Não há mal que sempre dure, nem bem que nunca acabe. Na vida, tudo é passageiro, com exceção do motorista e do cobrador. Há uma surpresa a cada esquina. Nada é impossível. Viver é sonhar. E chega de frase feita por hoje.
Minha Irmã, como toda mãe, sempre sonhou com a nora ideal. E encontrou. A surpresa é que a nora com a qual minha irmã sempre sonhou é o David. Eles, David e meu sobrinho, estiveram em casa por uma semana, deixando um vazio quando se foram. David cortou meus cabelos, iniciando mais uma mudança na minha vida, já que passei 10 anos eu mesmo deixando-os, à máquina, rentes, sem ondas, sem picos e depressões. Enfim, sem nada que lembrasse uma vida humana. David me recuperou como ser humano.
Mas meus cabelos já cresceram e como não quero mais cortar à máquina e nem procurar um salão, resolvi deixar que o salão me achasse. Sabia que o acaso me ajudaria enquanto andasse distraído (desculpe por essa). Sábado fui a um sebo, onde comprei uns de discos de vinil. Ao sair do sebo o que vi na frente? Um salão. Olha o acaso aí! Mas, portador da síndrome das pernas inquietas que sou, só cortaria se fosse na hora, sem espera. E lá estava a Cleide, prontinha, me esperando. Entrei naquele salão cheio de mulheres de sábado e me sentei. Bem atrás de mim, posição que o espelho gentilmente alterou, estava ela, na minha frente no espelho, branca, linda, como banhada por uma luz celestial, Glauce Rocha, a Sara de “Terra em Transe”. Uma encarnação, é claro, pois ela morreu em 1971. A mesma beleza estranha, que não sabemos explicar, não convencional, os mesmos olhos meio fechados, uma beleza poética. Era, na verdade, mais bonita que Glauce, a minha Glauce (será que um dia saberei seu nome?). Eu não conseguia parar de olhar para ela, para aqueles olhos maravilhosos, aquela expressão indefinível, que me arrebatou. Aquele corte podia durar anos, eu ficaria alí, olhando para ela... Mas não há mal que nunca acabe nem há bem que sempre dure. Ops, outra frase feita. Mas o fato é que a minha Glauce foi embora como se foi a primeira, assim, de repente. Esta eu espero voltar a ver. A outra, só nas incontáveis vezes em que verei Terra em transe.
E já estamos no domingo, pé de cachimbo, um calor danado, sem chover há meses, ouvindo os discos que havia comprado na véspera. Enquanto ouvia, cozinhava um sopão de legumes e uma canja, para serem congelados em porções individuais e servirem de jantar nas próximas duas semanas. Mesmo com todas as janelas abertas, nada de vento, e aquele calorão. Vento não havia, mas surpresas, sim. Coloquei na vitrola (é o máximo poder dizer isso) o álbum “Rapsódia Rock” do guitarrista Robertinho do Recife, e fui para o fogão. E não é que o rapaz teve a petulância de, na minha sala, tocar, apenas para mim, ele bem sabe, o “Noturno No 10”, de Chopin? Sabe o que significa isso? Vou explicar.
Tio Moa não teve pai, o que o envergonhava muito na época em que era apenas um raquítico sobrinho. E sempre aparecia um coleguinha estúpido que perguntava “o que o seu pai faz?”. “Não tenho pai”. “Não tem?”, como se não ter pai fosse a coisa mais estranha do mundo. “Não”. “Ele morreu?”. “Não”. Que saco! Aquilo estragava o dia, a semana e o mês. Que graça podia ter falar do pai? Porra, fala do primo, do joguinho, do chinelo novo, da Ponte Preta, fala até do Guarani, mas vai falar justo do pai... “Meu pai é vendedor” (mas que cacete, quem perguntou?), “meu pai é engenheiro” (e daí, imbecil?), “meu pai me levou ao zoológico” (prá ver seus parentes, animal?). Mas que merda, aqueles idiotinhas não tinham outro assunto?
Nesse contexto, cresci vendo, dezenas de vezes, o filme “Melodia Imortal”, em que Tyrone Power interpreta o pianista Eddy Duchin, cuja belíssima esposa (Kim Novak), morre e deixa um filho pequeno. Eddy não consegue encarar o filho e o abandona. Boa parte do filme envolve a tentativa de reencontro do filho com o pai. E quando conseguem se aproximar... bom, deixa prá lá. Fora o tema, caríssimo ao Tio Moa, o filme tem momentos musicais impressionantes, com destaque, é claro, para quando ele toca o Noturno de Chopin ao piano. O filme, recentemente lançado em DVD, é tristíssimo, daqueles que a Fernanda adoraria (sabe as pessoas normais, que quando vão ao cinema compram pipoca, bala ou outra coisa qualquer? Pois a Fernanda adora comprar lenços de papel. E oferece prá quem tiver do lado, como se oferecesse pipoca).
Pois naquele calor abafado, enquanto cortava os legumes, o Robertinho do Recife, lá na sala, cometeu o despautério de levar o Noturno na guitarra... E eu nem tinha visto que ela estava no disco. Fantástico. Pepê e Amelie me olharam do chão com aquele ar de pergunta. Respondi que não era nada, que era a cebola...
Mas tudo passa, tudo sempre passará... E o próximo disco, outra surpresa: comprei, meio sem saber por que, um disco do chato do Ivan Lins, “Juntos”. O disco é sensacional. Tem seus grandes clássicos interpretados em duetos, com participações especialíssimas, como por exemplo, George Benson e sua guitarra mágica, Patty Austin, Paulinho da Viola, e por aí vai. Um disco de forte viés jazzístico, ultra bem produzido, inclusive capa e encartes, privilégios indiscutíveis do vinil. Mais uma grande surpresa do final de semana.
Beatles são o máximo. E entre os máximos dos máximos está “Because”, talvez a melhor da dupla Lennon/McCartney. Comprei um disco do MPB4 e Quarteto em Cy.
Gosto dos rapazes, mas as moças eu acho uma chatice. Mas pensei que, juntos, talvez saísse legal. Não saiu legal, saiu uma obra que faz os seus ouvidos se sentirem importantes. Aquelas oito vozes, com as opções de repertório e com os arranjos delicados, chamam seus ouvidos de Vossa Majestade. Parei tudo na cozinha e sorvi até a última gota, do disco e da taça de um ótimo espumante. Pois bem, se o disco todo é ótimo, há ali uma pérola, um diamante: “Because”, que as meninas cantam com os ricos ornamentos vocais dos rapazes. Parece ser uma versão definitiva. Um achado surpreendente.
Passado tudo isso, comida pronta e o mesmo calorão e falta de vento. Mas acertei em cheio uma maravilhosa sopa de legumes e uma canja de tia. Tenho comida noturna para duas semanas ou mais.
Aí, antes de almoçar, recostei-me ao sofá esperando um ventinho, que não veio, e peguei a Folha de domingo: mais uma surpresa, deliciosa para quem é cobraparadista, ou seja, para os que não aceitam calados os abusos fascistas de poder. Um editorial de primeira página. Os editoriais sempre são na página 2, nunca na capa, salvo em ocasiões extraordinárias. Nem me lembro quando foi a última. E lá estava, em letras grandes, o editorial, de cima a baixo. O título: “Todo o poder tem limite”. Belíssima surpresa. Surpresa porque já estava achando que só eu e o Alberto, fora os terroristas de direita (como bem os classifica o Fábio), víamos na postura do Lula e do Governo um autoritarismo brutal e um fascismo desenhando uma ditadura. Vivas a mais essa do final de semana. Vejam, à esquerda, o final do editorial, à Cobra Parada!
Bom, para fechar esse post, chatíssimo para quem não é o próprio Tio Moa, uma matéria na Folha sobra a mulher mais maravilhosa que existe em toda a terra neste momento: a mais linda e inteligente e instigante e ácida e diferente e sensualíssima e tudo mais. Trata-se da Alessandra Negrini. Ela seria minha eterna cabeleireira, isso já antes de eu ler o que li, pois adivinhava o que havia ali dentro daqueles olhos. Mas veja o que ela disse na matéria (as palavras em caixa-alta são da própria matéria):
"Quero estudar cinema, filosofia. E quero produzir uma peça. Você só faz o que quer quando produz."
"Fazer cinema de autor, de experimentação, é um sonho. Me sinto sempre começando"
"Não gosto dessa coisa de GERAÇÃO SÁUDE, essas paranóias. Essa DITADURA de alimentação saudável, ah, que encheção de saco"
"Nunca fui abandonada. Mas esse PEITO ARDENDO eu sei o que é. Todo mundo sabe o que é a FALTA de alguém"
Agora, quem sabe de mim, me diga: ela é ou não é, para quebrar de vez a promessa das frases feitas, a outra metade da minha laranja?
"Venha, Alessandra, venha fazer cinema de experimentação comigo. Venha, vamos refundar o Cobra Parada Não Engole Sapo, que eu te apresento o Panta, o Gilsão e até o Markovitch. Venha refrescar esse seu peito ardente em casa, que eu tenho uma geladeira nova, com um freezer imenso, onde couberam 10 porções de sopa de legumes e 6 de canja. Venha viver comigo, que nunca te faltarei, a não ser quando meu chefe me chamar para uma reunião (ele é meio workaholic). Alessandra, isso é um pedido público de casamento. Você só tem a ganhar, inclusive um neto postiço logo de saída! Com amor, Tio Moa".
Foi assim, viajando, no sofá, após o trabalhão das sopas, o calor e as taças de rosé, que fechei os olhos, pensando que algo assim não pode, não deve ser impossível. Momento relax, peguei de volta o disco do MPB4 e Quarteto em Cy, coloquei direto na maravilhosa Because e fechei os olhos com a imagem da Negrini enfeitando minha imaginação.
Because the world is round it turns me on
Because the world is round...aaaaaahhhhhh
Because the wind is high it blows my mind
Because the wind is high......aaaaaaaahhhh
Love is old, love is new
Love is all, love is you
Porque o mundo é redondo que me excita/Porque o vento está forte que sopra minha mente
O amor é velho, o amor é novo/O amor é tudo, o amor é você
Neste momento começou a ventar, um vento fresco, quase gelado, que pensei trazer um cheirinho de chuva. Abri bem pouco os olhos e vi a Amelie me olhando com cara de pergunta. Mas o vento continuava, delicioso, balançando as plantas da varanda, além da qual pude ver o céu encoberto e nuvens espessas, o que não se via há meses.
E pur si muove... o mundo...