O cara era um boêmio. Tinha o queixo meio torto, aliás, quase não tinha queixo, por conta de um parto complicado e da barbeiragem do médico que o puxou pela cabeça com um instrumento e lhe quebrou o queixo. Ou seja, seu parto foi um parto. Tinha dificuldade para comer e sentia certa vergonha de comer em público, mas beber, podia... E bebia, ein! Figura inteligente e alegre. Estudava medicina, mas preferia a música, que compunha nos bares, matando aula. Abandonou o curso, evidentemente. Não iria longe como médico. Ia atrás de onde tinha bar, música, mulheres e boêmios. Adorava subir o morro, onde tinha vários amigos. Antes de Nöel, o samba era coisa do morro, chegou a ser proibido lá em baixo, para as pessoas “de bem”. Amava sua Vila Isabel, também rica em bares... e samba
Quem é bacharel
Não tem medo de bamba
São Paulo dá café
Minas dá leite
E a Vila Isabel dá samba!
Uma tarde, lá por 1930, voltando do morro, pensava na penúria daquela gente quando passou pelo quartel e a banda estava executando, no bom sentido, o hino nacional. Qualquer mortal passaria e pronto. Mas o tal do Nöel não era qualquer um: chegou em casa, misturou o hino com a penúria e compôs “Com Que Roupa”, sim, aquele delicioso samba que todo mundo conhece (“com que roupa eu vou pro samba que você me convidou”). Da próxima vez que ouvir essa música, perceba como o início é feito em cima do nosso hino.
Agora eu vou mudar minha conduta
(Ouviram do Ipiranga às margens plácidas)
Eu vou à luta, pois preciso me aprumar
(De um povo heróico o brado retumbante)
Eu vou à luta, pois preciso me aprumar
(De um povo heróico o brado retumbante)
Quando a música foi lançada, fez sucesso instantâneo: todo mundo cantava, foi a mais executada naquele carnaval.
Nöel trouxe o samba do morro para o asfalto, para a classe média. Num período de sete anos, entre noites de música e embriaguez, ressacas, desilusões amorosas e o tratamento de sua tuberculose, Nöel compôs mais de 200 músicas, dezenas são obras-primas absolutas. As melodias e as letras de Nöel são tão boas que sobrevivem uma sem a outra. Ainda quero ouvir um disco instrumental com músicas do Nöel. E as letras? Escrevia verdadeiras crônicas em verso; criava visões inusitadas, sempre buscando imagens sugestivas para transmitir sua visão e seus sentimentos, que aliás, eram (e ainda são) os sentimentos universais, sentimentos do povo. Veja só como acaba “Meu Barracão”, em que um ex-morador do morro fala da saudade de um barraco em que morou:
Mas veio lá da Penha hoje uma pessoa
Que trouxe uma notícia do meu barracão
Que não foi muito boa
Já cansado de esperar, saiu do lugar
Eu desconfio que ele foi me procurar..
Que trouxe uma notícia do meu barracão
Que não foi muito boa
Já cansado de esperar, saiu do lugar
Eu desconfio que ele foi me procurar..
Ao animar um barracão, dando-lhe sentimento e poder de decisão, Nöel conseguiu transformar uma tragédia (um barraco arrastado provavelmente pela chuva – sim, isso sempre existiu) num ato de amor e amizade. Nöel vê tudo de um ponto de vista humano e emocional. Suas mulheres inspiraram muitas canções, como “Três Apitos”, que ele fez para Josephina, uma de suas namoradas, uma operária. Nessa música, divina, ele coloca toda a angústia que acompanha os apaixonados, além de animar coisas, como chaminé e fábrica, dando-lhes sentimentos e intenções.
Josephina, a Fina |
Vem ferir os meus ouvidos Eu me lembro de você.
Mas você anda sem dúvida bem zangada
E está interessada Em fingir que não me vê.
Você que atende ao apito
De uma chaminé de barro,
Por que não atende ao grito tão aflito
Da buzina do meu carro?
Você no inverno
Sem meias vai pro trabalho,
Não faz fé com agasalho, Nem no frio você crê.
Mas você é mesmo
Artigo que não se imita,
Quando a fábrica apita
Faz reclame de você.
Emoção mesmo sentia por Ceci, o grande amor de sua vida, embora fosse casado (meio à força) com outra mulher. Ceci era uma cantora de cabaré, cantora y otras cositas más, o que tornou complicado que vivessem juntos. O amor deles foi tórrido e duradouro. Vejam-na na foto.
Nöel ficou doente, tuberculose, e se afastou para Minas, para se tratar. Ficou um bom tempo lá, mas bastou melhorar um pouquinho e ele voltou com tudo para os amigos de boemia, dentre os quais Cartola, Vadico e Aracy de Almeida (que várias vezes o levava carregado para casa), para as mulheres e, evidentemente, para Ceci. É claro que a doença também voltou e desta vez definitiva e rápida. Mas deu tempo de fazer músicas maravilhosas, como “Último Desejo”, poesia para ler, reler, decorar, recitar, cantar, sobretudo cantar, porque a melodia é das mais lindas já compostas em toda a história deste louco mundo. A música é sua despedida de Ceci, e praticamente da vida. Uma música carregada de amargura que ele mandou seu amigo Vadico entregar a Ceci. Ceci recebeu ao mesmo tempo a letra da música e a notícia da morte de Nöel.
Nosso amor que eu não esqueço
E que teve seu começo
Numa festa de São João
Morre hoje sem foguete
Sem retrato e sem bilhete
Sem luar sem violão
E que teve seu começo
Numa festa de São João
Morre hoje sem foguete
Sem retrato e sem bilhete
Sem luar sem violão
Perto de você me calo
Tudo penso nada falo
Tenho medo de chorar
Nunca mais quero seu beijo
Mas meu ultimo desejo
Você não pode negar
Tudo penso nada falo
Tenho medo de chorar
Nunca mais quero seu beijo
Mas meu ultimo desejo
Você não pode negar
Se alguma pessoa amiga
Pedir que você lhe diga
Se você me quer ou não
Diga, que você me adora
Que você lamenta e chora
A nossa separação
Pedir que você lhe diga
Se você me quer ou não
Diga, que você me adora
Que você lamenta e chora
A nossa separação
E às pessoas que eu detesto
Diga sempre que eu não presto
Que o meu lar é um botequim
Que eu arruinei sua vida
Que eu não mereço a comida
Que você pagou prá mim
Diga sempre que eu não presto
Que o meu lar é um botequim
Que eu arruinei sua vida
Que eu não mereço a comida
Que você pagou prá mim
Quando morreu aos 27 anos, já tinha mais de 200 músicas, dezenas delas obras-primas. Consta que morreu cantarolando. Por tudo isso a música de Nöel Rosa é moderna e atual, atemporal, porque amores frustrados e tristeza sempre existirão. Alegria e amor, idem. E ouvidos delicados e mentes curiosas e perspicazes também.
Quer mais uma prova do quant o cara é bom?
Olha o time que se juntou para gravar um disco duplo, o “Songbook Nöel”, gravado em 1991, com 21 músicas maravilhosas: Chico Buarque, Caetano Veloso, Tom Jobim, João Bosco, Djavan, Maria Betania, Gal Costa, Carlos Lyra, Nelson Gonçalves, Luiz Melodia, Ney Matogrosso e uma porção de gente desse nível. Imagina o disco que saiu da mistura dessa gente e com o gênio Nöel Rosa. Um disco que reúne tanta gente boa cantando músicas do melhor de todos tem que estar entre os 10 mais, entre os 5 mais, entre os 1 mais!
Boa viagem com Nöel Rosa, o Machado de Assis da música brasileira.