segunda-feira, 2 de julho de 2012

DÉRCIO MARQUES, O PRÍNCIPE DO SERTÃO


Dentre minhas inúmeras e reconhecidas qualidades, destaco a modéstia, que não apenas me impede de relacionar as demais, como me obriga a reconhecer uma das minhas famosas imperfeições: a total falta de elegância. Como é sabido, e minha amiga Estela sempre me lembra, visto roupas tão inadequadas que fazem minha barriga parecer volumosa e adiposa, mesmo sendo ela feita apenas de rijos músculos abdominais. Uso cinto bege coordenado com sapato da mesma cor, já usei celular no cinto e, quando tenho coragem, uso aquela bolsinha conhecida como capanga. Algumas amigas seguidoras deste blógui, tipo a Fernanda, sempre sutil, devem estar pensando em me dizer:
“Não é bem assim, você pode não usar roupas muito elegantes, mas elegância não está só nas roupas”
Onde mais está a elegância, então, Fernanda?
“Nos modos. Tem pessoas sem habilidade no uso das roupas, mas que tem modos elegantes”.
Ah, você está sugerindo que meus modos são elegantes?... E as incontáveis vezes em que saí de restaurantes com a camisa toda manchada de molho? Nem vou mais a restaurantes italianos por conta disso. Lembra aquela vez em que você me fez sair direto do restaurante para uma loja comprar uma camisa nova? Até me pagou a camisa!
“Amiga é prá essas coisas, não liga não, às vezes acontece...”


Sim, amigas, seguidores e visitantes em geral: falta-me elegância. Consequentemente, e para decepção geral, elegância não é o forte deste blógui. Mas não há mal que sempre dure: vou tratar já de inchê o blógui de elegânça: convidei o cantadô Dércio Marques prá dar uma passadela por aqui. E num é qui ele veio mesmo?


Primeiro, ele veio pelas memórias deste autor: 1980, ainda ditadura militar, em pleno horário nobre, os produtores da Globo quiseram reeditar os grandes festivais e deixaram rolar, por exemplo, Baby Consuelo cantar deliciosa e provocantemente “você pode fumar baseado, baseado em que você pode fazer quase tudo”. E deixaram também um tal de Dércio Marques interpretar uma música do Elomar, um grito sertanejo, agônico e carregado de revolta. Só que comigo acontece sempre. E quando convido uma mulher para jantar e, na hora de pagar a conta, vejo que esqueci o cartão? Isso é elegância? E as piadas constrangedoras que faço?


“u'a vontade aqui me dá / dum dia arresolvê / quebrá a cerca da manga / e dexá de sê boi manso / e dexá carro dexá canga / de trabaiá sem discanço / me alevantá nos carrasco / lá nos derradêro sertão / vazá as ponta afiá os casco / boi turuna e barbatão / é a ceguêra de dexá / um dia de sê pião / de num comprá nem vendê / robá isso tomem não / de num sê mais impregado / e tomem num sê patrão...”
Aí abaixo, a música com a gravação original de Dércio Marques (na capa do vídeo o autor, Elomar)


E o Dércio Marques cantou todo elegante, ao mesmo tempo leve e firme. E sua voz de trovador transmitindo dor e gravidade silenciou aquela platéia chata de festivais, como um Romarinho em La Bombonera. Foi impressionante. E ele foi prá final, mas, afinal, era a Globo, e adivinha quem ganhou o festival? Se fosse resolver, iria te dizer que foi minha aaaaaaaaaaaagonia, para alegria da Fernanda.
Tempos depois dessa verdadeira revelação que foi ver Dércio Marques, estava eu já em Brasília, em meio a uma das muitas prosas poéticas e lunares com o grande Panta, quando eu perguntei se ele conhecia o Dércio Marques. 


“Se conheço? E ele não é lá de Uberaba? Já andamos muito por esse sertão... Carlão, mais uma...”
“Carlão, mais uma”, na boca do Panta, significava, para meu deleite, “senta que lá vem história”.
Prá quem não leu um pôsti antigo deste blógui (A incrível história do CPNES - Parte 2, de julho de 2010), o Panta é aquele menino cujo pai batizou sarcasticamente de “Clube da Esquina” os encontros dos jovens Lô, Bituca, Beto e Toninho na frente da sua casa. Não, leitor curioso, não vou falar dos Beattles das alterosas. O pôsti hoje é sobre Dércio Marques, o príncipe do sertão. Pois o Panta, cansado da capital mineira, voltou às roças de Uberaba, onde no final das tardes se podia ouvir pius dos inhambus e sabiás e bois tristonhos berrando as histórias do lugar. E foi ali, no sertão de lençóis de cambraia, perfume de Assa-Peixe e moças lindas em vestidos floridos, que Pantaleão conheceu aquele príncipe de verdade, disfarçado de elegante cantador: Dércio Marques. 


Panta me contou das andanças que fizeram pelo sertão. Dércio Marques era um Villa Lobos: entrava por dentro do Brasil garimpando diamantes, que lapidava com sua voz de cantador, com a riqueza dos arranjos, com os dedilhados de sua viola e com sua elegância de príncipe que, de fato, era. Mas, veja bem, ele não era do tipo que pegava qualquer coisa, não. Pegar qualquer porcaria, botar um arranjo legal e cantar bonito e, é fácil; até o Caetano, as vezes no silencio da noite, se sentindo muito sozinho, faz, por sinal, divinamente. Dércio trazia todos os ritmos e estilos, todos os bons cantadores, não como riqueza folclórica, mas como beleza mesmo. 


Certo dia, no interior de Pernambuco, avistou, na varanda de um pequeno castelo cercado de sarsais, uma jovem donzela muito linda, mas também muito triste. O príncipe olhou para ela e sorriu, mas ela só chorava. Foi quando ele sacou a viola do lombo do cavalo e cantou uma se suas músicas mais tristes. No final da cantoria, a moça sorriu e acenou. O príncipe respondeu com um aceno elegante, guardou a viola e seguiu viagem. Panta viu que a moça tinha ficado caidinha pelo Dércio e pensou que, se fosse com ele, subia lá e agarrava a moça. Essas artistas são mesmo estranhos. Já começando a seguir o cantador mata adentro, Panta ainda teve tempo de se virar e perguntar o nome da donzela, mas não entendeu bem a resposta, pareceu-lhe que ela respondeu Neide ou Lady, talvez Cleide.


A gente nunca sabe se as histórias do Panta são reais ou não. A própria existência do Panta é questionada. Eu mesmo às vezes me pergunto, quando a razão me domina mais do que eu gostaria, se ele de fato existe ou se é uma fuga da minha mente. O fato é que ouvir Dércio Marques é viajar de primeira classe para o sertão. Tudo é lindo e calmo ali. Algumas de suas faixas instrumentais levariam até o exigente Fábio a falar “que maravilha!”, muito embora, segundos depois completasse com o indefectível “mas Pat Metheny é melhor”. 


Durou dias e dias, talvez meses, aquela noite em que o Panta me contou das viagens com o cantador mais elegante que esse sertão já viu e que culminaram com a gravação do disco do qual o Panta mais gostava: Fulejo. Pois desde que, na semana passada, eu soube que o cantador saiu para nova viagem, desta vez sem o Panta, eu tenho ouvindo o “Fulejo”, o maravilhoso “Terra, Vento e Caminho” e mais um monte de discos do Dércio Marques, o que tem me valido como uma mega injeção de paz, beleza e elegância nas veias e na alma. Desde então não tenho mais dores de cabeça.

Semana que vem, convidarei a jantar alguma linda donzela, quem sabe a Donzela dos Sarsais, que a esta altura certamente já é uma Senhora dos Sarsais, para jantar comigo num restaurante italiano. Sairei de casa tão elegante que até a Estela aprovaria. E mais: aposto com quem quiser que não esqueço o cartão do banco e que saio do restaurante de camisa limpa. Quanto às piadas constrangedoras... bem, ninguém é perfeito.  


E, para fechar este pôsti do modo mais elegante, nada como ver uma entrevista do próprio Dércio Marques falando sobre música e sobre seu papel.


4 comentários:

Sra. dos Sarsais disse...

Cavaleiro, tua capanga é da linhagem dos alforges, conserva "o mais instante", os olhos roxos "das ansa" do viver. Cabe o casto e o lascivo.Nada mais estético.
Linda evocação ao último cavandante!
"pela janela tudo que me resta
Uma lua nova e outra minguante"

Bj e obrigada pelo carinho de sempre.

Sarsais

Anônimo disse...

Poxa, fiz um grande comentário na hora de publicar perdi... Falamos pessoalmente! Bjs. Fer

Anônimo disse...

Apois, cabra malungo. Afirmo que o Panta existe e fez aniversário no dia em que fizestes este pôsti. Belo presente, véio vô-Moa-Móça. E aquela versão da música "disco voador" (gravada anteriormente pela dupla Léo Canhoto & Robertinho)que tá no disco fulejo é muito linda. O Dércio viajou desta vez sem mim, mas logo logo nos veremos de novo.
Ouça também o disco "Semente". E também a Doroty, irmã do Dércio, uberabense tamém uai!
Enquanto isso, Uberaba tá lá do mesmo jeito, cheia de boi zebu, mas cada vez menos parecida com Pamplona e sua festa de são Firmino...
O Panta diz que manda beijos, tio Moa. E que agradece muito esse pôsti e a viagem que nele começa.
Carlão, mais uma!!!!!!

Tio Moa disse...

Tá aí o maravilhoso e inesquecível Panta!!! Panta, desculpe duvidar da sua existência, mas sabe como é... To ficando cada vez menos novo... E além disso tinha que provocá-lo para que reaparecesse. Desde que a Cleide (você precisa conhecê-la - ei, eu também) me falou que o cabra tinha ido, eu nao consigo mais ouvir outra coisa. E tem sido maravilhoso dormir ouvindo suas músicas - é como ler um bom romance. Ontem trouxe prá minha máquina um disco da irmã Doroty (aquele da capa bonita que tantas vezes peguei nas mãos, mas nunca cheguei a comprar), mas ainda não o ouvi. Grande e fraternal beijo!!!

Postar um comentário

Blog Widget by LinkWithin