Fernanda Young morreu. Porém, ainda que muita gente tenha lido
algo sobre a morte da artista, duvido que alguém, dentre os brasileiros comuns,
tenha dado sequer um suspiro, quiçá tenha deixado escorrer uma lágrima, ainda
que tímida. Não se tem a noção da importância dessa rara mulher. Por isso, a
citação ao Cazuza, lá no início, que agora repito:
Senhoras e senhores, trago boas novas...
Quem morreu era muito mais do que uma moça bonita e
inteligente que causava com suas opiniões cortantes e ácidas no programa Saia
Justa, do GNT. E mesmo que muitos tenham lido nas matérias de domingo que ela
foi criadora e roteirista da série Os Normais, ninguém se dá conta do
que isso significa. Mas fiquem tranquilos, senhoras e senhores, especialmente
as senhoras: trago boas novas.
Mas antes tenho que esclarecer uma coisa, logo de cara: não
sei nada sobre quem ela era, não sei se tinha Instagram, Twitter ou o diabo que
seja, não a via há milênios e não imagino o que andava fazendo, mas ter criado
e escrito Os Normais é suficiente para que eu venha a este empoeirado
blogue para gritar que Fernanda Young foi a pedra fundamental do surgimento da nova
mulher urbana brasileira.
O brasileiro detesta se aprofundar nas coisas e só conhece o
que vê à superfície. ‘Sabe aquela série da Fernanda Torres com aquele cara
engraçado, Luiz Fernando alguma coisa?’ perguntaria o brasileiro típico.
‘Eles são demais, não são?’. É assim que a banda toca por aqui. Ninguém imagina
que aquilo foi criado por alguém e escrito por alguém, no caso, a mesma pessoa.
Como?
Foi ela, a Fernanda Young, que inventou aquilo tudo, ela foi
a roteirista que te fez rir tanto.
Roteirista, é?
Sabe o que é isso?
Sei, deve ser quem digita as tiradas geniais do Rui. Aquele
Luiz Fernando é engraçado demais!
Nada contra o Luiz Fernando Guimarães, claro. Ele foi
espetacular, deu vida e alma ao Rui e certamente é mesmo responsável por muitas
tiradas. E nada também contra o marido de Young, o Alexandre Machado, que
também assina criação e roteiros, mas todo mundo sabe que era ela que
encabeçava a coisa toda. Aquela coisa toda! Os Normais não foi uma comédia, foi
uma revolução que moldou o comportamento da nova mulher brasileira e fez de
Fernanda Young uma das pessoas mais influentes do século 21 no Brasil.
Você não tinha se tocado que a série não era só engraçada, nem
que não era sobre o Rui ou sobre o casal? A música de abertura, “você
é doida demais, doida, muito doida, você é doida demais”, do Lindomar Castilho, não deixa dúvidas: a protagonista é a Vani (o grande trabalho da vida de
Fernanda Torres). A série é sobre a nova mulher brasileira que surgia, a mulher
do século XXI, uma mulher que se desgarrava, confrontava o machismo e fazia seu
caminho. Veja: o machismo de Rui não era aquele machismo de almanaque, o
machismo clássico e facilmente identificável. Ele era o machista que eu também era (talvez ainda seja),
o machista light, o machista que não se imagina machista.
Rui só pensava como homem, oras bolas! A mulher tem que
entender isso! Ele só queria se dar bem, se divertir, beber, dançar,
eventualmente comer alguma mulher, inclusive a sua, mas sempre com uma
inocência meio sacaninha e engraçada. Todo mundo adorava o Rui! E foi aí que
Fernanda Young mais acertou a mão: Os Normais ridiculariza esse machismo
‘inocente’ quando o confronta com uma mulher que também tem desejos, que também
quer se dar bem, tomar um porre, transar e se divertir. Ué, não pode? E o
confronto nunca se deu de forma panfletária – o humor é a mais poderosa forma
de transformação, muito mais que a sisudez e as boas intenções dos engajados.
Enquanto, por 3 anos, todas as semanas (e depois em mais 2
longas), o machismo de Rui era exposto ao ridículo, Vani ia conseguindo o que
queria, ora se recusando a ser objeto de desejo, ora, quando lhe convinha, sendo objeto de desejo, tendo voz ativa e
controle de suas vontades e de seu caminho. Fernanda Young definiu, por meio de
sua avatar Vani, que a mulher teria desejos independentes dos do companheiro e
teria atitude para dirigir sua própria vida; se seu homem quisesse continuar
com ela, ok, ela gostava mesmo dele, mas ela continuaria sendo daquele jeito, nem
que tivesse que se impor sendo doida, muito doida, doida demais!
E foi por meio do humor e de personagens cativantes em
situações inusitadas que Os Normais veio dando suas porradas – e não era
só porrada em homem, não, era também na mulher cativa, compreensiva, resignada,
uma porrada no pensamento conservador – tudo isso, repito, sem feminismo de
guerrilha, mas com humor e espirituosidade. E de tanto ver uma nova mulher se
impondo de forma tão avassaladora, a mulher urbana brasileira foi se moldando,
se construindo.
Eu duvido que minha amiga Fernanda tivesse saído de casa, vindo
à Brasília e se tatuado toda (por ‘se tatuado toda’ me refiro às partes
visíveis, viu), enfim, se tornado uma nova mulher, se não tivesse sido fã da
Vani. Duvido até que a Aline, minha última esposa (última por enquanto),
tivesse resolvido cair fora para se encontrar se não tivesse visto tantas vezes
a série.
Eu poderia pensar em milhões de exemplos, mas acho que um
estudo antropológico sério certamente irá comprovar a importância dessa popular
série no empoderamento da mulher urbana brasileira (desculpe, mas tive
que usar a expressão da moda).
Mas a Fernanda Young não parou por aí, não.
Depois criou e
escreveu Minha Nada Mole Vida, a mais engraçada comédia brasileira do todos os
tempos. Fazer rir, ainda que sem nenhuma outra intenção, já é, por si só, uma das
mais nobres atividades deste mundo. Já vi várias vezes todos os episódios das 3
temporadas e não deixo de rir demais todas as vezes. Lá por 2012, recebi meus
amigos uruguaios, os Pinchus, em minha casa, em Brasília. Varamos uma noite inteira
gargalhando com Jorge Horácio By Night (o programa dentro da série)
vendo episódios atrás de episódios.
Enfim... Fernanda Young morreu, mas, de alguma forma, não...
Senhoras e
senhores, trago boas novas...
Eu vi a cara
da morte e ela estava viva... Viva!
Fernanda Young está viva em cada
nova mulher brasileira!