segunda-feira, 22 de outubro de 2018

LEGALIZE JÁ – O AMOR EM TEMPOS DE CÓLERA


Um grava fitas cassete, não quer tomar o coquetel e por isso tem pouco tempo de vida; o outro vende camisetas de bandas famosas de punk e hard rock na rua, é expulso de casa e a namorada está grávida. Além de serem dois ferrados, mais uma coisa em comum: “a polícia atrás deles e eles no rabo dela”. Skunk é negro e pobre - polícia nele; Marcelo ouve "ói o rapa" e sai correndo, carregando o varal de camisetas. Assim eles se encontram; na confusão, o caderno em que Marcelo escreve versos fica com Skunk, que procurava letras para suas bases de rap.


Está em cartaz Legalize Já – Amizade Nunca Morre. O subtítulo, insuportável mania brasileira, aqui tem uma função: mostra que o objetivo do filme não é fazer apologia da legalização da maconha ou contar a história da banda polêmica e porradona. Aliás, quando a banda se forma mesmo, o filme acaba. Quem diria que a origem do Planet Hemp daria um tocante filme sobre amizade e amor? Amor Ágape, diria o Serjão, para fazer diferença entre o amor espiritual e o desejo físico, que caracteriza o amor Eros. No caso, vale mais falar do amor Philos, o da afinidade mental e cultural.

Enfim, o que importa é que o filme é um carinho na loucura, uma trégua nestes tempos de injustificável cólera – só de mencionar que a cólera é injustificável, haverá reações coléricas, aposto. Dane-se! Legalize Já é um filme humano, demasiadamente humano.


Apoiados por Brennand, o argentino dono de um boteco no centro sujo do Rio, a amizade vai se sedimentando, tal como a ideia do que querem dizer com a música. 


Apoiado num ótimo quarteto de atores (além da dupla, tem o Brennand, delicioso personagem do ator argentino, e a namorada de Marcelo), o filme evolui, ora com cenas densas, ora com bom humor - engraçadíssima a cena em que Marcelo, aterrorizado, vê um clipe com algo tipo boquinha na garrafa na TV da loja em que está trabalhando. Ah, é claro: tem boa música – além da trilha, as cenas musicais são delirantes – os atores estão perfeitos nos vocais e gestual.

Quando a banda apenas começava a ganhar estrada, aí termina o filme, a morte de Skunk retratada com delicadeza, numa sequência final tocante e inteligente. No ótimo take final, camisetas do Planet Hemp num varal, dizem por si só sobre a vitória de Skunk. O filme é uma homenagem feita pela ótica do sobrevivente, Marcelo D2, que participou da produção e diz “o Skunk foi um anjo que passou na minha vida e mudou ela completamente, eu vivo um sonho que não é meu. Isso tudo aqui não era para mim, era para ele'.


Skunk, o verdadeiro
O resto é história, é o Planet Hemp, é Legalize Já, o triunfo do amor e da amizade, da beleza e da justiça sobre o dragão da maldade. E como isso, disparadamente, é o que mais importa, vou rever o filme mais uma ou duas vezes nesta semana insuportável...

domingo, 7 de outubro de 2018

O CÉU DE NILCE E AMELIE TEM MAIS ESTRELAS QUE O DE GALILEU



Amelie era uma cachorrinha mui da sui generis: gostava de pessoas, até de companhia, mas não era tida a abraços, muito menos a colo. Não gostava de contato físico. Desde pequeniníssima, só mamava na Lilica quando os irmãozinhos deixavam suas tetas e o caminho ficava livre.

Sabe o Ricky Gervais, no Ghost – Um Espírito Atrás de Mim, que é um dentista que escolheu a profissão por ser a única em que o cliente não pode falar enquanto ele trabalha? A Thea Leoni o convida a ir a uma inauguração, diz “vai ser legal, vai ter muita gente”, “agora mesmo é que não vou”, “não gosta de multidão?”, “não, nem das pessoas que a compõem”. Então, assim era a Amelie. Ficava no nosso colo, o colo dos donos, não mais que dois minutos e saía logo pro seu canto. Mas no colo da Nilce, uma amiga nossa, a Amelie ficava. E ficava um tempão! Esquecia da vida...

A gente sempre pegava a Nilce para sair, ir a um restaurante ou ao cinema. Chegando em seu prédio, ligávamos e ela descia, algumas vezes com uma bolsa bem maior que a comum. “Gente, tô levando umas roupas, vai que vocês me convidam pra dormir na casa de vocês”. Mesmo que a gente não convidasse, ela acabava ficando em casa! Claro, ela precisava ter com quem conversar! Porque, se tem uma coisa verdadeira nesta vida, é que a Nilce falava! Santo Deus, Virgem Santíssima! Ela falava pelos cotovelos, pelos joelhos e por tudo que é articulação. Sabe gente que não consegue pensar em voz baixa? Esta era a Nilce, uma pessoa que tinha tudo para ser insuportável... mas não conseguia. A gente gostava muito dela... E a Amelie também. Elas se identificavam. Um dia, ela foi pra casa dela e a Aline reclamou, “dá uma saudade da Nilce, não dá?”. O pior é que dava mesmo! Como é que pode?

Muito antes desse tempo, mal nos conhecíamos, e ela chegou pra Aline e disse que minha bunda era gostosa... Imagina, leitor desavisado, alguém elogiar sua bunda para sua namorada... Mas até uma coisa dessa ela fazia com simpatia. Claro que alguém que elogia a bunda da gente, ou melhor, alguém que elogia especificamente a minha bunda, merece um lugar no céu.

Quando víamos TV em casa, a Aline dormia logo e a Nilce ficava falando, é claro. “Não precisa responder não, viu, Moacir, pode prestar atenção no filme, que eu não ligo”, e continuava falando. Aquela mulher tinha algo inexplicável, um jeito de ver as coisas, um jeito espontâneo, uma alma de silicone, que pode esquentar o quanto for, que não queima, não machuca. A Nilce fazia a gente se sentir bem. E a Amelie lá, quietinha, no colo dela. Cachorro entende a alma das pessoas.

Nilce não cobrava nada, não exigia isto ou aquilo de ninguém, não criava expectativas e, assim, nos deixava absolutamente à vontade para exercermos nossas esquisitices como bem entendêssemos. E isso não é pouco! Parece que desfrutava cada minuto, que botava horas no colo, que alentava dias... Ela transitava na periferia do óbvio. Enfim, não era muito deste mundo, não.

Amelie se foi há pouco. Logo em seguida, a Nilce a seguiu. Ou foi o contrário? Nem lembro mais. 

Que todos os cachorros merecem o céu, já sabemos, mas onde eles ficam por lá? Será que no céu existe um lugar específico para gente muito especial? Ok, as leis recebidas na tábua de Moisés, e sei lá mais que outras leis que inventaram para classificar as pessoas na hora da travessia, dizem que quem as segue, vai para o céu. Digamos que isso seja verdade, e espero mesmo que seja. Mas, venhamos e convenhamos: imagina que porre seria ficar a eternidade inteirinha ao lado daqueles que apenas não pecam. O papo seria a bem-aventurança eterna, o cultivo de lírios do vale, o triunfo do bem sobre o mal, todos desfrutando de frozen iogurte e saladas com sementes de chia e linhaça, que servem de graça no céu. Meu Deus, me poupe!

Estou convicto de que o céu guarda um lugar específico para gente que é especial demais e que faz este mundo ser mais gostoso de ser habitado. É neste lugar que a Nilce deve estar, com a Amelie no colo, esperando por aqueles de quem ela se cercava.

Saiba, cara Nilce, que pretendo te fazer esperar muito, muito, muito tempo, ok? Por enquanto, vai conversando aí com a Amelizinha – ela não vai te responder nada, mas estará adorando te ouvir.

domingo, 16 de setembro de 2018

VIAGEM ALUCINANTE: A TÁBUA DE ESMERALDA

Pedi você pra esperar 5 minutos
Porque você não sabe, você não sabe, você não sabe e nunca vai saber...
(será que ela não sabe que eu fico acordado pensando nela, todo dia toda hora, apressado, pensativo, desconfiado, olhando pra todos os lados)
Errare humanum est
Já consultei os astros (eles são discretos e silenciosos, são pacientes, assíduos e perseverantes)
Ela já se encontra a caminho voando na sua nave maternal feita de um metal miraculoso
Com muito amor e flores e música e música
Olha que rosa lindo, azul turquesa se desfolhando sob os singelos cravos
Tu terás por esse meio a glória do mundo e toda obscuridade fugirá de ti
Eu vou torcer pela paz, pelo bem estar, pela compreensão,
Pelo meu amigo que sofre do coração
Eu quero ver, eu quero ver, eu quero ver...
Jorge Duílio acordou tarde e abriu a janela. Queria ver como estava o dia. Gostava de dias ensolarados, mas a manhã estava cinzenta e chuvosa, aquela chuva meio preguiçosa, que não faz muita força para cair. Jorge Duílio tomou um longo banho para despertar, comeu algo, tomou uma coca e saiu rumo à Estrada do Itapicuru, 75, no Alto da Boa Vista, Rio de Janeiro. Como por mágica, assim que saiu se casa, surgiu o sol.
Os deuses astronautas estavam com ele. “É hoje!”, pensou, agora mais alegre. Já tendo gravado 10 discos, não tinha maiores pretensões a não ser a de se divertir com uns amigos fazendo algo extremamente prazeroso: gravar as músicas que havia composto com tanto interesse e cuidado. Não imaginava que, a partir daquela tarde, no estúdio da Phonogram, gravaria o mais importante álbum brasileiro de todos os tempos.
Capa original do disco lançado em 1974
Lá em cima, abrindo este pôsti, uma mistura de trechos de todas as músicas do álbum A Tábua de Esmeralda, de Jorge Duílio Lima Meneses, àquela época Jorge Ben, hoje Benjor. O icônico disco foi concebido sob forte influência daquela época. O país estava doido pelos enigmas turbinados pelo Fantástico, O Show da Vida, que estreara com enorme sucesso e repercussão no ano anterior: Eram os Deuses Astronautas, alquimia, a conquista do espaço, as pirâmides do Egito, exorcismo (insuflado pelo o filme O Exorcista, com reportagens em vários domingos). Jorge Ben estava doidão pelo espaço, pelos deuses astronautas e, sobretudo, pelos alquimistas, e o disco mistura tudo isso e mais alguma coisa. Hermes Trismegisto é o autor do tratado de alquimia que está inteiro na letra de uma música; Paracelso (que visitava pacientes com uma echarpe multicolorida) é o Homem da Gravata Florida; Nicolas Flamel, que ilustra a capa, é O Namorado da Viúva
Jorge Ben e André Midani
Todas essas influências não ficaram só na temática do disco – foram para os arranjos, melodias e forma de cantar. Tudo é alquimia, mágica, experimentação e psicodelia. Foi difícil que a Phillips o autorizasse a gravar um disco assim. Queriam o de sempre, o ‘samba esquema novo’, que vendia tão bem. Pra quê inventar? André Midani, o gerente da gravadora, foi quem bancou. E lá estava Jorge, no estúdio, pronto para começar a primeira gravação, todos a postos...
Salve!...
Não, não... Senta... Senta. Não, não, senta. Não, não. Pra sair legal. Senta.
Então, tem que dançar, dançando. Dançando.
Por que raios foram mantidos, no início da música que abre o álbum, os esporros que Jorge Ben deu na turma?  Provavelmente porque ficou divertido. O disco é, ao mesmo tempo, leve e denso, alegre e melancólico, pacífico e guerreiro. É um bate assopra danado, uma montanha russa emocional. 
"Pode isso, tio Moa?" Uai, se ele fez...
É “pedi você pra esperar cinco minutos só, você foi embora sem me atender” numa música e “põe estrelas em meus olhos, música em meus ouvidos, põe alegria em meu corpo” noutra.  
É ‘há uma princesa à venda, que veio junto com seus súditos acorrentados em carros de boi’ numa, e ‘essa gravata é um jardim suspenso dependurado no pescoço de um homem simpático e feliz’ noutra.
E sai da lisérgica Magnólia, influenciada pela Barbarella Jane Fonda, para cantar com emoção o reverencial Minha Teimosia, Uma Arma Pra Te Conquistar, o melhor samba da história do mundo.
E tem o jeito de cantar macio que flutua sobre os arranjos. Canta quase como roqueiro em Os Alquimistas Estão Chegando, e como um justiceiro ameaçador em Zumbi, uma música tão visual que parece um filme do Tarantino. Não acredita? Dá uma olhada nesse vídeo que inventei de fazer...

Letras ótimas, clima alto astral, arranjos cheios de camadas e surpresas. Enfim, um disco para ouvir milhares de vezes, um disco da série ‘10 coisas para levar à ilha deserta’ e, sobretudo, da série ‘faça um favor a si mesmo’:

Deixe A Tábua... preparado para tocar (tem no Spotfy, Youtube, etc). Pegue algo bom para beber, uma soda italiana, um espumante ou sua cerveja favorita.

Envolva seus merecedores ouvidos com um fone de ouvido e peça para não ser interrompido. Deixe num volume bem generoso, que te permita ouvir as várias camadas. Agora solta o play. Boa viagem!





sexta-feira, 14 de setembro de 2018

CURTINDO A VIDA ADOIDADO

Música é um treco abstrato demais! É uma arte que a gente não vê, como um quadro ou um balé. A danada entra na gente pelos ouvidos. E é por isso mesmo, por ser tão abstrata, é que ela dá tanto prazer. A música desafia a mente: ao tentar decifrá-la para prever seus próximos acordes, estimulamos nossa fantasia e emoção – daí o prazer que a música dá. E isso também vale para o cinema. Apesar de não ser tão abstrato quanto a música, um bom filme também sabe deixar margem para abstração e abre espaços para a fantasia e emoção.

Assim como podemos ouvir uma música que adoramos umas mil vezes, também vemos alguns filmes muitas e muitas vezes... Como? Você não vê filme repetido porque já sabe o que acontece? Larga disso, rapá! Saber o que acontece num filme é o de menos. Um filme não é feito só para contar que o Nicolas Cage queria achar um tesouro, foi lá, achou e, de quebra, pegou a Diane Kruger. O filme, pelo menos os bons, entram dentro da gente, desafiam nossa mente e emocionam. Claro, nem todo filme é assim. A maioria dá pra ver uma vez só e olha lá. Mas quando um filme é bom mesmo...

O problema é que fazer um grande filme não é pra qualquer um. Fazer com que a plateia entre no filme e jogue o seu jogo exige domínio da linguagem do cinema para dar a quem vê o máximo de emoção, suspense e surpresa – enfim: diversão.

Você já viu Curtindo a Vida Adoidado, certo? De cada 10 pessoas, umas 7 já viram o filme e pelo menos 4 o viram várias vezes, mesmo sabendo que o Ferris Buller vai se fingir de doente para matar a aula, sair com os amigos e voltar pra casa sem que os pais descubram nada. Ainda assim, esse filme conseguiu algumas proezas: ser popular, não envelhecer e ter fãs de todas as idades – gente, esse filme passa na sessão da tarde há mais de 30 anos! Por quê? Simples: é uma obra prima! Todo o filme é planejado, filmado e montado usando os recursos para criar suspense, alegria, beleza, riso e emoções.

Mas, como aqui no Cobra Parada a gente mata a cobra e mostra o pau, vamos logo aos tais recursos que estão por trás de Curtindo a Vida Adoidado. Quem não quiser se chatear com linguagem cinematográfica, tchau! Aos que ficam, boa viagem. Em tempo: não vou falar das qualidades mais óbvias, como a atuação genial do protagonista ou a magnífica cena da parada, ok? Só destaco algumas cenas que são exemplo do domínio do diretor e roteirista John Hughes sobre os recursos e de sua criatividade para encontrar sempre a melhor forma de montar uma cena para que ela dê o maior prazer possível à plateia.


§  É um filme musical!Não, fica frio, aqui “musical” não é gênero. Sabe quando um filme é poético e não significa que o filme é em versos? A música é sempre importante nos filmes de John Hughes, mas neste ela é mais ativa, fresca e vigorosa. E nem é que todas sejam maravilhosas, mas é incrível é como ele conseguiu juntar músicas de várias décadas e gêneros, mais dos 80’s, claro, e ainda assim obter um todo harmônico.
§  Não é filme de adolescentes, é sobre adolescentes. Seus dilemas não são preguiçosos, tipo ‘com quem vou ao baile?’. Os dilemas ali são os que carregamos por toda vida. O filme ensina que, para falar de algo profundo, não é preciso ser chato.

§  Texto primoroso. Não sobram nem faltam palavras. Tudo que é dito se refere aos dilemas de que trata o filme ou serve à trama. Há cenas em que nada é dito, porque não precisa, como a da bolsa de valores, onde os gestos ironizam o símbolo do capitalismo selvagem e questionam seu sentido, ou a do museu, que... Depois falo dela.

§  Plasticamente belíssimo. Cada imagem, cada corte, cada tomada de câmera cria beleza visual ou ilustra o que os personagens estão vivendo. 

Melhor parar de falar sobre isso, porque as imagens do filme valem muito mais do que as quarenta e cinco palavras deste parágrafo. Veja essa tomada, aí do lado, da cena do museu;



§  Montagem e roteiro:
1. Ferris deitado, péssima aparência. Seus pais o mandam ficar na cama, mas ele diz que tem prova e quer se dedicar aos estudos para “poder desfrutar de uma vida de trabalho”. Corte para os pés de uma adolescente, um deles batendo contra o chão, gestual de ‘você não me engana, seu safado!’, depois para as mãos na cintura, dedos nervosos. Hughes usa 4 segundos para nos contar, de forma criativa, que Ferris está mentindo, que sempre faz isso e que sua irmã sabe. Dizer muito, com muito pouco, e deixar a interpretação pra gente é dominar a linguagem.
2. Ferris desliga o telefone, volta ao assunto que importa, seu amigo, e diz à câmera: “aposto que neste momento o Cameron está no carro, decidindo se vem ou não”. Corta, close em Cameron, no carro, decidindo se vai ou não: “ele vai ficar me ligando, vai ligar até eu ir!”. Sem ser explicadinho, sem fala do tipo “somos amigos há 10 anos e eu te conheço demais...”. São 15 segundos de falas curtas e cortes, e sabemos o quanto são amigos, o quanto eles sabem como o outro pensa e faz e, de quebra, trás a plateia para dentro da relação.
3. Rooney, o inspetor, foi a um bar para flagrar Ferris e provar que ele não está doente, mas não o encontra. Na TV, em segundo plano, um jogo de beisebol. Rooney abaixa a cabeça para limpar os olhos enquanto, na TV, a câmera mostra Ferris pegando uma bola que foi rebatida e caiu na torcida. Quando Rooney levanta a cabeça, a TV volta ao jogo. E pronto, a cena passa para os amigos no jogo e acaba, filme que segue... O que esta cena tem de mais?... Deixa pra depois.
4. Rooney recebe telefonema do pai de Sloane (namorada de Ferris) contando que sua avó morreu e que ela precisa sair da aula. Rooney está certo de que a voz ao telefone é de Ferris passando-se pelo pai dela. Até então, nos telefonemas que já tinham acontecido, eram mostrados os dois lados, mas agora a cena só mostra Rooney, que se diverte passando um tremendo esculacho em Ferris. Enquanto isso, a secretária do inspetor vem a Rooney e diz “telefone para o senhor na outra sala, é o Ferris”. Rooney está exculachando um pai de aluno? Música clássica de terror, close em Rooney, olhos arregalados, um momento delicioso, exemplo do uso criativo de clichê. Só depois a câmera mostra o outro lado e vemos que não era o pai da Sloane, mas Cameron se passando por ele. Veja bem: se soubéssemos, antes, que era Cameron ao telefone, não haveria emoção – todo o prazer da cena foi pensarmos que era realmente o pai da aluna e que o inspetor tinha se ferrado feio. Esconder e soltar no momento certo as informações determina a reação da plateia. É a essência da arte do cinema.
5. Cenas no fundo. Mais um exemplo de não dar tudo mastigado e deixar a plateia ver as coisas por si. Enquanto uma cena está acontecendo, algo pode estar acontecendo lá atrás. Na cena em que deixam a Ferrari no estacionamento, Cameron está preocupadíssimo com o carro do pai, não gostou do cara que recebeu o carro no estacionamento. Ferris o acalma. Saem e sobem a rua. Veja ao lado: lá atrás, sem que seja dado nenhum destaque, aparece o rapaz saindo com a Ferrari . Outra: na delegacia, a irmã de Ferris discute com um drogadito, Charlie Cheen (sua estreia no cinema), cada um de um lado do sofá, bem separados. Depois, em outra tomada, a mãe está na sala do delegado. Quando ela se levanta, pelo vidro da sala podemos ver, bem la no fundo, a filha aos beijos com o tal. O filme confia na observação da plateia, não precisa conduzi-la pela mão. Não precisa enquadrar tudo o que é importante. Deixa a gente descobrir sozinho! E quando a gente vê aquilo ao fundo, nos sentimos bem, tipo "peguei", "eu vi aquilo"  

6. Ferris quer pegar a Ferrari do pai de Cameron. “Ferris, meu pai ama este carro mais que a própria vida”. Ferris responde “alguém com prioridades tão erradas não merece um carro de luxo”. E pega o carro. Um luxo de texto! Não precisa explicar mais nada, aqui se falou de materialismo, exibicionismo, falta de amor do pai  e de mais um tanto de coisa...
7. Ferris nos fala sobre o que pensa da vida. Enquanto isso, mexe com um troféu, um barbante e num aparelho de som cheio de botões, sem contar o que faz. Mais de meia hora de filme depois, enquanto Ferris está se divertindo no centro de Chicago, sua mãe volta para ver se ele está bem. Sobe à escada, e vai em direção ao quarto do filho que, sabemos, não está lá. A câmera subjetiva (o olhar da mãe) se aproxima devagar e ficamos em suspense. Quando ela abre a porta, o vê coberto, virando-se na cama, roncando. Satisfeita, fecha a porta e sai, nós ficamos aliviados e nos perguntando quem estava no quarto. Só que a mãe se lembra que Rooney a avisara que Ferris a enganava e faltava às aulas. Ela resolve voltar, para conferir. Só que desta vez a cena é mostrada não mais pelos seus olhos, mas por dentro do quarto, e vemos, os detalhes: o barbante ligando a porta a um boneco coberto na cama, o troféu servindo de contrapeso e o aparelho de som acionado e emitindo o ronco. Aí vemos que o cara é um gênio! Mas veja: em qualquer filme comum, saberíamos o que Ferris estava fazendo com o barbante e o troféu – e não haveria suspense, não teríamos nos perguntado quem estaria no quarto e mal acreditaríamos que aquela armação pudesse funcionar. Domínio da linguagem, do tempo e do roteiro para gerar suspense e dar emoção à plateia.
8. A cena do museu!!! Sem uma única fala, começa com uma escultura em primeiro plano, quadros ao fundo, pessoas observando. Aí surge uma professora dando a mão a uma criança, que puxa outra, e depois muitas outras puxando a de trás pela mão. Elas cruzam o plano da cena, até que aparecem, de mão dadas com elas, Ferris, Sloane e Cameron. Tomadas com contemplação, outras com ironia, todas belíssimas e com música emocional e densa. Destaque para Cameron impactado pelo quadro de Georges Seurat, em pontilhismo. Intercalam-se tomadas de seu rosto e da menina do quadro, cada vez com mais aproximação. Cena genial, poética, um respiro no meio daquele ritmo todo em que o filme estava.

9. Ah, sabe o item 3, que não diz nada de incrível na cena do beisebol? Pois é... No fim do filme, Ferris, depois de escapar de mil situações em que quase foi pego, chega ao quarto e se deita, no momento em que os pais estão chegando ao quarto. Só que, quando os pais estão abrindo a porta, o aparelho é acionado e começa o som de ronco. Não há tempo para levantar e desligar o aparelho. De nada valeu ele ter escapado de todos os perigos antes. Envolvidos e torcendo por ele, pensamos “ih, fudeu!”. Quando ele se ilumina com uma ideia, mete a mão no bolso, tira a bola de beiseball, faz mira e a acerta no botão on/off do aparelho, vibramos, “caralho!”. Ele se cobre e os pais entram. Veja bem: em qualquer filme, a bola que ele pegou no estádio seria valorizada, ele diria algo como “vou guardar, posso precisar dela”. Não, mas o vemos colocando a bola no bolso e ela desaparece do filme, mas não da nossa memória. O resgate da bola faz a gente vibrar, infla nosso pulmão, é um carinho na alma.

Curtindo a Vida Adoidado não é popular por contar uma história legal. É porque é cinema de primeira. E não é o caso de memória afetiva, não, porque não vi o filme na época. Não fui destes que o acompanhou sessões da tarde afora. Eu era um intelectualoide que desprezava entretenimento, ainda mais ‘juvenil’.

Ao corajoso e persistente leitor que chegou até aqui e que quer a receita da felicidade e da realização pessoal, sugiro: reveja o filme. Ele vai te ajudar muito mais do que qualquer coach charlatão, desses que brotam feito mato por aí. Enfim, sabe a ilha deserta para onde você só pode levar 10 filmes? Na minha mala, tem Curtindo a Vida Adoidado e mais nove. 
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