tipo “é assim mesmo”), das nossas condições financeiras, de transporte e de moradia, do descaso, da distância entre discurso e prática, entre a realidade e a ficção (que insistiam em afirmar ser realidade). Para os nossos donos (assim eles se julgavam), vivíamos em um mundo maravilhoso. Tudo a ver com contos da carochinha, com faz-de-conta. Nada mais apropriado, portanto, para dar uma porradinha do que uma peça tipo era-uma-vez. Assim era “Nosso Reino”.

Para arregimentar e animar as pessoas, Arletão, aquela de quem todos gostavam, a alegre, a divertida, a desbocada (e com tudo isso era a pessoa que mais dava porrada, mais falava a verdade). Se alguém perguntava “ih, o Campineiro é que está montando? Não é perigoso não?” Aí a Arlete falava que o Gilsão estava no grupo. Gilsão dava peso e seriedade, era um dissipador de medos.

Na primeira reunião, a leitura do texto para escolhermos quem faria o quê. Na primeira leitura, entre risos e animação, alguém perguntou, com aquela voz séria e grave, tirando o sorriso do povo e colocando aquela expressãozinha de preocupação. A pergunta era se podíamos fazer crítica assim, publicamente. Para "tranqüilizar" a todos, ponderei que “aquela gente” se pautava pelas normas e regulamentos, e que não havia nada escrito sobre isso, o que nos dava total tranqüilidade... (dei uma pausa)... "para espernearmos caso haja represália". Esse complemento, evidentemente, não ajudou muito a dissipar a preocupação. Gilsão, corintiano e fã do Vicente Matheus, completou: “quem entra na chuva é prá se queimar”, declaração que, por si só, não aliviava nada, mas vindo da boca do Gilsão teve o poder de tranquilizar e ao mesmo tempo energizar a galera. Realmente, naquele clima de censura à livre expressão, de disciplina militar e naquele contexto de “estertores do poder” em que viva o país, não tínhamos a menor idéia do que aconteceria. E olha que aconteceu...

Nas vésperas da estréia, cartazes espalhados, enfim, tudo pronto, a dois dias da apresentação o coronel, o big boss, pediu o texto. Mandei, um pouco temeroso. Era manhã. Passavam as horas e não sabia a resposta. À tarde, o Coordenador, o único civil de toda a cúpula, veio a mim trazendo na face a expressão aflita da gravidade, como a de quem carrega uma bomba. A peça não poderia ser encenada. “O homem tá puto! Como é que você escreve um texto desse?” Como pode? Que absurdo! Que estupidez, bradei, inconformado, dizendo que eu iria naquele instante falar com o homem. “Não adianta, só vai piorar as coisas. Se for só isso que acontecer, dê-se por satisfeito”. Por quê? “Nem te digo, nem te digo”. Saiu esbaforido. Fui ao Gilsão, com a mesma expressão aflita de gravidade. “Gilsão, fudeu!”.

Já era hora da aula, a maioria dos alunos na sala. Alguns do lado de fora, como sempre. E nada de professor, o que era absolutamente incomum, na verdade, inédito, naquele lugar que primava pelo horário. Da sala do fundo, a dos professores, saíram o Coordenador e dois professores, Maria Luiza e Jaime Esteban. Todos com a mesma expressão e passos de quem vai tirar o pai da forca. E a aula? perguntaram os alunos. Esperem.

Meia hora depois volta o coordenador e, sem explicação, dispensa todos, não haveria aula naquela tarde. Por quê? "Problemas..." A mim, depois que todos haviam saído, ele disse que minha situação era crítica. Como crítica, o que ele podia fazer a mim? Mandar embora, expulsar? É, respondeu, consternado.

Parecia que a terra havia parado. Ser expulso era a pior coisa que poderia acontecer a qualquer um ali. Voltar para casa de mamãe, sem dinheiro, sem emprego, sem faculdade, tendo perdido um ano... Por dentro eu tremia que nem vara verde. Nunca vi vara verde, não sei se ela treme ou não, mas posso dizer que eu tremia. Mas onde estava a minha fama de corajoso, que eu estava erigindo?

O último ensaio estava marcado para depois da aula. Arletão, que devido à falta de aula havia antecipado o ensaio, veio a mim: “vamo lá, guri! A turma está esperando”. Falei que não tinha condições de comandar o ensaio. “Larga de ser bundão. Vai deixar esse bando de milico fazer isso com você? Se fizerem alguma coisa, a gente dá um jeito, faz uma revolta, diz que vai todo mundo junto, quebra tudo...”

Fui, fizemos um ensaio delicioso, durante o qual me esqueci que a peça provavelmente não aconteceria e que estava a ponto de ser expulso. Assim que acabou o ensaio, desço ao nosso andar, com Gilsão, Arlete, Tiba e a Rosa. Eles esperaram ali fora. Entro, com o Gilsão, na sala do coordenador. “E aí?” Logo vi, na cara do Chiquinho, que a expressão era outra, bem melhor.

Ele me contou que os professores Maria Luisa e Esteban, além dele próprio, haviam tido uma longa conversa com o coronel, tentando demovê-lo da idéia de impedir a peça e de me expulsar e... conseguiram. Mas o coronel queria falar comigo. Vá agora lá que ele está te esperando.

Era a primeira vez que entrava na sala do Coordenador Geral. Poucos, ao longo daqueles 30 meses, entraram ali, se é que mais alguém além de mim entrou ali. Eu entraria ali outras vezes, em circunstâncias semelhantes, outras piores, outras melhores.

Lá estava ele, escondido atrás daquela enorme mesa de madeira, com desenhos em alto relevo talhados. Não me olhava direto nos olhos. Dava longas e provocativas baforadas na sua cigarrilha.

"Eu já fui jovemeu entendo essa rebeldia".

Na minha cabeça veio imediatamente a maravilhosa música do Luiz Melodia, “eu entendo a juventude transviada”.

Primeiro veio um blá-blá-blá paternalista. Depois um tom ameaçador. Eu pouco ou nada falava. No final, pediu algumas modificações no texto, trocar coisas inconvenientes, como disse ele. Desci e fui direto para o ponto de ônibus, onde todos esperavam ansiosos. Desci festejando. "Esses caras vão ver, cutucaram onça com vara curta!" Durante o trajeto que nos levaria na distante vila onde morávamos, decidimos, em festa, como alteraríamos o texto onde ele pediu. Decidimos pegar ainda mais pesado. Ele pediu para “substituir algumas coisas”, mas não falou por quais coisas... Estávamos endiabrados!

No próximo pôsti, os hilários e transformadores acontecimentos do dia seguinte, o dia em que o Cobra Parada Não Engole Sapo de fato nasceu e mudou a cara de Brasília, do Brasil e, por conseqüência, do mundo, no campo das artes, da política e da filosofia.

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