A PRIMEIRA CANÇÃO
Pela
manhã, todo pimpão, saiu para passear com os cachorros e fazer coisas chatas
que se fazem aos sábados pela manhã, como mandar lavar o carro (porque isso tem
que ser tão complicado e tomar tanto tempo das pessoas? Porque a vida é tão dura
com quem tem preguiça?).
Uma
pergunta lhe veio à cabeça: por que, apesar dos afazeres chatos, estava de bom
humor? Porque o ar matutino do sétimo dia é quase que indestrutivelmente agradável?
Talvez porque a manhã sabatina seja temperada com a expectativa de passar dois
dias inteiros sem precisar ir ao trabalho, aos trabalhos, melhor dizendo, e
poder, assim, desfrutar, sem horários nem regras, do aconchego do lar, de uns bons
filmes no cinema ou em casa, do jogo do seu time na TV e, sobretudo, da agradável
companhia da filha.
Essa
possível resposta colocou um sorriso em seus olhos. Sim, porque não se anda
pelas ruas sorrindo com a boca, afinal, quem ri sozinho é louco. Já os olhos
podem sorrir à vontade, pois pouca gente nota. Além disso, as raras pessoas capazes
de notar o sorriso dos olhos alheios não o chamariam de louco, até porque quem
reconhece o sorriso dos olhos alheios é porque também sorri com os olhos, o que
garante certa cumplicidade. Neste momento veio-lhe uma música à cabeça:
“Eu cheguei
em frente ao portão,
Meu cachorro me sorriu latindo”
Se o
cachorro do “rei” pode sorrir latindo, porque não podemos, nós, humanos, sorrir
com os olhos? Bom, para que outras músicas escondidas nos recônditos de sua
memória, fossem elas do Roberto ou de outros similares, não lhe viessem perturbar
seus ouvidos cerebrais (quando você cantarola músicas sem som, são seus ouvidos
cerebrais que ouvem), resolveu ligar o som do celular. A opção “aleatória”, ou
randômica, como devem preferir os doutos, lhe colocou nos ouvidos, físicos e cerebrais,
uma jóia de George Harrison: “Beware of Darkness”. Até mesmo com sua quase
total ignorância da língua bretã, e apesar de não fazer a menor idéia do que
queria dizer o resto da música, sabia perfeitamente o significado do título da
canção: “cuidado com a escuridão”.
Deus,
ou a Apple em sua infinita sabedoria, colocou a música certa: naquele exato
instante sua vista começou a ficar turva, os olhos começaram como a formigar,
estrelas foram surgindo por todos os lados, e ele, mais que depressa, encostou
o carro. Os cachorros pularam felizes, achando que fariam uma segunda fase do
passeio (sorte que na primeira parte já haviam feito aquelas coisas de que
necessitamos todos, eles à luz do dia nas praças públicas, nós à qualquer luz,
mas dentro de cubículos preferencialmente limpos). Logo o agora preocupado
casal de cães percebeu que algo não estava certo com seu amado pai (ele
detestava quando nos pet shops usavam a expressão “pai” para se referir ao dono
dos cachorros, mas o que fazer se seus próprios cães o chamavam de pai? Dizer
“eu não sou seu pai” para os pequenos seres? Como ficaria a cabeça dos
bichinhos?)
Depois
de coçar os olhos e mantê-los fechados por alguns instantes, abriu-os e viu que
nada, ou quase nada, via. Aos lados, acima e abaixo, pura escuridão. Ao centro,
como uma câmera com o diafragma quase fechado, enxergava um pouco. E George Harrison
continuava a prevenir dentro de seus ouvidos. “Ok, George”, disse em voz baixa.
Ligou o carro, deu meia volta e, com todo o cuidado, voltou para casa, que
felizmente estava a poucas quadras. Entrou em casa com os filhos, ou melhor,
com os dois cães, e foi correndo para o banheiro pegar a caixa de remédios, de
onde tirou os destinados à enxaqueca. O turvamento da visão, acompanhados das
estrelas, é classicamente conhecido como “aura”, que ávida que uma crise
violenta de enxaqueca está prestes a começar. Tomou os remédios, dois, pôs o
protetor de olhos (aquilo que entregam em avião), fechou a persiana ao máximo e
se deitou. Ali permaneceu durante toda a manhã, levantando de tempos em tempos
para tomar novas doses de remédios.
Ali
passou também toda a tarde quente de verão, consumido pela dor e pelo suor. Levantou-se,
vivo, apenas no início da noite, com aquela dor residual, a cabeça oca, os
olhos sensíveis. Começava o jogo de seu time. Um ótimo jogo... para o
adversário, que marcou seis gols e só não continuou o massacre por que teve
piedade.
COMO TRANSFORMAR UM DIA?
Agora,
seguidores ou eventuais passageiros deste prestigioso blógui: vocês que
eventualmente conhecem este elíptico autor, respondam, por favor:
O
que pode transformar um dia como esse? Não digo transformar para que não seja
um dia de sofrimento, mas transformar para que seja um dia fabuloso,
inesquecível, um dia que melhor seja impossível?
Ei,
responda mesmo... Não é retórica, pode ir lá em baixo e deixar sua resposta no
campo “comentários”. Responda o que pode deixar o dia tão bom que melhor seja
impossível? Responda agora antes de ler o resto.
MELHOR IMPOSSÍVEL
Se
você, obediente leitor, já foi lá e respondeu, e se sua resposta tomou por base
o fato de ser este um blógui meio que sobre cinema, e ainda, astuto leitor, notou
uma dica no parágrafo anterior, e, finalizando, se você, inteligentíssimo leitor, leu o título deste pôsti e acabou por responder que a forma de
transformar o dia poderia ser assistindo ao esplêndido filme Melhor Impossível,
de James L. Brooks, você deu uma bela resposta.
O
filme é um preciosidade: um escritor Melvin (Jack Nicholson) é um portador de múltiplos
TOCs (transtornos obsessivos compulsivos), mal-humorado, homofóbico, grosseiro,
solitário e detesta cachorros. Melvin só almoça num restaurante, sentado sempre
à mesma mesa, atendido exclusivamente por “sua” garçonete, interpretada pela
bela Helen Hunt. Melvin tem um vizinho, Simon (Greg Kinnear), que é gay e tem
um cachorrinho. Simon sofre um assalto e fica internado por semanas. Melvin
acaba sendo obrigado a hospedar e cuidar do cachorro.
Dispensável
dizer que a presença do cachorrinho acaba mudando Melvin, que acaba se apaixonando
pelo cão e pela garçonete, e fica o resto filme tentando conquistá-la. Para
isso tem que mostrar a ela que não é o ser ultrajante e ignóbil que aparenta.
Ela reluta, e muito.
A
atuação do quarteto é fantástica (justíssimo Oscar de melhor ator para
Nicholson e de melhor atriz para Hunt), e aí incluo o cachorro, que chega
inclusive a assimilar alguns TOCs do novo dono (sensacional quando começa a
pular, como Melvin, as junções do piso das ruas).
Na
cena final, ele vai, de madrugada, até a casa dela, que abre a porta. Ele na
escada. Discutem. No meio da discussão ela deixa escapar que tem um namorado
maluco. Ele, atento, percebe: venceu sua resistência. São namorados. O filme
acaba suavemente, na padaria na frente, onde, às quatro da manhã, vão comer pão
da primeira fornada.
A SEGUNDA CANÇÃO
Sua
enxaqueca foi se acabando, a dor diminuindo, os olhos voltando ao normal.
Apesar de não ter assistido Melhor Impossível, e sim Loki, com sua filha, o dia
acabou muito bem, encerrando-se com uma boa (não em quantidade, mas em
qualidade) noite de sono e uma manhã que, apesar de clara demais para seus olhos
ainda sensíveis, estava especial.
Pegou
o aparelho e saiu com seus filhos, ou melhor, seus cães. Já na praça, notou que
ainda não havia colocado nenhuma música. E nem sentia falta. O ar da manhã
dominical parecia-lhe suficiente. Já na praça, temendo ser assomado por outra
música do Roberto, ou mesmo pela do Ronnie Von que fala da praça, resolveu
ligar o aparelho. Confiando mais uma vez na infinita sabedoria da Apple, optou
pelo modo aleatório. Ouviu, relaxado e tranqüilo, atrás de seus óculos escuros
e ao lado dos saltitantes pets, uma pérola de Luiz Bonfá:
Manhã, tão bonita
manhã
Na vida, uma nova canção
Cantando só teus olhos
Teu riso, tuas mãos
Pois há de haver um dia
Em que virás
Na vida, uma nova canção
Cantando só teus olhos
Teu riso, tuas mãos
Pois há de haver um dia
Em que virás
Das cordas do meu violão
Que só teu amor procurou
Vem uma voz
Falar dos beijos perdidos
Nos lábios teus
Que só teu amor procurou
Vem uma voz
Falar dos beijos perdidos
Nos lábios teus
Canta o meu coração
Alegria voltou
Tão feliz a manhã
Deste amor
Alegria voltou
Tão feliz a manhã
Deste amor