domingo, 15 de abril de 2012

A VOZ CHATA E RENITENTE DE RAUL


Apesar dessa voz chata e renitente 
Eu não tô aqui Prá me queixar
E nem sou apenas o cantor
Rollo May, em seu livro “O Homem à Procura de Si Mesmo” diz que o grande problema do homem é o vazio. As pessoas não sabem o que desejam, e sim o que os outros dizem que devem desejar. Assim passam a vida, comportando-se da forma dita correta, normal, aceita plenamente pelos outros. Poucos percebem que não passam de um espelho do que os outros esperam deles. Desses, raros são os que tomam a atitude de se perguntar “ei, cadê o meu self?” e sair em busca de si mesmos. 
Entretanto, alguns desses “raros poucos” não conseguem conviver simultaneamente com os dois papéis (o self-hunter, que procura seu eu e o do espelho, que consegue agradar à maioria). Fazer o que a sociedade espera e comportar-se de acordo com o padrão avilta de tal forma o núcleo do ser, que alguns simplesmente não aguentam se comportar como a maioria, abdicando de serem “normais” para não serem sufocados. Somente assim conseguem afirmar-se como indivíduos, e não como espelho. Não que saibam exatamente o que são, mas sabem que não são o que outros querem que sejam, e isto já é um bom começo para encontrar-se.
Não sei onde eu to indo
Mas sei que eu to no meu caminho
Enquanto você me critica, eu tô meu caminho
Os “malucos-beleza” não são as pessoas mais, digamos, desejadas pelas rodas da sociedade, incluindo a roda em que vivemos, eu, tu e o rabo do tatu. Ou vai negar que torce a cara quando vê um cara com barba mal cuidada, jeans todo surrado na rua erguendo os braços e gritando “viva a sociedade alternativa”? Jura por deus, ops, por Deus que você não ri de uma mulher vestida de panos esvoaçantes que entre num espelho d’água, mergulhe a cabeça e saia com as mãos unidas em agradecimento à luz universal? Assim são os seguidores do Raul, ou pelo menos o estereótipo que fazemos deles. “Mergulhar em si mesmo significa assumir as escolhas feitas e principalmente vive-las de modo intenso de forma que exista libertação de toda forma que aliena o homem.” (Rollo May)
Toda vez que eu sinto o paraíso
Ou me queimo torto no inferno
Eu penso em você meu pobre amigo
Que só usa sempre o mesmo terno
Nesta semana vi “Raul – O Início, O Fim e o Meio” e saí meio grogue. Além da deliciosa experiência que o filme proporcionou a mim, que vivi os anos Raul, e à minha filha adolescente, que viveu os anos Xuxa, que foi comigo ao cinema (minha filha, não a Xuxa), o filme me fez lembrar que Raul não é apenas grande roqueiro, um grande músico, um grande artista. Raul é um mito. A cena que mostra a passeata anual em memória de Raul me intrigou. Não são algumas pessoas, nem 100 nem 200, é uma multidão! Além dos tradicionais Raul-covers e dos contemporâneos do maluco-beleza, tem ali gente muito nova. Todos cantando músicas do Raul. Fazem essa homenagem todos os anos. Que fenômeno é esse? Que outro ídolo brasileiro, de todas as áreas, música, cinema ou esportes, tem tantos fãs, tantos seguidores capazes de fazer algo semelhante?
É hora de confessar: não sou fã e nunca tive um disco do Raul (compilação não vale, pois não passa de um extrato de algumas músicas que mais tocaram). Por isso, após o filme procurei a redenção: ouvi todas as músicas de todos os discos do Raul. Não sei se ele, o Raul, me perdoou. Mas eu sim, me perdoei. É bem verdade que perdi muito não conhecendo antes as maravilhas do Raul, mas explorá-las agora está me permitindo uma paixão absolutamente nova, uma viagem intensa (fiz uma compilação com 30 músicas que eu, e talvez quem não é fã, não conhecia, e as 30 são absolutamente sensacionais, letras, melodias, performance, tudo). Outra vantagem de não ter conhecido antes é que, do jeito que eu sou, poderia estar hoje usando jeans surrado, erguendo os braços e gritando vivas à sociedade alternativa. Isso se eu não estivesse tomando banhos no chafariz da praça e agradecendo à luz universal.
E é por aí que, creio, passei a entender o fenômeno Raul, não sem a ajuda de Rollo May e de outras consultas filosóficas. Veja isto:
Um motorista de ônibus do Bronx, certo dia, saiu à esmo com o ônibus vazio e só foi apanhado pela polícia dias depois, na Flórida. Explicou que, cansado de dirigir na mesma linha diariamente, decidira viajar. Enquanto o traziam de volta, a companhia em que trabalhava não sabia o que resolver a seu respeito – se devia ou não puni-lo. Quando chegou ao Bronx estava célebre. Uma multidão de pessoas, que jamais o vira, estava a sua espera. As pessoas se identificaram com o vazio do motorista do Bronx e vieram confirmar essa identificação formando um grupo solidário, cuja mensagem era nítida: Eu sinto a mesma coisa e sofro pelo mesmo motivo, mas você teve a coragem de dizer fazer alguma coisa diferente. Pronto! O motorista transformou-se em herói.
A angústia é de todos, mas raríssimos se rebelam. Aí que entra o Raul: sua mensagem era libertária, consistente e universal. Raul era um maldito, falava o que bem entendia, inclusive, e especialmente, coisas que eram agressivas ao sistema político e social. Falava de sua busca por si mesmo, da liberdade de ser quem é e não espelho dos outros.
Se você sente receio do inferno
Do fogo eterno, de deus, do mal
Eu sou estrela no abismo do espaço
O que eu quero é o que eu penso e o que eu faço
Onde eu tô não há bicho-papão
Eu vou sempre avante no nada infinito
Flamejando meu rock, o meu grito
Minha espada é a guitarra na mão
Raul, com sua voz chata e renitente, deu um discurso para os angustiados, para os inconformados, para os tímidos, para os esquisitos, para os rebeldes, para quem não consegue ou não quer se enquadrar. Mas fez muito mais do que isso: como sua música era ao mesmo tempo popular e excepcionalmente criativa, enfim, de altíssima qualidade; como sua personalidade e sua figura era altamente performática e conectada com seu tempo, Raul acabou caindo nos braços da mídia. Ou seja: era ao mesmo  tempo um maldito e um queridinho da mídia.
Desde aquele tempo enquanto o resto da turma se juntava pra bater uma bola!
Eu pulava o muro, com Zézinho no fundo do quintal da escola
Com Raul na crista da onda, os deslocados em geral puderam responder às críticas: “enquanto você me critica eu tô no meu caminho”. A partir de Raul, os angustiados puderam pular o muro do fundo do quintal da escola. "Se o cara que todos gostam, o cara do chacrinha, o cara do Fantástico, fala que a gente tem que ser diferente, quem é você prá me criticar"? Duvidam que Raul era a glória, sobrinhos do Tio Moa? Pois saibam que por muitos anos as músicas novas do Raul eram anunciadas durante toda a semana para estrearem no Fantástico como a atração da semana.
Vai! Vai! Vai!
E grita ao mundo Que você está certo
Você aprendeu tudo Enquanto estava mudo
Agora é necessário Gritar e cantar Rock
E demonstrar o teorema da vida
Raul fez todos cantarem com ele sua busca por si mesmo, sua diferença. Raul deu sentido à vida de muita gente. Deu até uma oração, Ave Maria da Rua:
Não estou cantando só
Cantamos todos nós
Mas cada um nasceu
Com a sua voz,
Pra dizer, pra falar
De forma diferente
O que todo mundo sente
Para quase finalizar: considere-se um lixo se perder o filme, obrigatório para quem gosta de música, de arte, de mídia, de fenômenos sociais e de uma boa história. Não é um filme apenas para quem gosta de Raul. Para vocês, sobrinhos do Tio Moa, que não viveram os anos Raul Seixas e só conhecem algumas de suas músicas mais tocadas, o documentário dirigido por Walter Carvalho é uma diversão garantida; você vai conhecer um cara interessantíssimo, vai rir e, eventualmente, vai chorar. Além da diversão, vocês terão como bônus um tesouro, se sua curiosidade o levar a garimpar as jóias do baú do Raul. Raul, na tela, explode, lindíssimo e poético, em jorros de sons e imagens. Veja o trailer aí em baixo.
A escolha apresenta ao homem uma grande gama de possibilidades, que o leva a viver a angústia mais profunda de todas, a de escolher nas possibilidades. As possibilidades, não se sabendo o resultado de suas escolhas, levam ao desconhecido. Quando ocorre esta entrega real ao desconhecido o homem no final do processo encontra sua felicidade e passa então a viver sua existência feliz e com muito mais intensidade. (Rollo May)
Quer saber de uma coisa? Acho que vou deixar minha barba crescer e pegar no fundo do armário aquele jeans que não tinha mais coragem de usar. Mas sosseguem, que dificilmente usarei panos esvoaçantes e não tenho a mínima vontade de entrar no primeiro chafariz que encontrar.
Não pensa que a cabeça aguenta se você parar
Há uma voz que canta, uma voz que dança, uma voz que gira
Bailando no ar

segunda-feira, 2 de abril de 2012

OLHA A SEMANA SANTA AÍ, GENTE!


Sempre gostei de igrejas. Não há cidade que visito que não acabe entrando numa igreja, principalmente se for antiga. Gosto daquele lugar enorme, quase sem ninguém, e daquele silêncio, ideal para contemplar a beleza da arquitetura e da decoração. Adoro aqueles painéis em que o Jim Caviesel aparece carregando uma cruz. Transmitem sofrimento e paz ao mesmo tempo. Sofrimento pela dor por que passou, mas paz pelo triunfo que teve através dos tempos, afinal, os painéis retratam o que supostamente aconteceu há mais de dois mil anos.

Um parêntese: perdoem-me os religiosos fervorosos pela expressão “supostamente”. Aderi à moda. Tudo agora é suposto. “O suposto assassino da suposta vítima, supostamente teria sido o responsável pelo suposta morte”. Exagero? Ontem ouvi na CBN: “o suposto suspeito...” Que beleza! O cara está sendo investigado, o delegado disse que é grande a possibilidade de ser ele mesmo o assassino; o cara é suspeitíssimo, e o jornalista vem me dizer que é um suposto suspeito? Suposto assassino, vá lá, mas suposto suspeito... coisas da CBN local e de seus fraquíssimos jornalistas.

Voltando às igrejas, houve um tempo em que eu e minha terceira gestora (adoro expressões do mundo corporativo, fazem-me sentir que o Max Gehringer é meu amigo) costumávamos entrar numa igrejinha de uma travessa da Felipe Schimidt, em Floripa, só para ficar sentado lá. Eu ficava quieto, relaxando naquela paz encrustada no meio da balbúrdia do centro da cidade. Ela talvez orasse. Orar parece dar certo: depois que nos separamos, ela encontrou a felicidade, o que aconteceu por mera coincidência e não por relação de causa-efeito... creio.

Os que me conhecem ao vivo e a cores (embora eu ande meio pálido), bem como os que me conhecem apenas de fuçar neste prestigiado blógui, devem estar se perguntando por que estarei eu falando de religião, ainda que saibam que estamos entrando na semana santa. Pois, em verdade vos digo, não há assunto mais apropriado para o momento: depois de uma profundíssima alteração em minha vida, que me tirou a atenção da criação literária e que me fez focar (oi Max, tudo bem?) na nobre tarefa e no prazer de ser pai, período este em que parecia que o blógui havia morrido, eis que estou aqui, ressurgido, ressuscitado! Sim, caros leitores: em plena semana consagrada à paixão e à ressurreição, O Cobra Parada está de volta!

E a semana começou barulhenta: depois de dormir prá lá das 4 horas de uma abafada madrugada, eis que, exatamente às oito da manhã, sou acordado por um milhão de decibéis nos meus ouvidos. Era a oração que ele, ops, Ele, nos ensinou, aquela que na missa a gente deve rezar de mãos dadas, ou com as mãos voltadas para cima, não sei ao certo. O fato é que o pai, ops, o Pai Nosso me deu um susto gigantesco. Levantei desorientado, sem saber de onde vinha aquele som altíssimo. Por um átimo, pensei ter morrido e estar ouvindo as trombetas celestes. Mas estava em meu quarto. Fui à janela. Era uma procissão que passava na rua. Algumas centenas de pessoas atrás de um carro de som. Sim, gente, CARRO DE SOM!!! Trio Elétrico do Senhor! Já não chega os baianos cantando axé? Já não basta os sindicalistas gritando palavras de ordem intercaladas com músicas da Mercedes Sosa e Milho aos Pombos, do Zé Geraldo? Já sei: como os sindicalistas agora estão dirigindo o país, devem ter alugado os carros de som para outros fanáticos.

O fato é que me lembrei, cheio de nostalgia, das procissões noturnas que passavam em frente da minha casa, numa de minhas vidas passadas (aqui a conotação não é espírita: penso na minha infância e nos casamentos que tive como várias vidas diferentes que tive, já que eu era uma pessoa diferente em cada uma delas). Nas procissões da minha vida de criança, que realmente mexiam comigo e me davam, por instantes, vontade de me espiritualizar, as pessoas seguravam velas e estandartes, entoavam cânticos sem microfones nem trio-elétrico. Só as vozes dos seguidores da procissão, e baixinho, em respeitoso volume: nada de gritos ou cantos gospel com prolongados gritos à Whitney Houston, que deus, ops, Deus a tenha. Era muito gostoso ouvir aquilo (não a Whitney Houston, mas as procissões).

Mas estamos na era do espetáculo e do exagero. Daniel, um amigo, fica puto quando vai a um show em que o músico toca para si mesmo, e não para a platéia, como ocorreu no do Hélio Delmiro na última sexta. Pois em procissão deveria ser exatamente assim: as pessoas deveriam rezar para si e não para acordar quem está dormindo. Mas o que esperar deste mundo do espetáculo, em que existe até Drive Thru de oração (sempre passo em frente a esse aí, da foto – qualquer dia vou parar, prá ver qual é), senão uma luta com todas as armas pelos fiéis?

Lembrei-me também daquela do bêbado que, do bar da esquina, observa a procissão que vem com o altar ornado em verde e rosa. Ele grita “olha a mangueira aí, gente”. O Padre solta impropérios contra o bêbado, enquanto a santa bate no galho da mangueira e se espatifa no chão. (não sei por que, mas imaginei o meu praticamente amigo Max Gehringer lendo essa piada com seu jeito de falar de professor de biologia do primeiro grau, e explicando depois a moral da história – é incrível, mas ele ganha dinheiro assim). 

O fato é que estamos em plena semana santa, semana da ressurreição de Cristo e deste blógui, semana em que assistiremos pela enésima vez todos aqueles filmes sobre a vida de Jesus. Impressionante como gostamos (eu, pelo menos, adoro) de ver esses filmes, mesmo sabendo que o herói morre no final. Ontem comprei A Paixão de Cristo, do Mel Gibson (12 reais no Wall Mart), que só vi uma vez, quando foi lançado, mas que me impressionou muito. É um baita filme, embora difícil de assistir pela imensa violência que, a meu ver e ao ver do galã australiano, deve ter acontecido mesmo. Falando em realidade, os personagens falam a língua que se falava na época, o hebraico. De qualquer forma, a história de Jesus é uma bela história, que acalenta gerações e gerações por milênios, e agora, mais recentemente, acalenta também o bolso dos donos de igrejas lucrativas, comerciantes e fabricantes de chocolate. Que venha a semana santa, que por sinal culmina com o feriadão da Páscoa, que aguardo com ansiedade. Páscoa é transformação!
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