Apesar dessa voz chata e
renitente
Eu
não tô aqui Prá
me queixar
E nem
sou apenas o cantor
Rollo May, em seu livro “O Homem à Procura de Si Mesmo” diz que o grande
problema do homem é o vazio. As pessoas não sabem o que desejam, e sim o que os
outros dizem que devem desejar. Assim passam a vida, comportando-se da forma
dita correta, normal, aceita plenamente pelos outros. Poucos percebem
que não passam de um espelho do que os outros esperam deles. Desses, raros
são os que tomam a atitude de se perguntar “ei, cadê o meu self?” e sair em busca
de si mesmos.
Entretanto, alguns desses “raros poucos” não conseguem conviver simultaneamente com os dois papéis (o self-hunter, que procura seu eu e o do espelho, que consegue agradar à maioria). Fazer o que a sociedade espera e comportar-se de acordo com o padrão avilta de
tal forma o núcleo do ser, que alguns simplesmente não aguentam se comportar
como a maioria, abdicando de serem “normais” para não serem sufocados. Somente assim conseguem afirmar-se
como indivíduos, e não como espelho. Não que saibam exatamente o que
são, mas sabem que não são o que outros querem que sejam, e isto já é um bom
começo para encontrar-se.
Não
sei onde eu to indo
Mas
sei que eu to no meu caminho
Enquanto
você me critica, eu tô meu caminho
Os
“malucos-beleza” não são as pessoas mais, digamos, desejadas pelas rodas da
sociedade, incluindo a roda em que vivemos, eu, tu e o rabo do tatu. Ou vai
negar que torce a cara quando vê um cara com barba mal cuidada, jeans todo
surrado na rua erguendo os braços e gritando “viva a sociedade alternativa”?
Jura por deus, ops, por Deus que você não ri de uma mulher vestida de panos
esvoaçantes que entre num espelho d’água, mergulhe a cabeça e saia com as mãos
unidas em agradecimento à luz universal? Assim são os seguidores do Raul, ou
pelo menos o estereótipo que fazemos deles. “Mergulhar em si mesmo significa
assumir as escolhas feitas e principalmente vive-las de modo intenso de forma
que exista libertação de toda forma que aliena o homem.” (Rollo May)
Toda
vez que eu sinto o paraíso
Ou me
queimo torto no inferno
Eu
penso em você meu pobre amigo
Que
só usa sempre o mesmo terno
Nesta semana
vi “Raul – O Início, O Fim e o Meio” e saí meio grogue. Além da deliciosa experiência que o filme proporcionou a mim, que vivi os anos Raul, e à minha
filha adolescente, que viveu os anos Xuxa, que foi comigo ao cinema (minha
filha, não a Xuxa), o filme me fez lembrar que Raul não é
apenas grande roqueiro, um grande músico, um grande artista. Raul é um mito. A
cena que mostra a passeata anual em memória de Raul me intrigou. Não são
algumas pessoas, nem 100 nem 200, é uma multidão! Além dos tradicionais Raul-covers
e dos contemporâneos do maluco-beleza, tem ali gente muito nova. Todos cantando
músicas do Raul. Fazem essa homenagem todos os anos. Que fenômeno é esse? Que
outro ídolo brasileiro, de todas as áreas, música, cinema ou esportes, tem
tantos fãs, tantos seguidores capazes de fazer algo semelhante?
É hora de confessar: não sou fã e nunca tive
um disco do Raul (compilação não vale, pois não passa de um extrato de algumas
músicas que mais tocaram). Por isso, após o filme procurei a redenção: ouvi todas as
músicas de todos os discos do Raul. Não sei se ele, o Raul, me perdoou. Mas eu
sim, me perdoei. É bem verdade que perdi muito não conhecendo antes as maravilhas do
Raul, mas explorá-las agora está me permitindo uma paixão absolutamente nova,
uma viagem intensa (fiz uma compilação com 30 músicas que eu, e talvez quem não é fã, não conhecia, e as 30 são absolutamente sensacionais, letras, melodias, performance, tudo). Outra vantagem de não ter conhecido antes é que, do jeito
que eu sou, poderia estar hoje usando jeans surrado, erguendo os braços e
gritando vivas à sociedade alternativa. Isso se eu não estivesse tomando
banhos no chafariz da praça e agradecendo à luz universal.
E é por aí
que, creio, passei a entender o fenômeno Raul, não sem a ajuda de Rollo May e
de outras consultas filosóficas. Veja isto:
Um motorista de ônibus do Bronx, certo dia, saiu à
esmo com o ônibus vazio e só foi apanhado pela polícia dias depois, na Flórida.
Explicou que, cansado de dirigir na mesma linha diariamente, decidira viajar.
Enquanto o traziam de volta, a companhia em que trabalhava não sabia o que
resolver a seu respeito – se devia ou não puni-lo. Quando chegou ao Bronx
estava célebre. Uma multidão de pessoas, que jamais o vira, estava a sua
espera. As pessoas se identificaram com o vazio do motorista do Bronx e vieram
confirmar essa identificação formando um grupo solidário, cuja mensagem era
nítida: Eu sinto a mesma coisa e sofro pelo mesmo motivo, mas você teve a
coragem de dizer fazer alguma coisa diferente. Pronto! O motorista
transformou-se em herói.
A angústia é
de todos, mas raríssimos se rebelam. Aí que entra o Raul: sua mensagem era
libertária, consistente e universal. Raul era um maldito, falava o que bem
entendia, inclusive, e especialmente, coisas que eram agressivas ao sistema
político e social. Falava de sua busca por si mesmo, da liberdade de ser quem é
e não espelho dos outros.
Se você sente receio do
inferno
Do fogo eterno, de deus, do mal
Do fogo eterno, de deus, do mal
Eu
sou estrela no abismo do espaço
O que eu quero é o que eu penso e o que eu faço
Onde eu tô não há bicho-papão
Eu vou sempre avante no nada infinito
Flamejando meu rock, o meu grito
Minha espada é a guitarra na mão
O que eu quero é o que eu penso e o que eu faço
Onde eu tô não há bicho-papão
Eu vou sempre avante no nada infinito
Flamejando meu rock, o meu grito
Minha espada é a guitarra na mão
Raul, com sua voz
chata e renitente, deu um discurso para os angustiados, para os inconformados,
para os tímidos, para os esquisitos, para os rebeldes, para quem não consegue ou não quer se enquadrar. Mas fez muito mais do que isso: como
sua música era ao mesmo tempo popular e excepcionalmente criativa, enfim, de
altíssima qualidade; como sua personalidade e sua figura era altamente performática
e conectada com seu tempo, Raul acabou caindo nos braços da mídia. Ou seja: era
ao mesmo tempo um maldito e um queridinho da mídia.
Desde
aquele tempo enquanto o resto da turma se juntava pra bater uma bola!
Eu
pulava o muro, com Zézinho no fundo do quintal da escola
Com Raul na
crista da onda, os deslocados em geral puderam responder às críticas: “enquanto
você me critica eu tô no meu caminho”. A partir de Raul, os angustiados puderam
pular o muro do fundo do quintal da escola. "Se o cara que todos gostam, o cara do chacrinha, o cara do Fantástico, fala que a gente tem que ser diferente, quem é você prá me criticar"? Duvidam que Raul era a glória, sobrinhos do Tio Moa? Pois saibam que por muitos anos as músicas novas do Raul eram
anunciadas durante toda a semana para estrearem no Fantástico como a atração da
semana.
Vai!
Vai! Vai!
E
grita ao mundo Que
você está certo
Você
aprendeu tudo Enquanto
estava mudo
Agora
é necessário Gritar
e cantar Rock
E
demonstrar o teorema da vida
Raul fez todos
cantarem com ele sua busca por si mesmo, sua diferença. Raul deu sentido à vida
de muita gente. Deu até uma oração, Ave Maria da Rua:
Não
estou cantando só
Cantamos
todos nós
Mas
cada um nasceu
Com a
sua voz,
Pra
dizer, pra falar
De
forma diferente
O que
todo mundo sente
Para quase finalizar: considere-se um lixo se perder o filme, obrigatório
para quem gosta de música, de arte, de mídia, de fenômenos sociais e de uma boa
história. Não é um filme apenas para quem gosta de Raul. Para vocês, sobrinhos
do Tio Moa, que não viveram os anos Raul Seixas e só conhecem algumas de suas
músicas mais tocadas, o documentário dirigido por Walter Carvalho é uma
diversão garantida; você vai conhecer um cara interessantíssimo, vai rir e,
eventualmente, vai chorar. Além da diversão, vocês terão como bônus um tesouro,
se sua curiosidade o levar a garimpar as jóias do baú do Raul. Raul, na tela, explode, lindíssimo e poético, em jorros de sons e imagens. Veja o trailer aí em baixo.
A escolha apresenta ao homem uma grande gama de
possibilidades, que o leva a viver a angústia mais profunda de todas, a de
escolher nas possibilidades. As possibilidades,
não se sabendo o resultado de suas escolhas, levam ao desconhecido. Quando
ocorre esta entrega real ao desconhecido o homem no final do processo encontra
sua felicidade e passa então a viver sua existência feliz e com muito mais
intensidade. (Rollo May)
Quer saber de uma coisa? Acho que vou deixar minha barba
crescer e pegar no fundo do armário aquele jeans que não tinha mais coragem de
usar. Mas sosseguem, que dificilmente usarei panos esvoaçantes e não tenho a mínima vontade de entrar no
primeiro chafariz que encontrar.
Não pensa que a cabeça aguenta se você parar
Há uma voz que canta, uma voz que dança, uma voz que
gira
Bailando no ar