quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

A Incrível História do CPNES - Parte 13

A VERDADE NUA E CRUA

A parte 12 acabou com o discurso do coronel, que falou algumas abobrinhas do tipo “eu entendo a juventude transviada”, “liberdade com responsabilidade” e que tais, antes, é claro, de concluir com aquela pérola que encerrou o pôsti anterior, “não tenho filha, mas se tivesse, ela não seria dessas...”

Falando em "liberdade com responsabilidade", trata-se de uma expressãozinha besta inventada pelos militares, mas que até hoje muitos estúpidos, sem coragem para dizer simplesmente “liberdade” (devido ao medo de que vire "anarquia"), complementam com o fétido e brochante “com responsabilidade”. Falar “liberdade com responsabilidade” é destrutivo, além de ridículo, pois quando você trata com adultos no mundo corporativo, já se supõe, de antemão, a existência da responsabilidade. Pedir responsabilidade desacredita quem a ouve, que pensa “Quem é esse babaca para me pedir responsabilidade?”. Aí o feitiço se volta contra o feiticeiro. Portanto, caso você, caro gestor, líder ou chefete, quando quer uma equipe criativa e empolgada e para isso quer dar liberdade, cuidado, não use o tal “com responsabilidade”. Fale “liberdade” e ponto final. O resto vem de fábrica, está no sangue, creia.

Mas, lá nos idos de 1983, o coronel estava na dele. “Liberdade com responsabilidade” na boca dele era legal. Na verdade, o coronel era (não sei se ainda é, espero que esteja vivo e com saúde) um grande bonachão, um paternalista, que queria educar aqueles alunos (pelo menos os que ele quisesse que continuassem ali). Mas isso somente fomos perceber muito tempo depois. Talvez tenha se transformado em bonachão e paizão com nossa ajuda, com a nossa vitória final, quando claramente ganhamos a guerra, não sem algumas baixas, que sentimos até hoje.

Depois daquela apresentação, o CPNES ganhou força. E nós ganhamos cuidados redobrados, investigações pessoais, olheiros por todos os lados. Mas o pior, o terror de verdade, ainda estaria por vir. Os próximos pôstis falarão sobre os momentos mais tensos e as batalhas mais terríveis.

Por enquanto, pulemos um pouco no tempo, para cerca de um ano e meio após aquela apresentação, depois das crises e batalhas pelas quais ainda passaríamos: eis que já no final do curso ele me chama em seu gabinete. Não havia motivo aparente. Era um momento em que não estávamos aprontando nada (pelo menos de domínio público, que ele pudesse saber).

Não entendi porque me chamara. Coisa boa não devia ser. Será que deixou que eu fizesse o curso quase todo, só de castigo, para no final, me expulsar como exemplo? Ele seria tão sórdido?

Acho que se eu tenho uma qualidade, é a coragem. Sempre fui topetudo e enfrentei o desafio. Mas tenho um segredo, que confesso agora: sempre, até hoje, enfrentei esses desafios tremendo, com as pernas bambas, a respiração ofegante, com todas as reações de um grande covardão, que foi o que, na verdade, nua e crua, sempre fui (e continuo sendo). Mas um covardão que, por algum motivo, na hora do pau não arria. De alguma forma eu acabo encarando.

Pois bem, foi assim, tremendo, pálido, borrando as botas, que encarei o longo trajeto que me separava daquele gabinete, que era num outro bloco. Desci o elevador do meu bloco, cujo uso era proibido aos alunos (nunca gostei muito de proibições). Andei calmamente até a entrada do outro bloco (calmamente o cacete: estava nervosíssimo e até com enjôo, mas andei devagar para tentar ganhar fôlego, um andar que, para um estranho que observasse a olho nu, pareceria que eu estava calmo, como um Clint Eastwood ou um Charles Bronson, em Era Uma Vez no Oeste, indo para o duelo).

Entrei no elevador do outro bloco, apertei o número 3 (sorte, demoraria mais – o prédio tinha 3 andares). Na entrada da sala dele, a secretária me falou para me sentar e esperar. Entrou na sala do coronel. Esperei. Ela voltou e pediu que eu esperasse mais. Pensei no que de pior pudesse acontecer comigo: a expulsão, o desligamento. Voltaria para casa de minha mãe, com uma mão na frente e outra atrás, tendo perdido dois anos e meio na vida, sem diploma, sem nada, com quase vinte e dois anos. O que eu diria? Que não me comportei bem? Ou que resisti e lutei contra a ditadura, contra a opressão, que lutei por cada brasileiro, por uma sociedade mais justa, que lutei pela minha mãe também? Tudo bem, havia perdido a luta pessoal, mas havia lançado a semente, havia escavado um pouco e ajudado a desestabilizar os alicerces da ditadura, havia conhecido gente importante, os meninos do Paralamas, do Titãs, a Regina Casé. “Quem é essa gente?” Realmente, eles ainda não eram conhecidos. Mas conheci compositores, filósofos, políticos de esquerda. Cresci muito com isso. “E emprego, que é bom?” Bom, isso a gente vê depois, posso fazer artesanato, posso ir para o Rio de Janeiro... “O que tem lá no Rio de Janeiro?” Ah, tem um monte de gente, artistas, músicos. “Um monte de cariocas, isso é que tem lá!”

Simulei mentalmente aquele papo com minha mãe, minha irmã e meu cunhado, que quebravam alguns galhos financeiros. Não era muito animador. “Pode entrar, Moacir”, anunciou a secretária, inexpressiva, o que não me permitiu decifrar nada. Ao menos a secretária sabia meu nome. Também, tantas vezes eu havia ido lá... Ou seria porque ela estava com o documento da minha expulsão em sua gaveta, com o meu nome em letras garrafais?

Entrei na sala. Lá estava aquela mesma mesa gigante, lindamente opressora, com seus entalhes em relevo. Atrás dela e de alguma fumaça, o coronel e sua indefectível cigarrilha, seus tragos profundos e baforadas lentas e gostosas. Após aquela baforada percebi que o papo (ou a sentença?) ia começar.

Eu também já fui jovem. Eu entendo a juventude”. Acredite, caro leitor, ele repetiu isso pela enésima vez. Mas daquela vez foi diferente. Se tem uma coisa que já havia aprendido naquela época, era ler expressões, como um Dr. Lightman anos 80. E li que tudo estava bem. A baforada não fora provocativa, mas amistosa. Não havia dúvidas, relaxei na hora. Ele falava comigo como a um filho muito querido, que havia sido rebelde, sim, mas que ele "endireitara" com sua educação austera.

Eu gosto muito de você, Moacir. Você tem aquela força, aquele inconformismo da juventude. Eu sei o que é isso, eu já fui assim, e isso foi muito importante para mim”. E contou, durante mais de uma hora, suas diabruras na caserna, suas conquistas, falou sobre sua família, suas crenças, seus sonhos.

Eu sonho em comprar aquele bloco ao lado, e fazer de dormitório para os alunos. Você pensa que eu queria deixar vocês lá naquela vila, longe e empoeirada, que você tanto criticou na primeira peça? Aquilo é horrível, mas eu não podia dizer isso, é claro. Por mim, vocês ficavam aqui do lado, bem instalados. Eu passaria todas as manhãs, enquanto vocês estivessem na aula, em todos os quartos, veria a arrumação, se as camas estavam esticadas, os pratos limpos”.

Não me segurei e ri. Ri não de ironia ou escárnio, nem de provocação. Ri como a gente ri de um pai exagerado em seu amor por nós. Ri de compreensão. Ri com discordância, é claro, mas com compreensão e carinho. “Você ri, né?” É, respondi, não tem como não rir, coronel, porque é desnecessário, é uma invasão de privacidade, mas eu estou entendendo que a intenção é boa. Pode continuar.

Ele sorriu. Estava estava muito carinhoso e deu mais uma baforada. Aí pronunciou mais uma coisa que ficaria guardada em mina memória, como a pérola da filha que ele não tinha. Ele disse “escreva o que estou dizendo: um dia você vai me dar razão”.

Senti como uma revelação aquele seu carinho que transbordava, aquela sua vontade de nos transformar em gente de bem, em homens de caráter, segundo o modelo arcaico que ele aprendera durante toda sua vida, e no qual acreditava e educara seus próprios filhos e netos. Aquilo era amor. Esquisito, anacrônico, mas, sem dúvida, era amor.

Que me desculpe o carrancudo e incrédulo Humberto Laraia, meu amado personagem; desculpem-me os que persegui com meu ódio aos normais, aos medrosos e aos caretas; desculpem-me os amigos que me seguiram nessa cruzada. Mas o fato, a verdade, doa a quem doer, a verdade, não sei se quanto à cama arrumada, mas talvez até a isso, a verdade mesmo, nua e crua, é que o coronel, realmente, tinha toda razão.

Os meios não importam; continuo os achando estúpidos, mas realmente não importam. Constatei naquela tarde inesquecível, naquela longa conversa com um pai que nunca tive, que o amor é a única coisa que realmente constrói e transforma.

Onde estiver, coronel Telmo, sinta-se abraçado e beijado pelo Cobra Parada e pelo filho mais problemático e revoltado que você já teve.

2 comentários:

fernanda_cm disse...

Iche, lindo este post. Outros egos...Já que você confessou aqui sua covardia, vou confessar a minha emoção, chorei.

Anônimo disse...

Caro Irmão
A cada leitura me emociono um pouco mais, tá lindo, divino, este então foi de "fuder", no fundo, acho que todos passamos a reconhecer nos ditos "repressores da ESAF", pessoas bem intencionadas, Irmãozinho, não pare, continue nos brindando com tanta recordação, que nos proporciona uma viajem a um tempo em que éramos felizes simplesmente porque tínhamos um pouco de Arletão em cada um de nós, abraços
Gilsão

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