quarta-feira, 28 de agosto de 2019

FERNANDA YOUNG NÃO MORRE MAIS


Senhoras e senhores, trago boas novas...

Fernanda Young morreu. Porém, ainda que muita gente tenha lido algo sobre a morte da artista, duvido que alguém, dentre os brasileiros comuns, tenha dado sequer um suspiro, quiçá tenha deixado escorrer uma lágrima, ainda que tímida. Não se tem a noção da importância dessa rara mulher. Por isso, a citação ao Cazuza, lá no início, que agora repito:

Senhoras e senhores, trago boas novas...

Quem morreu era muito mais do que uma moça bonita e inteligente que causava com suas opiniões cortantes e ácidas no programa Saia Justa, do GNT. E mesmo que muitos tenham lido nas matérias de domingo que ela foi criadora e roteirista da série Os Normais, ninguém se dá conta do que isso significa. Mas fiquem tranquilos, senhoras e senhores, especialmente as senhoras: trago boas novas.
Mas antes tenho que esclarecer uma coisa, logo de cara: não sei nada sobre quem ela era, não sei se tinha Instagram, Twitter ou o diabo que seja, não a via há milênios e não imagino o que andava fazendo, mas ter criado e escrito Os Normais é suficiente para que eu venha a este empoeirado blogue para gritar que Fernanda Young foi a pedra fundamental do surgimento da nova mulher urbana brasileira.

O brasileiro detesta se aprofundar nas coisas e só conhece o que vê à superfície. ‘Sabe aquela série da Fernanda Torres com aquele cara engraçado, Luiz Fernando alguma coisa?’ perguntaria o brasileiro típico. ‘Eles são demais, não são?’. É assim que a banda toca por aqui. Ninguém imagina que aquilo foi criado por alguém e escrito por alguém, no caso, a mesma pessoa.

Como?

Foi ela, a Fernanda Young, que inventou aquilo tudo, ela foi a roteirista que te fez rir tanto.

Roteirista, é?

Sabe o que é isso?

Sei, deve ser quem digita as tiradas geniais do Rui. Aquele Luiz Fernando é engraçado demais!

Nada contra o Luiz Fernando Guimarães, claro. Ele foi espetacular, deu vida e alma ao Rui e certamente é mesmo responsável por muitas tiradas. E nada também contra o marido de Young, o Alexandre Machado, que também assina criação e roteiros, mas todo mundo sabe que era ela que encabeçava a coisa toda. Aquela coisa toda! Os Normais não foi uma comédia, foi uma revolução que moldou o comportamento da nova mulher brasileira e fez de Fernanda Young uma das pessoas mais influentes do século 21 no Brasil.

Você não tinha se tocado que a série não era só engraçada, nem que não era sobre o Rui ou sobre o casal? A música de abertura, “você é doida demais, doida, muito doida, você é doida demais”, do Lindomar Castilho, não deixa dúvidas: a protagonista é a Vani (o grande trabalho da vida de Fernanda Torres). A série é sobre a nova mulher brasileira que surgia, a mulher do século XXI, uma mulher que se desgarrava, confrontava o machismo e fazia seu caminho. Veja: o machismo de Rui não era aquele machismo de almanaque, o machismo clássico e facilmente identificável. Ele era o machista que eu também era (talvez ainda seja), o machista light, o machista que não se imagina machista.

Rui só pensava como homem, oras bolas! A mulher tem que entender isso! Ele só queria se dar bem, se divertir, beber, dançar, eventualmente comer alguma mulher, inclusive a sua, mas sempre com uma inocência meio sacaninha e engraçada. Todo mundo adorava o Rui! E foi aí que Fernanda Young mais acertou a mão: Os Normais ridiculariza esse machismo ‘inocente’ quando o confronta com uma mulher que também tem desejos, que também quer se dar bem, tomar um porre, transar e se divertir. Ué, não pode? E o confronto nunca se deu de forma panfletária – o humor é a mais poderosa forma de transformação, muito mais que a sisudez e as boas intenções dos engajados.

Enquanto, por 3 anos, todas as semanas (e depois em mais 2 longas), o machismo de Rui era exposto ao ridículo, Vani ia conseguindo o que queria, ora se recusando a ser objeto de desejo, ora, quando lhe convinha,  sendo objeto de desejo, tendo voz ativa e controle de suas vontades e de seu caminho. Fernanda Young definiu, por meio de sua avatar Vani, que a mulher teria desejos independentes dos do companheiro e teria atitude para dirigir sua própria vida; se seu homem quisesse continuar com ela, ok, ela gostava mesmo dele, mas ela continuaria sendo daquele jeito, nem que tivesse que se impor sendo doida, muito doida, doida demais!

E foi por meio do humor e de personagens cativantes em situações inusitadas que Os Normais veio dando suas porradas – e não era só porrada em homem, não, era também na mulher cativa, compreensiva, resignada, uma porrada no pensamento conservador – tudo isso, repito, sem feminismo de guerrilha, mas com humor e espirituosidade. E de tanto ver uma nova mulher se impondo de forma tão avassaladora, a mulher urbana brasileira foi se moldando, se construindo. 

Eu duvido que minha amiga Fernanda tivesse saído de casa, vindo à Brasília e se tatuado toda (por ‘se tatuado toda’ me refiro às partes visíveis, viu), enfim, se tornado uma nova mulher, se não tivesse sido fã da Vani. Duvido até que a Aline, minha última esposa (última por enquanto), tivesse resolvido cair fora para se encontrar se não tivesse visto tantas vezes a série.

Eu poderia pensar em milhões de exemplos, mas acho que um estudo antropológico sério certamente irá comprovar a importância dessa popular série no empoderamento da mulher urbana brasileira (desculpe, mas tive que usar a expressão da moda).

Mas a Fernanda Young não parou por aí, não. 

Depois criou e escreveu Minha Nada Mole Vida, a mais engraçada comédia brasileira do todos os tempos. Fazer rir, ainda que sem nenhuma outra intenção, já é, por si só, uma das mais nobres atividades deste mundo. Já vi várias vezes todos os episódios das 3 temporadas e não deixo de rir demais todas as vezes. Lá por 2012, recebi meus amigos uruguaios, os Pinchus, em minha casa, em Brasília. Varamos uma noite inteira gargalhando com Jorge Horácio By Night (o programa dentro da série) vendo episódios atrás de episódios.
Enfim... Fernanda Young morreu, mas, de alguma forma, não...  

Senhoras e senhores, trago boas novas...
Eu vi a cara da morte e ela estava viva... Viva!
Fernanda Young está viva em cada nova mulher brasileira!

sexta-feira, 21 de junho de 2019

FORA DE SÉRIE – A VINGANÇA DOS DEUSES


Subindo a escada rolante que dá acesso às salas de cinema, um casal à frente:

Ele: Tanto faz. Nem sei que filme tá em cartaz.
Ela: Eu tô muito a fim de ver uma comédia, estão falando muito bem.
Ele: Sobre o quê?
Ela: Adolescentes, amizade, colégio.
Ele: Não mesmo, de jeito nenhum.

Como é que alguém pode avaliar um filme não pela experiência que ele proporciona, mas pela faixa etária dos protagonistas? Tem que explicar pro sujeito que um cara de 40 pode ver um filme sobre adolescente, até porque ele já foi um, e mesmo que não tenha sido (vai que pulou de fase no jogo da vida), qualquer um pode imaginar como seria um adolescente. Além disso, um filme de adolescente pode abordar o drama de um adulto ao se referir aos sonhos da juventude, que terão sido concretizados ou não na fase adulta. Enfim, um filme sobre adolescente pode ser ótimo ou péssimo, assim como uma aventura pode ser eletrizante ou chatíssima. Mas o cara não quis nem saber – era sobre adolescente e acabou.
E nem é ‘só’ por tudo isso que o imbecil (isso não é juízo de valor, é informação) devia levar mil chibatadas. Como é que o cara, que nem sabe que filme quer ver, nem ao menos cogita ver o filme que a namorada quer, ao menos por cavalheirismo (ih, o que é isso?)? Que tipo de homem é esse?
Ali, naquele momento, subindo as escadas, o casal dois degraus acima, desejei, do fundo do meu coração compreensivo e sem maldade, que os deuses do cinema mandassem cair um raio bem na cabeça do sujeito e espalhasse seus miolos por
toda a escada. Mas os Deuses do Cinema agem de forma menos impulsiva e mais criativa, embora não menos implacável com os estúpidos e pobres de espírito. Qual o castigo que impuseram ao imbecil? A comédia Fora de Série, que ele não quis ver e não deixou a namorada ver, mas que eu vi, não é só uma comédia, é um puta dum filme, um filme filmaço! O tipo de filme que proporciona a qualquer um, de adolescentes a velhos, de homens hétero a mulheres idem, de amantes de filmes de ação aos da nouvelle vague, e todas as variações entre essas categorias, talvez até ao idiota da escada, uma experiência empolgante, divertidíssima, sensível, inteligente, de visual extasiante e... sei lá mais como classificar.
Sem deixar de ser comédia, e daquelas feitas para você rir mesmo, é um filme sensível e empolgante sobre amizade. O roteiro é inteligente, cheio de surpresas e equilibrado e a direção... Bom, aí tem outra treta...
Quando eu soube que a direção era da estreante Olivia Wilde, a Treze do House, aquela mulher maravilhosa de olhos fulgurantemente verdes que desperta a libido de um monge tibetano; enfim, quando eu soube que o filme era de uma atriz cuja única função é encher a tela de beleza, eu torci meu nariz machista sexista idiotista até a cartilagem.
E os Deuses do cinema me deram uma porrada! A direção é coisa de gente que sabe tudo de cinema, que usa de forma criativa tudo que é recurso cinematográfico para dar ao público, a cada cena, a sensação mais parecida possível com a do personagem – e isso permite experiências deliciosas ao expectador. Soma-se a isso um bom gosto impressionante – tudo é lindo de ver. 
Só 4 exemplos: 1. A viagem sob efeito de algo que tomaram, quando se transformam em bonecas Barbie; 2. As duas ‘festas’ bizarras e delirantes a que vão por engano antes da que queriam ir; 3. O absoluto silêncio que se faz numa festa pirada e barulhenta quando uma delas vê o cara que tá querendo; 4. O mergulho na piscina quando a outra procura alguém por baixo da água, numa experiência visual e musical impressionante. Ah... O final... Coisa que Tarantino aplaudiria, talvez invejasse.
Ótimos personagens secundários... Esse ‘secundários’ é péssimo, porque, por exemplo, uma menina ‘secundária’ que aparece sempre, e a função dela no filme não é outra senão aparecer, pode ser tudo, menos secundária, a contar pelos picos de riso que ela sempre arranca da plateia ao aparecer. Tem o entregador de pizza que aparece numa única cena, sensacional. E tem o doidinho rico, o cara que quer dirigir peças, ... Aposto que daqui a 15 anos, quando já for considerado clássico, ao revermos Fora de Série, vamos nos espantar com o tanto de atores famosos que começaram ali – porque não tem um ator que não roube a cena quando aparece.
                                                       
Dirigir comédia é muito mais difícil do que parece, principalmente por causa do chamado timing da piada – se uma resposta (fala ou gesto) dura meio segundo a mais ou a menos do que o exato, perde-se a piada. Mas a direção da Treze tem um timing cômico perfeito, tudo sempre funciona. E quando ela capricha em algum efeito para reforçar o que sente o personagem, o faz sem perder a naturalidade do ator e a energia dramática ou cômica. O relacionamento entre as protagonistas nerds e o resto da turma vai evoluindo de forma perfeita, os estereótipos sendo quebrados um a um, permitindo ao público que ria e se emocione ao mesmo tempo, até tudo se juntar no desenlace final.
John Hughes (Curtindo a Vida Adoidado, Clube dos 5, etc) deve estar orgulhoso lá em cima, ao ver um filme que, como os dele, apresenta conflitos, amores e relacionamentos de forma tão natural e calorosa, que a gente acaba se transportando à escola, revendo aquela gente que para sempre mora na nossa memória e no nosso coração.  
P.S. Menina da escada, se por acaso você estiver lendo este pôsti, e neste caso certamente você se reconhecerá e perceberá que aquele sujeito não te merece, saiba que estou procurando companhia para rever este filme. É Fora de Série!

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

MORREU BIBI... E DAÍ?


Pois é... Bibi Ferreira morreu! E daí? Idosa, 96 anos, teve uma morte que não se pode chamar de surpreendente, uma morte sobre a qual não haverá quem diga “coitada, né, morreu tão nova!”. Uma morte que veio na sequencia de grandes tragédias...

- Na primeira, morreram mais de 300 pessoas de forma totalmente inesperada (inesperada para elas, não para a Vale, como agora se sabe), em meio a um mar de lama pesada;

- Depois, 10 garotos que viviam o sonho de ser alguém no futebol e de conseguir dar uma boa casa e um bom carro para os pais, estavam, agora literalmente, sonhando no momento em que uma fumaça tóxica os sufocava até a morte (pelo menos preferimos acreditar que morreram assim, sem conscientemente sentirem-se arder).

- Finalmente (é o que esperamos), calou-se uma voz que fazia parte de nossas manhãs (ao menos das minhas), a voz de um cara gente fina demais, uma cara muito importante para o Brasil. E se calou justo quando ele podia estar improvavelmente escapando de uma queda, mas foi atropelado pelo helicóptero que fora abalroado por um caminhão. Quer algo mais improvável? Sua morte é como se uma daquelas chuvas do Rio tivesse caído sobre o sol, o apagado e nunca mais fosse haver uma manhã.

Isso tudo, sim, é que é relevante, não a morte de uma mulher de 96 anos, mulher da qual, inclusive, a imensa maioria das pessoas nem imagina quem seja. Mas é justamente sobre a Bibi que quero falar, digo, escrever, e o faço sem corretor, porque teatro é ao vivo... Foi sua morte, não prematura nem surpreendente, que me compeliu a publicar este pôsti neste semidesértico blógui.

Morreu Bibi Ferreira!

Caralho! Sabe o que descobri hoje? Que ela era meio que uma mãe para mim! Foi ela que enfiou essa coisa nas minhas estranhas entranhas; essa coisa da qual nunca pude, e nem quis, fugir; essa coisa que também não precisei buscar: entrou em mim desde que vi a diva no palco do Teatro São José, no bairro do Taquaral, em Campinas, interpretando Joana, amante de Jasão, na peça Gota d’Água, lá pelos idos de 78, 79... O teatro, que nos anos 50 e 60 havia sido um cinema, hoje é uma igreja evangélica. Nada contra... Mas se deus já está em todo lugar, pra quê ocupar um tão raro espaço do teatro? Na verdade, tudo contra.

Só sei que aquela atuação foi um petardo na minha alma, me fez ver que a vida era muito maior do que aquilo que meus poucos dois olhos podiam ver; Bibi me deu mais uns trinta olhos, sério mesmo! A dimensão emocional daquela atuação me colocou no teatro, me despertou este Alien que eventualmente sai de mim como saiu da barriga do cara no filme.

Bibi não era uma atriz espetacular, era muito mais que isso. E nem vou falar da extraordinária cantora, das décadas e décadas de atividade em altíssimo nível, da diretora e sei lá mais o que ela era. 

Não se tratava somente de sua apuradíssima técnica de encenação, da incrível projeção de voz ou do pleno domínio de palco – nada disso é pouco, mas dane-se isso. O caso é que nada disso, que já a faria uma enorme atriz, nada disso se comparava ao cão feroz que tinha dentro de si, ao enorme lobo que uivava em sua alma e se projetava como uma onda gigante quebrando sobre a plateia.

Vendo aquela inesquecível amante de Jasão no palco, senti um baque no peito, a vida latejando. Queria começar a minha vida...

Morreu Bibi Ferreira, uma força da natureza.

Blog Widget by LinkWithin