segunda-feira, 30 de agosto de 2010

A Incrível História do CPNES - Parte 4

Não quero me repetir, por isso, sem delongas, apresento o membro número 5. Lembro apenas que, ao falar de algum membro, acabarei abordando o grupo Cobra Parada não Engole Sapo, cuja atuação no início dos anos 80 mudou a cara de Brasília, do Brasil e, por conseqüência, do Mundo, no campo das artes, da política e da filosofia.


Membro número 5. Uma noite, após uma apresentação de “A Morte de Humberto Laraia” que tinha na platéia nada mais nada menos que o Caetano (sim, ele, o Veloso), fomos todos ao Beirute. Eu poderia dizer que o Caetano foi à nossa peça porque estava louco para vê-la, porque sua fama tinha chegado a ele, etc. Mas, como vocês sabem, eu prezo a verdade e prefiro contar o real motivo da ida do Caetano. Na noite anterior ele havia feito um show no Teatro Nacional; o ingresso era caríssimo para nossos padrões. Mas como o Tiba queria catar uma menina que era fã do Caetano, ele tanto fez que conseguiu entrar no camarim para pegar um autógrafo. Sabem como era o Tiba, aquela carinha de caipira desprotegido, aqueles olhos negros como a noite...

Bem, no dia seguinte estava lá o Caetano na platéia do CPNES, louco para ver a peça. Aplaudiu demais, foi ao nosso camarim e depois saímos todos e fomos ao Beirute. Todos não. O Tiba foi atrás da menina, levar o autógrafo. Caetano estava com uma cara péssima. Mas ao seu lado na mesa estava alguém cuja conversa mudou a sua noite e o influenciou a compor seu disco mais moderno e surpreendente, além de um dos mais inspirados.

Quem estava ao lado do Caetano? Vamos lá, desde o início:

Ela ainda era uma semente do que seria quando, descendente direta da linhagem de abastados senhores do café, vivia entre a cruz e a espada. A cruz era a religião, que, como se sabe, era usada pelos senhores para alentar os escravos e convencê-los de que havia algum sentido no fato de trabalhar de sol a sol sem ganhar lhufas, ou, ganhar, no máximo, o que Luzia ganhou atrás da horta (aos sobrinhos: não foi salsa o que Luzia ganhou atrás da horta, nem cebolinha, e certamente também não foi rúcula ou erva doce).

Voltando aos escravos, eles eram negros, como se sabe. Também eram, como se sabe, bem dotados... de força e determinação. Para acalmá-los e desviá-los dessa coisa de justiça terrena, os senhores pregavam a religião, lembrando que após a morte a vida é eterna e, portanto, muito mais duradoura que a vida antes da morte. Lá os escravos seriam ricos e comeriam aquelas branquinhas sem precisar ser jogador de futebol nem cantar pagode. Os pobres seriam ricos e os ricos seriam pobres e lamberiam seus pés chulezentos, o que podia ser considerado o inferno. Assim os mantinham serenamente agradecendo as chibatadas.

Voltando ao membro número 5, na sua adolescência continuava a viver entre a cruz e a espada. A espada era o comprovado, o exato, e a cruz, a religião, que se dizia portadora do moralmente certo. Mas o membro número 5 questionava tudo, a começar pelo seu próprio nome: “Mãe, como eu posso como ter “mar” no meu nome se eu vivo em Minas?” Sua mãe respondia que era prá ela ter a cabeça além daquelas montanhas, no que ela não pode ver.

Questionando tudo o que não podia ver, resolveu entregar-se ao que podia ver e comprovar, entregar-se ao que era o certo, no sentido de exato, concreto. Assim chegou à engenharia civil. Entretanto, ao visitar os prédios mais representativos, percebeu que não ligava a mínima para a resistência dos materiais, nem para as estruturas, pilares e vigas, mas sim pela beleza dos acabamentos. Tanto isso é verdade que até hoje finge fazer exercícios, em Brasília, para admirar obras de arte, como os azulejos de Athos Bulcão (o Correio Brasiliense, que vive atrás de membros do CPNES, a entrevistou numa dessas saídas - pode procurar no Google).

Insatisfeita com a engenharia civil transferiu-se então para a engenharia elétrica na esperança de encontrar as respostas para suas indagações, mas descobriu que, ao subir num poste de alta tensão, o que a encantava não eram os componentes citados pelo Helio Creder em seu livro de instalações, não os campos elétricos mas o campos verdejantes e o horizonte. Na verdade, adorava o que não podia ver, o que estava além, como vaticinara a mãe.

Certa manhã saiu para pensar nas suas dúvidas sobre a vida. Caminhando descalça, afundando os pés na lama gelada das margens do rio Paraibuna, que corta Juiz de Fora, viu Roque, um santeiro (escultor de santos) que tinha uma queda por ela e que havia sido morto 3 dias antes. Ele apareceu para ela e disse: “vá para Brasília, lá você vai encontrar o que procura”.

No dia seguinte ela pegou as malas e sumiu pela estrada. Dito e feito: lá ela se encontrou, e foi no exato instante em que, durante uma aula de contabilidade, dormindo os seus costumeiros e profundíssimos sonos, sonhou que não era uma bíblia e que também não era um capacitor, mas sim uma flor, a mais linda das flores, e que viveria rodeada de outras rosas, cravos, jasmins, violetas, e árvores como as centenárias ceratonas, os ipês e tudo mais o que Burle Marx já inventou. No sonho, a fragrância de suas pétalas inspiraria todos aqueles que lutassem pelo que é belo e pelo que é justo e que seus espinhos sangrariam as mãos dos impuros. Quando o último aluno saiu da sala e bateu a porta, ela acordou. Já não era mais mar. Era Flor.

E seu sonho se cumpriu. Rosaflor, de inteligência invulgar, amante das letras, da poesia e de Guimarães Rosa, ajudava nos textos escritos pelo Tio Moa (que ainda não era tio, mas sobrinho) e nas músicas; nos inspirava a todos na luta contra a injustiça e na busca da beleza, o que faz ainda hoje, com seu jeito mole e sua fala mansa, que diz ao balanço do vento.

Voltando ao início, Caetano estava irritado. Ao lado, a Rosa que, já meio alterada, começou a chamá-lo de Velô (como todos do CPNES, sempre afrontando autoridades...). “O, Velô, você tem que ler o Guimarães Rosa”. E falava sobre Camões, sobre paródias e confusões de prosódia, poesia concreta, flor do Lácio, e todas aquelas coisas que ela sempre dizia prá gente quando estava alta. Só que a gente nunca fez daquilo uma música. Caetano compôs, ali mesmo, na nossa frente, diretamente influenciado pela Rosa, a música “Língua”, que gravou no disco do ano seguinte, chamado “Velô”. Por algum motivo, acho que outra música do mesmo disco, “Podres Poderes”, tem algo a ver com o Tiba. Rosa tem um filho. Adivinhem o nome...

4 comentários:

Néia Guimarães disse...

recordar é tão bom!!!!!

Unknown disse...

Tio Moa,
você omitiu uma parte importante da história: a homenagem "ex-ante" feita à RosaFlor por Garcia Lorca:

"A rosa
não buscava a aurora;
quase eterna em seu ramo,
buscava outra coisa.

A rosa
não buscava nem ciência nem sombra;
confim de carne e sonho,
buscava outra coisa.

A rosa
não buscava a rosa.
Imóvel lá no céu
buscava outra coisa."

Ana Lúcia disse...

bjsss

Tio Moa disse...

Ah, como pude me esquecer desses versos??? E dos bjsss da Ana, então??? Adoro quando ela coloca esses 3 "s" depois do "bj". Um beijo comum tem um "s" só...

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