Meus delírios nervosos
Cansei de esperar por ela
Toda noite na janela
Vendo a cidade a luzir
Toda noite na janela
Vendo a cidade a luzir
Nestes delírios nervosos
Dos anúncios luminosos
Que são a vida a mentir
Dos anúncios luminosos
Que são a vida a mentir
Veio-me essa música ao olhar, pela janela, as luzes da cidade piscando como estrelas no oceano negro da noite. Trata-se de uma música do Silvio Caldas com poesia de Orestes Barbosa, o mesmo que escreveu este outro presente para a vida:
A porta do barraco era sem trinco
E a lua furando nosso zinco
Salpicava de estrelas nosso chão
Tu pisavas os astros distraída...
Bastariam esses dois pequenos trechos para colocar Orestes Barbosa entre os grandes poetas brasileiros, mas como a poesia feita para música, neste país iletrado, não atinge o status de poesia, você, sobrinho apedeuta (não por sua culpa), pode nunca ter ouvido falar do cara, embora saiba que José Sarney pertence à Academia Brasileira de Letras. Ah, não dá para deixar de mencionar que Silvio Caldas compôs as duas melodias, imortais. Esta última se chamaria “Foste a sonoridade que acabou”, não fosse o poeta Guilherme de Almeida sugerir chama-la de “Chão de Estrelas”. Guilherme de Almeida escreveu, 30 anos depois:
"Nem de nome eu conhecia o autor. Mas o que então dele pensei e disse, hoje o repito: uma só dessas duas imagens - o varal das roupas coloridas e as estrelas no chão (... ) - é quanto basta para que ainda haja um poeta sobre a terra".
E tem mais. Manuel Bandeira escreveu o seguinte sobre Orestes:
"Se se fizesse aqui um concurso (...) para apurar qual o verso mais bonito de nossa língua, talvez eu votasse naquele de Orestes: ‘tu pisavas os astros distraída..."'
A primeira letra, moderníssima, que fala de delírios nervosos dos anúncios luminosos, é “Arranha Céu”, cujos versos foram gravados (no início dos anos 80) no interior do meu crânio, por um tal de Arrigo Barnabé, que a recita em “Diversões Eletrônicas”. Os versos, compostos décadas, antes haviam lhe servido de inspiração para uma das criações mais delirantes e revolucionárias da música brasileira. Isso é mais uma prova de que só se faz algo inovador e revolucionário com conhecimento do passado. Por isso, quem quer ser moderno, tem que conhecer o antigo, músicas, livros, filmes, etc.
Se neste momento me disseres “Ah não, Tio Moa, vou ter que ver aqueles filmes em preto-e-branco? Que horror!”, responder-te-ei: não me chame de Tio Moa, você não é meu sobrinho, saia já deste blógui!
A quem quer arranhar o céu
Aos sobrinhos malucos do Tio Moa, que gostam da verdadeira arte, que saboreiam a invenção, bebem ousadia, fazem amor com o inusitado e sonham alto a ponto de arranhar o céu: houve um tempo em que se ousava muito, em que se criava num nível muito mais profundo que nos tempos atuais. Hoje (sem inútil saudosismo) a criação é rasa e muito limitada a “releituras criativas”, já que as artes, de modo geral, e a música, especialmente, pouco fazem senão repetir modelos (vejam a onda retrô, verdadeira obsessão, não trazida por outra coisa senão pela preguiça ou incapacidade de criar).
Noite muito fria de inverno no início dos anos 80, arquitetura arrojada do Teatro de Arena do CCC, em Campinas. Ao ar livre, com névoa, nuvens esparsas e estrelas tímidas, Arrigo Barnabé com seu sobretudo negro e cabelos volumosos, regia o revolucionário e performático Clara Crocodilo, show do disco que contém a delirante “Diversões Eletrônicas”, que havia ganhado um festival da TV Cultura anos antes e que, pasmem, foi inspirada na mesma Arranha Céu.
Clara Crocodilo, o disco, retém tudo aquilo, mas com maior qualidade no tratamento sonoro, coisa que, evidentemente, um show ao vivo não consegue. Como toda obra revolucionária, não é um disco fácil de ouvir, mas os ávidos sobrinhos do tio Moa, dotados, além de alma, de bons ouvidos, se deliciarão.
Trata-se de uma experiência sonora e sensorial arrebatadora. As músicas, atonais e dodecafônicas, de Arrigo, são construídas sobre um piano descontrutivista (expressão que não significa nada além de “ouça que é bom, diferente, mas bom”) de Arrigo, sobre metais (trombones, clarinetes e sax), e sobre um outro naipe de metais, mas este extraído de vozes de sopranos femininas, Susana Sales, Tetê Espíndola e Vania Bastos (todas depois construíram sólidas carreiras solo). Como exemplo, o delirante refrão “Era um balcão de bar de fórmica vermelha”, em “Diversões Eletrônicas”, repetido por longos minutos, substitui o que normalmente seria o papel dos metais, enquanto estes ficam solando transversalmente, enquanto a voz arranhada de Arrigo narra as epopéias urbanas. Os temas: o amor fácil, o desejo e a cena noturna das grandes cidades, aquelas dos anúncios luminosos.
O disco todo é uma experiência, mas alguns momentos são particularmente magníficos, como o coro do balcão de fórmica vermelha, especialmente quando ele é retomado após uma pausa com um canto quase operístico, quando os metais também retornam num glorioso petardo.
Canto quase de ópera, praticamente à capela:
Depois, quando clareou
E eles foram pro hotel
Ela viu um bêbado jogado no chão
E sorriu perversa
E eles foram pro hotel
Ela viu um bêbado jogado no chão
E sorriu perversa
Sorriu perversa
Sorriu peeeerveeeeersaaaaaa
Aqui é retomado o tema principal:
Só você não viu
Mas ela entrou, entrou com tudo
Naquele antro, naquele antro sujo
Você nunca imaginou, mas eu vi
No luminoso estava escrito
"diversões eletrônicas"
Mas ela entrou, entrou com tudo
Naquele antro, naquele antro sujo
Você nunca imaginou, mas eu vi
No luminoso estava escrito
"diversões eletrônicas"
E aqui voltam os metais pesados e o refrão pesadíssimo:
Era um balcão de bar de fórmica vermelha
Que momento!!!
O caos que se estabelece em muitos momentos é apenas aparente: todos os instrumentos e vozes sabem muito bem para onde vão e quando voltarão a se encontrar. E esses reencontros são êxtases.
Clara Crocodilo é um dos 10 mais importantes discos da música brasileira, segundo o prestigiado crítico musical Tio Moa. Mas há três recomendações para ouvi-lo:
- coloque em alto volume;
- pare na frente das caixas de som e se deixar conduzir;
- tire da sala quem você acha que não está preparado.
Para muitos críticos, Clara Crocodilo é uma obra-prima que seria o marco inicial da terceira revolução da MPB (depois da Bossa Nova e da Tropicália). A tal revolução não se confirmou, ou não se popularizou, porque logo em seguida veio um movimento muito mais acessível ao povo, o do Rock Nacional de Titãs, Barão Vermelho, Legião Urbana e tantos outros. Não foi popular, mas é imortal e influenciou a criação cultural (Humberto Laraia usou o sobretudo e algumas falas de Arrigo)
Epílogo: viajar é mais, eu vejo mais a rua
Clara Crocodilo não é um disco para se ouvir todos os dias. Mas quando se ouve uma vez, tem que se ouvir várias vezes seguidamente. E nestes dias em que o ouvi várias vezes, as sensações da época em que o conheci me vieram fortes nesta gelatina cinza que carrego atrás dos olhos e neste músculo sanguinolento que fica bem no centro do meu peito (se no teu peito fica à esquerda, vá a um médico com urgência).
E justamente neste final de semana pintou uma festa na casa de uma figura ímpar da minha vida e daqueles tempos, o Ari, que já apareceu discretamente num ou noutro pôsti sobre o Cobra Parada. E lá, além de rever o Ari, para quem o tempo não passou, acabei revendo um mestre, o Zé Mauro, com quem tive aulas de teatro no início da formação do Cobra Parada. Mais que técnicas de teatro, que qualquer um poderia passar, o Zé me passou o espírito combativo, a alma artística, o amor pelo trabalho e o jeitão de ensinar, que carrego ainda hoje, como professor universitário.
Zé Mauro uma vez me fez um elogio público, comentou a um grupo que eu era um louco responsável. Veja bem, sobrinho atento: não era algo do tipo “é louco, mas é responsável”. Não: era um elogio igual, equilibrado, tanto à loucura quanto à responsabilidade. Isso mudou a minha vida, porque me carregou de das responsabilidades de ser responsável e de ser louco, responsabilidades que procuro honrar até hoje.
Viajar no tempo é bom demais, principalmente quando a viagem nos traz bônus extra: os leitores que, por algum motivo explicável pela psicologia, lêem costumeiramente este blógui, sabem o impacto que me causou o “Meia Noite em Paris”, do Woody Allen, em que o protagonista viaja no tempo a partir de um carro que parava à beira de uma escada numa rua de Paris. Pois o Zé Mauro, que acaba de retornar de quatro anos na cidade luz, contou-me que passava diariamente por ali...
Não sei se ela veio da lua ou se veio de marte me capturar
Só sei que quando ela me beija eu sinto um gosto diferente
(uma coisa estranha, um negócio esquisito)
Meio amargo do futuro
Meio amargo do futuro