Contar Histórias
Dia desses vi um jogo incrível entre dois times franceses, que terminou 5 a 4. O jogo foi marcante porque, aos 41 minutos do segundo tempo, o time que venceu por 5 a 4 estava perdendo por 3 a 1. Ou seja, em pouco mais de sete minutos, contando os acréscimos, foram feitos 5 gols. Contei para alguns amigos, que se impressionaram. Sabe quando você faz sucesso com sua história? Também, com a história daquele jogo, qualquer um faria sucesso.
Mas e quando acontece alguma coisa em que você está envolvido, algo muito mais incrível do que um jogo de futebol, por melhor que tenha sido o jogo; algo que te cause um gigantesco impacto emocional, que mexa e remexa com você? Você consegue contar com o mesmo sucesso? Se foi algo de caráter subjetivo, espiritual ou psicológico, é muito mais difícil de contar. Sabe quando você conta, todo empolgado, todo emoção, algo para os amigos e eles “nem tchum”? Broxante, não? Seriam eles insensíveis ou você não soube contar? Ou as duas coisas juntas?
Tem que ser artista
Experiências subjetivas são muito difíceis de traduzir em palavras e de transmitir com emoção a terceiros, por melhor que você seja como contador de histórias. Muito difícil, mas não impossível. Você terá que ser extremamente sensível e ser um grande artista para contar e fazer os outros viajarem na sua experiência. Ao contar a sua experiência, você tem que proporcionar uma nova experiência ao seu interlocutor se quiser que ele sinta algo parecido com sua emoção.
Não sei o que motivou Terrence Malick a filmar A Árvore da Vida, mas posso garantir, sem nenhuma pesquisa de notícias sobre cinema, que não foi algo simples como “vou fazer um filme”. Ou ele teve uma experiência transcendental, ou ele é a própria transcendência, ou seja, o próprio Deus, mas acho que não é isso não, até porque eu não acredito que exista um Deus. Só sei que ele soube contar essa história e transmitir todo o impacto e toda sua transcendência.
Isso foi suficiente para emocionar quem vê o filme?
Voltemos a você e aos seus amigos insensíveis: mesmo que você conte sua história de modo perfeito, transmitindo algo que permita ao outro vivenciar uma experiência, vai depender de o outro se dispor a vivenciá-la e, mais que isso, conseguir vivenciá-la. Alguns se emocionarão com sua história, mas a outros ela não dirá absolutamente nada. A diferença é a alma. Há que se ter uma alma para se deixar navegar por algo subjetivo que está sendo contado, ainda que bem contado. Mesmo que muitos queiram viajar, há que se ter o bilhete de passagem, que é a alma. Não são todos que tem uma alma, estou absolutamente convicto disso.
Não existe alma sensível e alma insensível: ao ter uma alma você tem sensibilidade. Fique tranqüilo, leitor portador de alma: você é uma pessoa sensível, talvez lhe falte um pouco de traquejo com a alma, primeiro porque ela não vem com manual de instruções, depois porque a vida cotidiana não exige que usemos nossa alma, aliás, por vezes exige que não a usemos. Conselho: ouça boa música, veja bons filmes, se entregue às paixões, olhe para o céu, coma pipoca doce, ou até, tenho o direito da propaganda, leia este blógui.
Não é uma questão de gosto
Ontem, ao terminar a sessão, um cara ao meu lado, cuja justa irritação era notória durante todo o filme, vociferou: “que bom que terminou essa bosta de filme”. Ele estava certíssimo. Só errou ao não ter saído antes; podia ter se poupado do insuportável filme e da companhia dos chatos que fingem gostar de filmes “cabeça”. Não é uma questão de gosto. Só pode ser fingimento: impossível alguém gostar daquilo.
Não é uma questão de gosto 2
Como pôde ser visto, não basta ter uma história bem contada: é preciso que haja alma dos dois lados, de quem conta e de quem ouve. E se você chegou até aqui, suponho que tenha alma e disposição para navegar. E é exatamente assim, com alma e vontade de explorar oceanos ignotos, que se deve ver “A Árvore da Vida”. Não é uma questão de gosto, o filme é maravilhoso e ponto. Não é cinema comum: é uma experiência de amor, beleza, vida e espiritualidade que, gentilmente, Malick resolveu compartilhar com todos nós.
Ce ta pensando que eu sou lóki, bicho?
Repare que me referi a “navegar” para me referir às experiências que o filme proporciona. Evitei falar em sonhos e viagem, que têm sido muito utilizadas nas críticas do filme, mesmo nas positivas. É que viagem remete aos filmes “viajandões”, lisérgicos, psicodélicos, e sonhos remetem a cenas desconexas, a loucuras, e o filme não tem absolutamente nada de louco nem de “viajandão”. É claríssimo e redondo como uma missa.
Deus, onde você estava?
O filme começa, pela voz da mãe, personificação da beleza e da doçura, falando da natureza e da graça. Ainda no início o casal recebe a notícia da morte do filho. Para quem quer imaginar a experiência: a mãe, ao receber um consolo do tipo “eu sei que a dor é muita, mas saiba que ela vai passar”, responde “eu não quero que passe”.
A mãe questiona a Deus: onde você estava? Ele, Deus ou o diretor, não sei, responde com 16 minutos de imagens alucinantes da criação do universo até as primeiras formas de vida na terra, com toda a dor e a beleza possíveis e uma música, um réquiem (Lacrimosa), que vai crescendo com as imagens até um clímax arrepiante (no meu caso a expressão é literal - me arrepiei inteiro, coisa de fresco?). Não é para qualquer um. O problema é a ansiedade que as pessoas têm de ouvir logo o próximo diálogo, ou ouvir uma explicação literal bem clara; só que os mistérios da vida e da morte não são claros. Dezesseis minutos sem diálogos, para quem não tem alma, é uma eternidade, uma tortura. Oras, relaxe e curta aquilo, que depois você faz as conexões, não necessariamente com seu cérebro, mas certamente com sua alma. Aliás, tem um trechinho aí abaixo. Só clique se você já tiver visto o filme, senão, segure a onde e primeiro veja na telona.
E aquela do...
A partir daí o filme alterna imagens do presente e do passado. Sean Penn é um dos filhos que recapitula sua infância e sua relação com os pais e com os irmãos, especialmente o morto. O ator jovem (não sei o nome) é impressionante. O pai (Brad Pitt), super austero, e a mãe, dulcíssima. Não há um discurso verbal, quem fala são as imagens, extremamente bem cuidadas e feitas com tamanha sensibilidade que parece que nós mesmos estamos recordando nossa infância. Os pontos de vista são sempre originais e parecem nos colocar lá, junto com eles, como mais um filho. O filme é inteiro composto por pequenas cenas de muita beleza e alto impacto. Num esforço de montagem gigantesco (aposto como ganha o Oscar de montagem), cenas de três, de cinco segundos, são dispostas de modo que criam um discurso claro e calmo, ao contrário do que normalmente ocorre quando há muitos cortes. Nesse aspecto o filme dá uma importante contribuição técnica ao desenvolvimento da linguagem cinematográfica. Mas isso pouco importa diante da beleza.
Eu poderia relacionar dezenas de pequenas cenas antológicas, maravilhosas, como a dos irmãos em lados opostos do vidro da janela, perto do final do filme. Uma ode à amizade e amor entre irmãos que deve durar uns 30 segundos, mas é inesquecível. Ou a cena do vento na janela balançando a cortina e derrubando o abajur, seguida pela casa mergulhada na água como se estivesse no fundo de um lago límpido e muito claro; o menino abre a porta e nada para fora, para cima; corte para sala de parto e o nascimento do bebê. Meu Deus! E a da borboleta dançando com a mãe e pousando em sua mão? E a do pedido de desculpas do irmão? E a da festa que fazem quando o pai viaja? E aquela do...
Meu espelho Cristalino
A seqüência final é impressionante pela beleza e pela emoção absurda e indescritível que causa. Sean Penn, o ator mais intenso e econômico da atualidade, pouco fala, mas transmite tudo. Na cena final, com uma micro-expressão que só quem tem alma pode ver, ele nos diz algo claríssimo, embora não traduzível em palavras deste ou de qualquer outro idioma lingüístico.
Saí do cinema pequeno, sentindo o tamanho do universo, da vida, de deus, de seja lá o que for. Meus problemas viraram pó. O estresse que me acompanhava se dissipou. Saí da sessão pleno de amor, que era tanto que escorria abundante pelos meus olhos. Saí do cinema e entrei no carro para uma longa viagem. Fui acompanhado de minha santa mãezinha, de meus irmãos, minhas filhas, meu neto, meus pássaros e cachorros, vivos e mortos. Estavam comigo também o Seu Antonio e o Tio Osvaldo, a Julieta, a Carlota, o Woody e a Charlie. Acho que a humanidade, ao menos a minha, estava lá comigo. Foi a maior experiência religiosa da minha vida de ateu convicto.
A Árvore da Vida é uma obra prima que ultrapassa o próprio cinema. A Árvore da Vida é meu “espelho cristalino”, tem uma luz que me alumia... Vantagem econômica do filme: equivale a 30 anos de missa (eu ia quando garoto, para ganhar quindim do meu cunhado), a 280 sessões de terapia, a mil caixas de rivotril, vinte anos de leitura de livros de auto-ajuda e a seja lá o que for.
Neste momento, posso ver, da janela, mais de 30 quilômetros de luzes de uma cidade mergulhada na escuridão e na “insensatez do asfalto”. Tudo é tão pequeno...
9 comentários:
qta energia saindo pelos poros e deixando leve a alma ,bjinhos
Oi Moacir. A Fernanda Cavalini indicou seu blog. Gostei da sua crítica. Este filme é uma verdadeira oração, que tenta demonstrar o sofrimento da perda. Por ser uma experiência contemplativa, este acaba não combinando com nosso cotidiano atribulado e nossa racionalidade excessiva.
Perfeito seu texto. A crítica ao dinossauro, que creio fui eu quem lhe repassou, chocou-me depois de eu ver o filme, pois me pareceu uma das cenas mais emocionantes. Aquela pata na cabeça do moribundo foi uma das coisas que me fez chorar. De fato, para usar suas palavras, só quem não tem alma pode imaginar que os dinossauros tampouco a tivessem. É de fato uma experiência mística, transcedental, que permite várias leituras. Saí mais ateu do que nunca, assim como imagino que todos tenham reforçado suas crenças, em divindades, espíritos etc. Não sei se é uma árvore, mas com certeza o filme é a Vida. Aliás, eu sou o Sean Penn, o loirinho é meu irmão Marco, o Brad meu pai Gaetano e a ferrugem minha mãe Esther. Para disfarçar e não me pagar royalties, o Malick pôs um terceiro garoto no filme em vez de minha irmã Ângela. Que filme.
Eita, não consigo comentar o filme... Amei o posti. Fer
Os seus textos são ótimos(quase sempre!) rs...
bjs e bom final de semana,
Ana
www.ananumdiadaqueles.blogspot.com
Admiro vocês todos que conseguem comentar o filme. Eu cheguei em casa e meu filho me perguntou sobre o filme. Não fui capaz de comentar, não fui capaz de descrever,sugeri a ele que o veja. Tenho certeza que serei uma mãe melhor, uma vó mais doce, uma filha mais atenta....
Desculpe, Sra Anônima,mas você conseguiu comentar muito bem, talvez melhor do que todos nós:"Tenho certeza que serei uma mãe melhor, uma vó mais doce, uma filha mais atenta...." Sensacional!
olá, é um filme realmente inspirador sobre a vida e todas as coisas no mundo. não é para qualquer público acostumado com os filmes de ação e explosões. é um filme para se sentir, filosofia e poesia em último grau.
to seguindo teu blog, segue o meu?
www.foiporquerer.blogspot.com
E a partida? Quanto da gente fica nas casas por onde a gente passa // Quanto da infância também fica na gente... Lindo filme! Ine
Postar um comentário