segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

A Incrível História do CPNES - Parte 14

O MEIO – Mega-sucessos do começo dos anos 80

Toda manifestação artística é influenciada pelo meio cultural, social e político em que está inserida. O que se ouvia no início dos anos 80, época na qual se amalgamou o Cobra Parada Não Engole Sapo, o grupo que, não me lembro se cheguei a comentar, mudou a cara de Brasília, do Brasil e, por conseqüência, do mundo, no campo das artes, da política e da filosofia? Quais eram os mega-sucessos musicais?

Sempre tive um pé atrás com grandes sucessos populares. A roda viva da produção musical determina qual música de qual artista será sucesso, segundo um rol de critérios do qual a qualidade não necessariamente faz parte. Portanto, me seduz a teoria de que, se todo mundo ouve alguma coisa, necessariamente essa coisa é uma merda. Mas nem sempre foi assim.

Com vocês, os 3 ultra-mega-sucessos do inicio dos anos 80, quando os membros do Cobra Parada se conheciam:

1. “Tá tudo muito bom... Bom. Tá tudo muito bem... Bem. Mas realmente, realmente, eu preferia que você estivesse... NUA”. Pode não parecer, mas há qualidade nessa letra. Primeiro pelo momento de anseio à liberdade não apenas sexual, como pode sugerir esse trecho da letra, mas, sobretudo, de expressão. Numa época de forte censura, essa música (letra, melodia e forma coloquial de cantar) ousou traduzir a expressão e o desejo de uma juventude que se transformava e exigia a transformação política e social do país. A linguagem pop de Evandro Mesquita e da Blitz em “Você Não Soube Me Amar” marcou uma geração e redefiniu o gosto popular. Segue mais um trechinho, para que vocês não pensem que era só aquilo:
      Foi besteira usar essa tática
      Dessa maneira assim dramática
      (Eu tava nervoso)
      O nosso amor era uma orquestra sinfônica
      (Eu sei)
      E o nosso beijo, uma bomba atômica...

2. “Me toma no crescer de um beijo muito louco, me implodindo aos poucos no universo a desvendar a vastidão do teu amor”. Assim cantava uma explosiva Zizi Possi, que já fizera certo sucesso havia alguns anos, desde 1979, com “Pedaço de Mim”, que cantou em dueto num disco do Chico Buarque. Mas explodiu mesmo 3 anos depois, com essa impactante “Asa Morena” de um compositor gaúcho chamado Zé Caradípia (que nunca emplacou mais nada). Talvez nenhuma outra cantora ou cantor fizesse dessa música o sucesso que foi (e que ainda é). Zizi Possi, com seu registro de voz único, a transformou num sucesso eterno.

3. “Hum... Mas se um dia eu chegar muito estranho, deixa essa água no corpo lembrar nosso banho. Mas se um dia eu chegar muito louco, deixa essa noite saber que um dia foi pouco”. O nome dessa música é “Muito estranho”, de um cara chamado Dalto. Porque fez tanto sucesso? Não faço idéia. Talvez porque Dalto fosse um cara realmente muito estranho. Um anti-cantor, um anti-estrela, anti-celebridade. Um tímido, feio, corpulento e desengonçado, que cantava com estranha leveza essa música romântica, na letra e na melodia. O refrão ele cantava em falsete. A introdução era poderosa (Pararan... pararan... pararãraaaaan...) e, de fato, era muito boa de ouvir.

E os respectivos refrões?
“Você não soube me amar, você não soube me amar, você não soube me amar, você não soube me amar”.
"Me faz pequena, asa morena, me alivia a dor, aliviando a dor que mata, me faz ser teu amor”.
“Cuida bem de mim então misture tudo dentro de nós...”

Os sucessos de Dalto, Zizi Possi e Blitz eram tocados a toda hora, em todo lugar, dentro dos ônibus, nas lojas, nas salas de espera dos consultórios. Cozinheiros, engenheiros, políticos e estivadores os cantavam. E quem há de negar que eram muito bons, cada um a seu modo? Eu não enfrentaria filas para ver um show do Dalto, mas “Muito Estranho” tinha lá suas qualidades. Não há comparação com as mega-bombas de hoje.

Já para ver a Zizi nós enfrentamos fila. Havia no Brasil, naquele momento, o Projeto Pixinguinha, que levava para os mais diferentes pontos do país, a preços simbólicos (algo como 10 reais hoje), shows dos maiores músicos do momento. Para Brasília vieram muitos, inclusive a Zizi Possi em seu momento de maior sucesso da carreira, com o seu mega-hit Asa Morena. Causou-me um impacto brutal vê-la, naquele momento, naquela fase da minha vida, cantar “me toma sem pensar num gesto muito forte, unindo o sul e o norte do meu corpo, frágil corpo, com a mais pura emoção”... Talvez ali eu, sempre frágil e inseguro, tenha percebido que a emoção engrandece e agiganta.

Nem me lembro mais que inesquecíveis (!) maravilhas eu vi no projeto Pixinguinha. Uma que me lembro, porque não daria para esquecer: Belchior fazendo ecoar “teu infinito sou eeeeeeeu...”, para depois finalizar com uma das maiores verdades já ditas sobre a juventude que vivíamos, nós os loucos:

Como é perversa a juventude do meu coração, que só entende o que é cruel e o que é paixão.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

A Incrível História do CPNES - Parte 13

A VERDADE NUA E CRUA

A parte 12 acabou com o discurso do coronel, que falou algumas abobrinhas do tipo “eu entendo a juventude transviada”, “liberdade com responsabilidade” e que tais, antes, é claro, de concluir com aquela pérola que encerrou o pôsti anterior, “não tenho filha, mas se tivesse, ela não seria dessas...”

Falando em "liberdade com responsabilidade", trata-se de uma expressãozinha besta inventada pelos militares, mas que até hoje muitos estúpidos, sem coragem para dizer simplesmente “liberdade” (devido ao medo de que vire "anarquia"), complementam com o fétido e brochante “com responsabilidade”. Falar “liberdade com responsabilidade” é destrutivo, além de ridículo, pois quando você trata com adultos no mundo corporativo, já se supõe, de antemão, a existência da responsabilidade. Pedir responsabilidade desacredita quem a ouve, que pensa “Quem é esse babaca para me pedir responsabilidade?”. Aí o feitiço se volta contra o feiticeiro. Portanto, caso você, caro gestor, líder ou chefete, quando quer uma equipe criativa e empolgada e para isso quer dar liberdade, cuidado, não use o tal “com responsabilidade”. Fale “liberdade” e ponto final. O resto vem de fábrica, está no sangue, creia.

Mas, lá nos idos de 1983, o coronel estava na dele. “Liberdade com responsabilidade” na boca dele era legal. Na verdade, o coronel era (não sei se ainda é, espero que esteja vivo e com saúde) um grande bonachão, um paternalista, que queria educar aqueles alunos (pelo menos os que ele quisesse que continuassem ali). Mas isso somente fomos perceber muito tempo depois. Talvez tenha se transformado em bonachão e paizão com nossa ajuda, com a nossa vitória final, quando claramente ganhamos a guerra, não sem algumas baixas, que sentimos até hoje.

Depois daquela apresentação, o CPNES ganhou força. E nós ganhamos cuidados redobrados, investigações pessoais, olheiros por todos os lados. Mas o pior, o terror de verdade, ainda estaria por vir. Os próximos pôstis falarão sobre os momentos mais tensos e as batalhas mais terríveis.

Por enquanto, pulemos um pouco no tempo, para cerca de um ano e meio após aquela apresentação, depois das crises e batalhas pelas quais ainda passaríamos: eis que já no final do curso ele me chama em seu gabinete. Não havia motivo aparente. Era um momento em que não estávamos aprontando nada (pelo menos de domínio público, que ele pudesse saber).

Não entendi porque me chamara. Coisa boa não devia ser. Será que deixou que eu fizesse o curso quase todo, só de castigo, para no final, me expulsar como exemplo? Ele seria tão sórdido?

Acho que se eu tenho uma qualidade, é a coragem. Sempre fui topetudo e enfrentei o desafio. Mas tenho um segredo, que confesso agora: sempre, até hoje, enfrentei esses desafios tremendo, com as pernas bambas, a respiração ofegante, com todas as reações de um grande covardão, que foi o que, na verdade, nua e crua, sempre fui (e continuo sendo). Mas um covardão que, por algum motivo, na hora do pau não arria. De alguma forma eu acabo encarando.

Pois bem, foi assim, tremendo, pálido, borrando as botas, que encarei o longo trajeto que me separava daquele gabinete, que era num outro bloco. Desci o elevador do meu bloco, cujo uso era proibido aos alunos (nunca gostei muito de proibições). Andei calmamente até a entrada do outro bloco (calmamente o cacete: estava nervosíssimo e até com enjôo, mas andei devagar para tentar ganhar fôlego, um andar que, para um estranho que observasse a olho nu, pareceria que eu estava calmo, como um Clint Eastwood ou um Charles Bronson, em Era Uma Vez no Oeste, indo para o duelo).

Entrei no elevador do outro bloco, apertei o número 3 (sorte, demoraria mais – o prédio tinha 3 andares). Na entrada da sala dele, a secretária me falou para me sentar e esperar. Entrou na sala do coronel. Esperei. Ela voltou e pediu que eu esperasse mais. Pensei no que de pior pudesse acontecer comigo: a expulsão, o desligamento. Voltaria para casa de minha mãe, com uma mão na frente e outra atrás, tendo perdido dois anos e meio na vida, sem diploma, sem nada, com quase vinte e dois anos. O que eu diria? Que não me comportei bem? Ou que resisti e lutei contra a ditadura, contra a opressão, que lutei por cada brasileiro, por uma sociedade mais justa, que lutei pela minha mãe também? Tudo bem, havia perdido a luta pessoal, mas havia lançado a semente, havia escavado um pouco e ajudado a desestabilizar os alicerces da ditadura, havia conhecido gente importante, os meninos do Paralamas, do Titãs, a Regina Casé. “Quem é essa gente?” Realmente, eles ainda não eram conhecidos. Mas conheci compositores, filósofos, políticos de esquerda. Cresci muito com isso. “E emprego, que é bom?” Bom, isso a gente vê depois, posso fazer artesanato, posso ir para o Rio de Janeiro... “O que tem lá no Rio de Janeiro?” Ah, tem um monte de gente, artistas, músicos. “Um monte de cariocas, isso é que tem lá!”

Simulei mentalmente aquele papo com minha mãe, minha irmã e meu cunhado, que quebravam alguns galhos financeiros. Não era muito animador. “Pode entrar, Moacir”, anunciou a secretária, inexpressiva, o que não me permitiu decifrar nada. Ao menos a secretária sabia meu nome. Também, tantas vezes eu havia ido lá... Ou seria porque ela estava com o documento da minha expulsão em sua gaveta, com o meu nome em letras garrafais?

Entrei na sala. Lá estava aquela mesma mesa gigante, lindamente opressora, com seus entalhes em relevo. Atrás dela e de alguma fumaça, o coronel e sua indefectível cigarrilha, seus tragos profundos e baforadas lentas e gostosas. Após aquela baforada percebi que o papo (ou a sentença?) ia começar.

Eu também já fui jovem. Eu entendo a juventude”. Acredite, caro leitor, ele repetiu isso pela enésima vez. Mas daquela vez foi diferente. Se tem uma coisa que já havia aprendido naquela época, era ler expressões, como um Dr. Lightman anos 80. E li que tudo estava bem. A baforada não fora provocativa, mas amistosa. Não havia dúvidas, relaxei na hora. Ele falava comigo como a um filho muito querido, que havia sido rebelde, sim, mas que ele "endireitara" com sua educação austera.

Eu gosto muito de você, Moacir. Você tem aquela força, aquele inconformismo da juventude. Eu sei o que é isso, eu já fui assim, e isso foi muito importante para mim”. E contou, durante mais de uma hora, suas diabruras na caserna, suas conquistas, falou sobre sua família, suas crenças, seus sonhos.

Eu sonho em comprar aquele bloco ao lado, e fazer de dormitório para os alunos. Você pensa que eu queria deixar vocês lá naquela vila, longe e empoeirada, que você tanto criticou na primeira peça? Aquilo é horrível, mas eu não podia dizer isso, é claro. Por mim, vocês ficavam aqui do lado, bem instalados. Eu passaria todas as manhãs, enquanto vocês estivessem na aula, em todos os quartos, veria a arrumação, se as camas estavam esticadas, os pratos limpos”.

Não me segurei e ri. Ri não de ironia ou escárnio, nem de provocação. Ri como a gente ri de um pai exagerado em seu amor por nós. Ri de compreensão. Ri com discordância, é claro, mas com compreensão e carinho. “Você ri, né?” É, respondi, não tem como não rir, coronel, porque é desnecessário, é uma invasão de privacidade, mas eu estou entendendo que a intenção é boa. Pode continuar.

Ele sorriu. Estava estava muito carinhoso e deu mais uma baforada. Aí pronunciou mais uma coisa que ficaria guardada em mina memória, como a pérola da filha que ele não tinha. Ele disse “escreva o que estou dizendo: um dia você vai me dar razão”.

Senti como uma revelação aquele seu carinho que transbordava, aquela sua vontade de nos transformar em gente de bem, em homens de caráter, segundo o modelo arcaico que ele aprendera durante toda sua vida, e no qual acreditava e educara seus próprios filhos e netos. Aquilo era amor. Esquisito, anacrônico, mas, sem dúvida, era amor.

Que me desculpe o carrancudo e incrédulo Humberto Laraia, meu amado personagem; desculpem-me os que persegui com meu ódio aos normais, aos medrosos e aos caretas; desculpem-me os amigos que me seguiram nessa cruzada. Mas o fato, a verdade, doa a quem doer, a verdade, não sei se quanto à cama arrumada, mas talvez até a isso, a verdade mesmo, nua e crua, é que o coronel, realmente, tinha toda razão.

Os meios não importam; continuo os achando estúpidos, mas realmente não importam. Constatei naquela tarde inesquecível, naquela longa conversa com um pai que nunca tive, que o amor é a única coisa que realmente constrói e transforma.

Onde estiver, coronel Telmo, sinta-se abraçado e beijado pelo Cobra Parada e pelo filho mais problemático e revoltado que você já teve.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

A Incrível História do CPNES - Parte 12

A VIDA É FILOPÉTICA

Alguns dos professores eram ruins, uns deles muito ruins, de um nível assustadoramente... assustador. A única explicação para nós, ingênuos, era o descaso da direção. Não cogitávamos que houvesse, por exemplo, uma indicação política ou militar. O fato é que era imperdoável. Um deles, não recordo o nome (ou prefiro não citar para não constrangê-lo em seu atual emprego, se é que alguém teve a coragem de contratá-lo), não dizia coisa com coisa, e quando tentava dizer, faltavam-lhe as palavras. Provavelmente, julgando-se esperto, improvisava e inventava uma palavra para ocupar o espaço na frase. Outra possibilidade é que ele imaginasse uma palavra e, confundindo, dissesse outra, de estrutura morfológica ou fonética semelhante. Já ouviram quando alguém, distraído, justifica dizendo “é que eu tava intertido”? Sempre que aparecia uma pérola daquelas, procurávamos no dicionário. Em vão. Era um inventor.

Algumas das pérolas que coletamos: planejório, espertício, empresalmente e por aí ia. Às vezes ele apenas queria falar difícil, mas errava, como quando quis dizer que algo que um aluno falara era uma tolice. No lugar de dizer estultícia (achamos esta, correta, no dicionário, notando ser perfeitamente cabível na situação), o tal professor disse: “ora, mas isso é uma espultícia”. Dispensável dizer que a sala caia na gargalhada.

Mas a palavra que mais gostávamos era uma que até perecia existir, tinha uma bela estrutura, era boa de se pronunciar. Todos nos apaixonamos por ela. Pensamos até em usá-la como nome da turma, na formatura. Assim que a disse pela primeira vez, nos entreolhamos, como a perguntar se era mais uma das dele. E era! “Filopética”.

Voltemos ao pôsti anterior, que acabou quando saímos no final da tarde com a decisão pela realização da peça, com pequenas censuras. Estávamos no ônibus, indo embora para a distante, empoeirada e desértica vila em que morávamos. Muitos iam em pé. Estávamos maravilhados. Todo aquele suspense, aquela reação do “sistema” e aquelas ameaças tiveram, ao contrário do intuito que certamente tinham, de nos amedrontar e disciplinar, outra reação completamente diferente. Se nossas intenções sempre foram provocar , havíamos acertado em cheio. Se não dessem a menor pelota para aquela peça, talvez nada acontecesse. Mas aquela reação nos deu muita moral, nos deu importância, nos sentimos chicos e caetanos, nos sentimos teatro de arena, arena canta zumbi, nos elevaram à categoria de importantes lideranças de esquerda. Era tudo o que queríamos.

Voltando ao ônibus, no trajeto Plano Piloto-Vila Desértica, discutíamos as censuras ao texto. Agora queríamos denunciar também a censura que sofrêramos. Resolvemos substituir todas as palavras riscadas pelo coronel não por outras que tivessem o mesmo sentido, mas por “filopética”, sim, a palavra que tanto adorávamos e que todos conheciam como mais uma das pérolas do professor. Isso seria fantástico, porque externaria a intromissão no texto.

Alguém perguntou: externaria mesmo? Ficaria claro que palavras haviam sido censuradas? É claro que não. Talvez algum percebesse e perguntasse depois o que fazia aquela palavra lá no meio, mas em geral, quase ninguém notaria e perderíamos uma bela oportunidade para afrontar, para marcar território, para mostrar força e ousadia, para ser topetudo! Assim, resolvemos explicar de algum modo.

E dois dias depois, a peça. Aqueles acontecimentos, a ameaça de desligamento, a pressão, as alterações no texto , fizeram com que a interpretação dos atores fosse ainda mais zombeteira. A experiência que tive, dois dias antes, de ficar sozinho com o coronel, que tragava com vagar e provocação sua cigarrilha (ele nunca havia feito aquilo em público), me deu munição. Gilsão, gordo como o coronel, fez um rei delicioso de se ver. Quando ia pressionar sua filha, a princesa, ou os súditos, tragava com vagar e provocação seu imenso charuto, segurando da mesma forma. Arletão, o escracho em pessoa, fez a princesa, a filha do rei, que se apaixonava e engravidava de um súdito, o Tiba. Sobral fez, com estranha (!) perfeição, a Ministra das Comunicações, uma evidentérrima paródia da mesma professora que, dois dias, antes nos havia salvado a pele (a minha e a da peça). Norberto parodiou um professor que pedia “dois cafézes” na cantina. Seu texto era curto, mas se alongava por uma eternidade, enxertado por “NÉs”, “TÁs” e “PÔs”. O povo delirava. Os outros professores, nas primeiras fileiras, seguravam as gargalhadas.

Não vou encher este pôsti com detalhes da história e da encenação, mesmo porque não eram, creiam, nenhuma maravilha. Você deve estar curioso é para saber como fizemos para que a palavra “filopética”, colocada três vezes no texto, desse a entender, claramente, que havíamos sido censurados. Pois é, depois de pensarmos muito, mudamos de ideia. Pensamos: se deixarmos claro que fomos censurados, o que vamos ganhar? Nada.

Nós queremos deixar claro que havíamos sido censurados ou queríamos fazer rir e, principalmente, provocar o censor?

Pois bem. Na hora da primeira “filopética”, o ator sai da velocidade normal da fala e pronuncia, pausadamente, “fi-lo-pé-ti-ca”. Isso, é claro, já fazia rir, primeiro intento cumprido. Todos os atores da cena congelaram neste momento. Entrou o Chakur: “a palavra ‘filopética’ substituiu a palavra originalmente colocada no texto, que se contundiu e não pôde vir a campo”. Segundo intento, a provocação, mais que cumprido, certamente.

Na segunda vez, a mesma coisa, só que desta vez é o Valter Jr: “devido a compromissos inadiáveis assumidos anteriormente, a palavra originalmente colocada no texto foi substituída por ‘filopética’, nossa querida curinga”.

Por fim, na terceira vez, entra o Markovitch e explica “a palavra original, desapareceu, há dois dias, a polícia trabalha com a hipótese de seqüestro, as buscas continuam.”

E seguiu-se a peça, até o fim. Aplausos gerais, o povo não acreditava no que tinham visto. Nascia o Cobra Parada Não Engole Sapo, justificando publicamente seu nome. Definitivamente, aqueles sapos de dois dias antes não haviam sido engolidos. Os aplausos não paravam mais. Não eram, evidentemente, pela qualidade do texto nem pelo maravilhoso desempenho dos atores, mas claramente pela nossa coragem de brincar com aquilo, de falar tudo o que estava entalado na garganta. Todos os 500 alunos acabavam de eleger, por aclamação, seus interlocutores: o CPNES.

Mas o espetáculo não terminaria ali. Ansioso por dar a última palavra, e também não engolir seu sapo, o coronel colocou a cereja no bolo. Pediu a palavra e subiu ao palco. Pediu que colocássemos uma mesa e uma cadeira para que ele falasse sentado (e com algo entre ele e os interlocutores - velha mania militar). Sentou-se e puxou uma cigarrilha do bolso. Puxou também seu isqueiro prateado. Olhou para a mesa e, nada vendo, pediu um cinzeiro. O pândego e mostárdico Dijon não se fez de rogado. Na falta de um cinzeiro, não teve dúvidas: pegou uma enorme lixeira de madeira, daquelas antigas de escritório, e colocou sobre a mesa. (Dez anos depois disso, fui conhecer o maravilhoso filme “Do Mundo Nada se Leva”, em que um poderoso vai à casa de “plebeus” e pede um isqueiro. Vem um gaiato com um isquerio do tamanho de um tambor e barulhentíssimo. A cena do filme é praticamente idêntica a esta, do coronel e do cinzeiro do Dijon).

O coronel, vendo aquele “cinzeiro”sobre a mesa, olha grave para o Dijon, que sai de fininho. O homem respira, afasta o cinzeiro para o canto da mesa, acende sua cigarrilha, dá uma longa baforada e, referindo-se à princesa interpretada pela Arlete, profere, grave e solene:

“Fiquem os senhores sabendo que eu não tenho filha, mas se tivesse, ela não seria dessas...”

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

A Incrível História do CPNES - Parte 11

O DIA EM QUE A TERRA PAROU


Já falei sobre vários membros do CPNES e em breve falarei de outros tantos. Agora, entretanto, é a vez da primeira vez, da estréia, do primeiro espetáculo, por mais inadequada ao objeto que seja essa palavra.

O Cobra Parada Não Engole Sapo nasceu do desejo, da necessidade e da vontade. Você tem sede de quê?

Desejo de fazer arte. Desejo era fazer arte em grupo, o que é um barato totalmente diferente de fazer arte individualmente.

Necessidade de gritar, de fazer-se ouvir, de marcar território, de resistir. Necessidade de simplesmente preencher o tempo.

Vontade de se divertir. Vontade de aparecer.

Nossa Cidade é uma peça de Thorton Wilder, que tinha (ainda tem, é claro) o poder de expressar coisas maiores da existência humana, por meio de coisas pequenas do cotidiano. Havia visto a peça em Campinas, em 1981, numa noite em que apenas eu e mais cinco testemunhas estávamos na platéia. A peça começou com atraso porque os atores decidiam se a apresentariam ou não, devido à falta de quórum. A força do texto, a qualidade e a garra dos atores diante daquela não-platéia, me arrebataram totalmente. Saí dali perplexo e pensando que se algo nobre existe, seria fazer teatro. Especialmente uma atriz, uma diva, teve uma atuação inacreditável. Ela quem anunciara ao público que a peça iria acontecer e que eles dariam o melhor de si. E deram. Pena que não me recordo o nome da atriz. Espero que alguém, dentre as centenas de milhares de leitores deste blógui, saiba seu nome.

Pois agora (agora, vocês sabem, é outrora) finalmente eu podia descarregar toda aquela impressão. Na nossa universidade quartel eu ouvia o que todos mais criticavam, reclamavam. Resolvi colocar num texto teatral, com o auxílio luxuoso da irmã Rosa (irmã em todos os sentidos, menos no de relação consangüínea). Nascia “Nosso Reino”, a peça. 

Paralelamente, arregimentávamos atores, pessoas que tivessem bom humor, vontade de transgredir e de se expor para dar vida à sanha revolucionária dos cabeças do CPNES, se é o grupo tinha cabeças e se é que algum dos cabeças prezava a cabeça que tinha, se é que algum tinha alguma cabeça.

O texto era bastante crítico, do sistema em que vivíamos ali, dos professores (porta-vozes do poder, para eles tudo estava bem, tipo “é assim mesmo”), das nossas condições financeiras, de transporte e de moradia, do descaso, da distância entre discurso e prática, entre a realidade e a ficção (que insistiam em afirmar ser realidade). Para os nossos donos (assim eles se julgavam), vivíamos em um mundo maravilhoso. Tudo a ver com contos da carochinha, com faz-de-conta. Nada mais apropriado, portanto, para dar uma porradinha do que uma peça tipo era-uma-vez. Assim era “Nosso Reino”.

Para arregimentar e animar as pessoas, Arletão, aquela de quem todos gostavam, a alegre, a divertida, a desbocada (e com tudo isso era a pessoa que mais dava porrada, mais falava a verdade). Se alguém perguntava “ih, o Campineiro é que está montando? Não é perigoso não?” Aí a Arlete falava que o Gilsão estava no grupo. Gilsão dava peso e seriedade, era um dissipador de medos.

Na primeira reunião, a leitura do texto para escolhermos quem faria o quê. Na primeira leitura, entre risos e animação, alguém perguntou, com aquela voz séria e grave, tirando o sorriso do povo e colocando aquela expressãozinha de preocupação. A pergunta era se podíamos fazer crítica assim, publicamente. Para "tranqüilizar" a todos, ponderei que “aquela gente” se pautava pelas normas e regulamentos, e que não havia nada escrito sobre isso, o que nos dava total tranqüilidade... (dei uma pausa)... "para espernearmos caso haja represália". Esse complemento, evidentemente, não ajudou muito a dissipar a preocupação. Gilsão, corintiano e fã do Vicente Matheus, completou: “quem entra na chuva é prá se queimar”, declaração que, por si só, não aliviava nada, mas vindo da boca do Gilsão teve o poder de tranquilizar e ao mesmo tempo energizar a galera. Realmente, naquele clima de censura à livre expressão, de disciplina militar e naquele contexto de “estertores do poder” em que viva o país, não tínhamos a menor idéia do que aconteceria. E olha que aconteceu...

Nas vésperas da estréia, cartazes espalhados, enfim, tudo pronto, a dois dias da apresentação o coronel, o big boss, pediu o texto. Mandei, um pouco temeroso. Era manhã. Passavam as horas e não sabia a resposta. À tarde, o Coordenador, o único civil de toda a cúpula, veio a mim trazendo na face a expressão aflita da gravidade, como a de quem carrega uma bomba. A peça não poderia ser encenada. “O homem tá puto! Como é que você escreve um texto desse?” Como pode? Que absurdo! Que estupidez, bradei, inconformado, dizendo que eu iria naquele instante falar com o homem. “Não adianta, só vai piorar as coisas. Se for só isso que acontecer, dê-se por satisfeito”. Por quê? “Nem te digo, nem te digo”. Saiu esbaforido. Fui ao Gilsão, com a mesma expressão aflita de gravidade. “Gilsão, fudeu!”.

Já era hora da aula, a maioria dos alunos na sala. Alguns do lado de fora, como sempre. E nada de professor, o que era absolutamente incomum, na verdade, inédito, naquele lugar que primava pelo horário. Da sala do fundo, a dos professores, saíram o Coordenador e dois professores, Maria Luiza e Jaime Esteban. Todos com a mesma expressão e passos de quem vai tirar o pai da forca. E a aula? perguntaram os alunos. Esperem.

Meia hora depois volta o coordenador e, sem explicação, dispensa todos, não haveria aula naquela tarde. Por quê? "Problemas..." A mim, depois que todos haviam saído, ele disse que minha situação era crítica. Como crítica, o que ele podia fazer a mim? Mandar embora, expulsar? É, respondeu, consternado.

Parecia que a terra havia parado. Ser expulso era a pior coisa que poderia acontecer a qualquer um ali. Voltar para casa de mamãe, sem dinheiro, sem emprego, sem faculdade, tendo perdido um ano... Por dentro eu tremia que nem vara verde. Nunca vi vara verde, não sei se ela treme ou não, mas posso dizer que eu tremia. Mas onde estava a minha fama de corajoso, que eu estava erigindo?

O último ensaio estava marcado para depois da aula. Arletão, que devido à falta de aula havia antecipado o ensaio, veio a mim: “vamo lá, guri! A turma está esperando”. Falei que não tinha condições de comandar o ensaio. “Larga de ser bundão. Vai deixar esse bando de milico fazer isso com você? Se fizerem alguma coisa, a gente dá um jeito, faz uma revolta, diz que vai todo mundo junto, quebra tudo...”

Fui, fizemos um ensaio delicioso, durante o qual me esqueci que a peça provavelmente não aconteceria e que estava a ponto de ser expulso. Assim que acabou o ensaio, desço ao nosso andar, com Gilsão, Arlete, Tiba e a Rosa. Eles esperaram ali fora. Entro, com o Gilsão, na sala do coordenador. “E aí?” Logo vi, na cara do Chiquinho, que a expressão era outra, bem melhor.

Ele me contou que os professores Maria Luisa e Esteban, além dele próprio, haviam tido uma longa conversa com o coronel, tentando demovê-lo da idéia de impedir a peça e de me expulsar e... conseguiram. Mas o coronel queria falar comigo. Vá agora lá que ele está te esperando.

Era a primeira vez que entrava na sala do Coordenador Geral. Poucos, ao longo daqueles 30 meses, entraram ali, se é que mais alguém além de mim entrou ali. Eu entraria ali outras vezes, em circunstâncias semelhantes, outras piores, outras melhores.

Lá estava ele, escondido atrás daquela enorme mesa de madeira, com desenhos em alto relevo talhados. Não me olhava direto nos olhos. Dava longas e provocativas baforadas na sua cigarrilha.

"Eu já fui jovemeu entendo essa rebeldia".

Na minha cabeça veio imediatamente a maravilhosa música do Luiz Melodia, “eu entendo a juventude transviada”.

Primeiro veio um blá-blá-blá paternalista. Depois um tom ameaçador. Eu pouco ou nada falava. No final, pediu algumas modificações no texto, trocar coisas inconvenientes, como disse ele. Desci e fui direto para o ponto de ônibus, onde todos esperavam ansiosos. Desci festejando. "Esses caras vão ver, cutucaram onça com vara curta!" Durante o trajeto que nos levaria na distante vila onde morávamos, decidimos, em festa, como alteraríamos o texto onde ele pediu. Decidimos pegar ainda mais pesado. Ele pediu para “substituir algumas coisas”, mas não falou por quais coisas... Estávamos endiabrados!

No próximo pôsti, os hilários e transformadores acontecimentos do dia seguinte, o dia em que o Cobra Parada Não Engole Sapo de fato nasceu e mudou a cara de Brasília, do Brasil e, por conseqüência, do mundo, no campo das artes, da política e da filosofia.
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