sábado, 11 de setembro de 2010

A Incrível História do CPNES - Parte 5

O CONTEXTO E A GÊNESE

Em 1983, o país estava prontinho para o final da ditadura, mas, como diria o Professor Wagner, vivíamos os estertores do poder, que ocorre quando seus detentores perdem as estribeiras no esforço desesperados para mantê-lo. O problema é que os ares da liberdade já seduziam pessoas de dentro dos círculos do poder. Por isso, cada esfera e cada pequeno órgão do governo eram comandados como se fossem um Grande País, que devia ser protegido do “mal”. Acho que isso era o brinquedinho deles. Para nós, que portávamos a “semente do mal”, aquilo não era nada divertido. O patrulhamento sobre o que pensávamos, vestíamos ou falávamos era insuportável para alguns de nós.

E ali estávamos, naquela escola comandada por militares, com regras rígidas e controle absoluto. Nada de usar barba ou cabelos cumpridos, nada de questionar, nada de se divertir e de preferência, nada de pensar. Faziam de tudo para que fossemos fieis e tementes ao regime.

Como era de se esperar, todas aquelas pessoas de diferentes lugares do país começaram a formar pequenos grupos, aglutinados por região de origem, por lugar que sentavam nas salas, por estilos, etc. Mas alguns menos tranquilos começaram a conversar sobre jogo em que estavam inseridos e passaram a formar um novo grupo de afinidade. Numa noite, conversando com Silvio Romero e com o Gilsão no fundo da casa de alguém, decidimos que era preciso resistir. A palavra de ordem era ficar alerta, não deixar-se soterrar, não deixar-se ludibriar, não deixar-se transformar naqueles civis de alma fardada, amantes do controle e da hierarquia, cuja maior aspiração era ficar atrás de uma mesa controlando pessoas, fichas e processos burocráticos. Muitos alunos achavam aquilo o máximo. Alguns ainda acham.

A necessidade de resistir àquela lavagem cerebral acabou unindo um grupo de pessoas. Senti-me como um membro da resistência francesa na segunda guerra – é claro, com uma boa parcela de exagero romântico, mas no fundamento, realmente não era muito diferente disso, não. Só não corríamos o risco da morte física, substituída pela morte moral, a ameaça de expulsão, sempre lembrada pelos donos daquele Grande País.

Eu, menino recém saído das fraldas tão bem mantidas pela minha santa mãezinha, estava lá, naquele fundo de quintal, naquele lugar ermo e afastado, falando baixinho porque os muros tinham ouvidos, me sentia com um baita medo, mas com uma excitação nunca antes sentida.

A partir dali o grupo de resistentes começou a aumentar. Aos poucos fomos percebendo que tínhamos outras coisas em comum, como a paixão pela boa música, especialmente daqueles grupos independentes, como o Língua de Trapo (ao lado) e o Premê, por festas e pelo teatro. A forma de resistência incluía se divertir, arejar a cabeça, conversar muito, manter a mente sã e independente e, eventualmente, agir
.
Silvio, um intelectual pernambucano de boa família, morava em Recife, na badalada Avenida Boa Viagem, de frente para o mar, o que me impressionava muito; usava uns óculos pequenos e jardineira jeans. Um amigo em comum, o Google, me disse que hoje ele atua na coordenação do Curso de Pós-Graduação em Design, na Universidade Federal de Pernambuco. O Silvio e eu gostávamos muito de teatro e começamos a planejar montar um grupo. O teatro poderia ser usado como um instrumento de expressão de nossas inquietações e de denúncia, tirando os pacatos do seu estado de torpor. O professor Wagner, um alienígena ali, culto, de bom gosto e também resistente àquela forma de “educar”, e a Joana D’Arc, uma aluna paranaense, também eram entusiastas da idéia de fazer teatro. Nós 4 decidimos montar o grupo, mas isso demorou demais e o Silvio e a Joana deixaram Brasília antes de o grupo ter nascido; o professor Wagner foi demitido (sabe-se lá o motivo) pouco tempo depois. Do grupo que teve a idéia original, só sobrou este que agora conta a incrível história do Grupo Cobra Parada Não Engole Sapo, cuja atuação no início dos anos 80, não sei se você já ouviu isso antes, mudou a cara de Brasília, do Brasil e, por conseqüência, do Mundo, no campo das artes, da política e da filosofia.

Dos 4 idealizadores, só sobrou euzinho aqui. Mas, definitivamente, eu não estava só, afinal, ainda havia a “resistência”, aquele grupo de boêmios que discutiam, bebiam, faziam sopas com doações semi-espontâneas (essas sopas merecerão maiores informações mais para frente). Foi jogar a ideia e ela ser abraçada por aqueles lunáticos que nunca antes haviam imaginado pisar num palco.

Ao mesmo tempo em que a resistência ganhava consistência, aumentava a atenção das autoridades sobre seus membros, pelo menos os mais extravagantes. Eu, por exemplo, adorava provocá-los usando boinas e cintos coloridos. Não falávamos grosso, não dávamos porrada, não éramos carrancudos nem reclamávamos de tudo. Éramos alegres e festivos. Essa nossa postura passava uma imagem de destemor, o que nos dava uma aura de poder e instilava certo receio nos que nos olhavam com olhares opressores. Por isso tinham cuidado quando queriam cortar nossas asinhas, que por sinal começavam a crescer. Ficou famoso o episódio da publicação de uma nota com os seguintes dizeres no boletim que definia as normas daquele Grande País. A nota dizia, sem nenhuma explicação: “fica proibido o uso de chapéus, boinas, bonés e faixas coloridas na cintura”. O primeiro que viu aquilo pregado no quadro de avisos me chamou correndo. “Parabéns, você ganhou uma nota só para você”. Não me lembro quem foi, mas me lembro que se seguiu uma algazarra geral. Todos foram lá para ler. Ninguém se cabia de rir. Ali percebi o quanto ter uma postura gerava força: tiveram receio de conversar comigo, o que deveriam fazer, já que apenas eu usava as tais faixas e boinas. Preferiram publicar uma nota, como se a decisão viesse do monte Sinai em forma de leis escritas em tábuas. A alegria por ter provocado aquilo apagou qualquer indignação com a proibição.

Enfim, já estávamos um pouco marcados e observados com atenção. “Estão querendo montar um grupo de teatro? Quem?”. Aí havia um problema. O grupo tinha que ter ao menos um membro acima de qualquer suspeita. Era preciso de alguém com um estofo moral, alguém que eles respeitassem muito. Alguém sério. O incrível é que na própria Resistência havia alguém assim. E é desta pessoa que falarei na parte 6.

Um comentário:

Unknown disse...

Essa contextualização foi perfeita, linda e, como sempre, cheia de saudade...
Ansioso pela continuação...

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