terça-feira, 13 de dezembro de 2011

FLAMENGO, ARTE E MINHA SANTA MÃEZINHA


Há exatos 30 anos, em 13 de dezembro de 1981, o Flamengo ganhava do Liverpool, em Tókio, e se sagrava Campeão Mundial de Futebol. “Ih, futebol de novo”, pensa o leitor que visita este humilde blógui por causa dos geniais pôstis sobre cinema, música, arte enfim. Pois volte a sorrir, decepcionado leitor. Saiba que este pôsti é, sim senhor, sobre arte (em mais de um sentido), e sobre máquinas do tempo, e sobre armações amorosas.
Porque arte? Num meio em que a principal atividade é o preparo físico, que visa enrijecer e não flexibilizar; num esporte em que o intelecto não é exatamente muito presente; num jogo em que o ignorante e anti-estético chutão pra cima é aplaudido pela torcida e recebe urros de apoio dos companheiros; quando, enfim, surge neste meio, e dentro de um mesmo time, jogadores extremamente habilidosos e inteligentes, jogadores que não dão chutão, que tabelam com toques refinados, e que surpreendem os adversários e a platéia com movimentos e dribles desconcertantes, que transformam um jogo viril em um verdadeiro balé estético, aí não estamos falando apenas de futebol, mas, e principalmente, de arte.
Isso me lembra aquela música do Paralamas: tendo a lua aquela gravidade em que o homem flutua, merecia a visita não de militares, mas de bailarinos, e de você e eu.
Voltando ao time de artistas, pouco mais de um ano antes, estreava Nunes, o centroavante que seria decisivo nos gols dos títulos brasileiros e mundial. Nunes estrearia no Maracanã, contra um time que àquela época era muito respeitado, porque tinha alguns jogadores da seleção brasileira e ainda, em final de carreira, um dos maiores artistas que o futebol já conheceu: Dicá. Que time era esse? Óbvio, a gloriosa Ponte Preta. A estréia de Nunes no Flamengo era muito aguardada. O centroavante, mesmo jogando fora dos grandes centros do futebol (Santa Cruz, do Recife), era quase um ídolo nacional, participando inclusive da seleção brasileira e só não foi à copa de 78 devido a uma contusão. Passou pelo Fluminense e chegou ao Flamengo onde estrearia naquele domingo, 30 de março de 1980.
Entre os presentes na torcida da Ponte, que rumava de ônibus ao Rio, estavam o futuro ilustre autor deste blógui e sua santa mãezinha. Sim, fomos com a Torcida Jovem da Ponte Preta, prova de que naquele tempo torcida organizada era algo bom, familiar mesmo. Até namorei uma menina da torcida, linda. E deus, ops, Deus sabe que eu jamais namoraria uma menina que não fosse de família. Aliás, o namoro começou naquele dia. Fui e voltei ao lado da Raquel. Não ao ficar vendo paisagem o tempo todo, né?
Ao chegar perto do Maracanã, apreensão: como desceríamos do ônibus, a maioria com camisa da Ponte (semelhante à do Vasco), bem no meio daquela multidão? Pois a surpresa começou ali. Assim que o ônibus desce, dezenas de integrantes de uma torcida organizada nos receberam com batucada. Pegaram nossas bandeiras e as tremularam. Conduziram nossa torcida para dentro do maior estádio do mundo, então já quase cheio. Fizeram o maior caminho. Passamos por quase toda a arquibancada até que nos deixaram no lugar reservado aos visitantes, falaram para ficarmos à vontade e foram embora aos seus lugares. Lá vimos o Maracanã lotado vibrar com um golaço de Nunes logo na estréia, e com Zico, que além de fazer um gol, fez uma das jogadas mais lindas que eu vi no futebol, pena que é impossível de descrever. Bom, o Flamengo jogou muito e animou demais a sua torcida. Parece que ela sabia que o time seria campeão brasileiro pela primeira vez naquele ano. O resultado? Empate! A Ponte era, realmente, um grande time e também jogou muito. Ao final do jogo, os flamenguistas vieram nos pegar e conduziram até o ônibus. Só um time de artistas poderia inspirar uma torcida a fazer aquilo. Quem quiser, aí estão os gols daquele jogo:

Pois bem, naquele 1980 o Flamengo foi campeão brasileiro (jogou uma segunda vez com a Ponte no mesmo campeonato e outro empate, de 1 a 1, em Campinas – este assisti com meu irmão. Nunes, de novo, marcou pelo Flamengo e Humberto para a Ponte).
No ano seguinte, o Flamengo foi campeão carioca, brasileiro, da Libertadores e Mundial, em 13 de dezembro, num jogo contra o campeão europeu, o poderoso Liverpool. Nessa final, o Flamengo passou o jogo inteiro, inteirinho, todinho, sem dar um único chutão. Só toques, dribles, tabelas, passes. Foi um dos maiores show já vistos. O outro time parecia amador. Já no primeiro tempo o Flamengo liquidou, com 3 a 0, dois gols de Nunes, um de Adílio e um show de Zico, de cujos pés saíram os 3 gols. Zico ganhou o prêmio de melhor da partida, um carro da Toyota, de modelo muito parecido com o De Lorean, do De Volta Para o Futuro. Veja os gols do jogo, com narração do novato Galvão Bueno.

Hoje Zico ainda tem o carro na sua garagem e quando entra nele, revive aquele ano, aquela decisão, aquela época em que convivia só com craques, com jogadores excepcionais. O carro do Zico é uma máquina do tempo que o leva, exatamente como o De Lorean, 30 anos atrás.
“Talqualmente” o De-Lorean e o Toyota do Zico, este pôsti me transporta 30 anos ao passado, um pouco mais, 31, àquele inesquecível domingo passado no meio de uma torcida, vendo um time inesquecível, ao lado de minha inesquecível e inspiradora santa mãezinha, amiga de todos, dos fracos e oprimidos às distintas senhoras. Dona Lourdes acolhia igualmente putas, bichas (não se usavam expressões como “gays” ou “homossexuais”), carolas e distintas senhoras. Era amiga de jovens também, como a Raquel, aquela que comecei a namorar no dia do jogo. Raquel tinha um lindo sorriso, era gostosinha e havia tempos gostava um bocado de mim, vivia me dando bola. Raquel sempre falava com minha mãe...
Ei... Será que aquilo foi arte da minha mãe?... Nunca havia pensado nisso: teria aquele convite para ir ao jogo no Rio sido uma armação da minha mãe? É claro que foi... Que safada!!!
Vou procurar a Raquel e, se achar, vou tirar essa história a limpo.

domingo, 11 de dezembro de 2011

A SOLIDÃO E A VACA QUE CAIU DO CÉU

O Fábio me ensinou que o diabo é esperto não por ser diabo, mas por ser velho. Estão certos o Fábio, o diabo e a milenar civilização chinesa. A experiência, que não se adquire sem o tempo, sem o correr dos anos, nos ensina o que é melhor para nós. Funciona como atalhos. Com o tempo tornamo-nos mais seletivos e sem vontade de fazer coisas que, de antemão, e por vivência, sabemos que não nos agrada. Não, não vou naquele bar para ouvir salsa e ver aquela gente dançando. Não me agradam a música e a dança. Não gosto de ver tanta gente sorrindo ao mesmo tempo. Bar de salsa é como o facebook: todos estão “felizes”. Sim, entre aspas, é claro: toda felicidade é entre aspas, especialmente aquela unânime. A felicidade é uma chatice.
A vida eremita tem vantagens incontestáveis. As coisas são como nós, e mais ninguém, queremos que sejam. E quando nos cansamos da solidão, basta sair da porta e procurar algum amigo, um daqueles que nunca desistem de você, por mais razões que tenham para isso.
Além dessas vantagens, as mulheres, ao menos as mais interessantes, enxergam certo ar enigmático nos homens solitários, um charme que as intriga. O solitário não é de qualquer uma, é mais difícil, e nisso reside um encanto. Mulheres interessantes percebem nesses seres obscuros um olhar de mistério e dor. Mulheres adoram curar a dor de um homem.
Mas nem tudo são flores na vida dos eremitas maduros.  O que parece significar uma escolha pode se tornar fuga. O que parece ser uma opção de vida pode esconder uma incapacidade. Hábitos supostamente saudáveis podem ser manias. O charmoso sábio pode ser nada mais do que um chato, um ranzinza, como Clint Eastwood em Gran Torino.
Antes que minha preocupada irmã me ligue, preocupada, de Los Angeles, Miami, Vegas ou seja lá onde esteja, para saber se estou bem, aviso: este não sou eu. Falo de Roberto, interpretado por Ricardo Darin, em “Um Conto Chinês”, que finalmente chegou a Brasília. Roberto está mais, muito mais, para o ranzinza do que para o charmoso. Solitário e dono de uma loja de ferragens, ele conta os parafusos de uma caixa de quinhentos, para ver se não foi enganado. E se, depois da terceira contagem, para ter certeza, percebe que há seis parafusos a menos, surta, liga para o fornecedor, perde a paciência. Paciência que também não tem com clientes ou com amigos.
O que fazer para sair dessa vida? Não leitor, ele não quer sair dessa vida. Metódico, não dorme nem antes nem depois das 23:00h em ponto. Mas o leitor esperto e inteligente (é claro, ou não estaria lendo este semi-humilde blógui) sabe que algo vai acontecer para mudar essa situação, afinal, estou falando de um filme. Mas o que poderia romper com esse padrão de vida que nos coloca como um manequim imóvel dentro de uma vitrine? (calma irmãzinha, estou falando do cara do filme, só dele) O que é preciso? Uma paixão avassaladora? Pouco provável, as mulheres são tão iguais, tão dominadoras, tão desejosas de ir a um bar de salsa... Então o que pode acontecer? Uma vaca cair do céu bem em cima da sua casa?
É mais ou menos isso o que acontece com Roberto (Ricardo Darin) em “Um Conto Chinês”, uma comédia, sim é esta a classificação oficial do filme. É uma boa classificação, afinal, tem o modelo meio que padrão de comédias: uma pessoa solitária e metódica, que não gosta de pessoas, especialmente de estranhos, se vê forçada a receber um chinês (outra cultura, outros modos) que não fala uma única palavra em espanhol. Ter um modelo padrão não significa dizer que não seja original.
É uma comédia, ainda que as piadas sejam extremamente delicadas e sutis em comparação com as comédias mais tradicionais. Tudo bem, é uma comédia, mas carregada de melancolia e de estranheza. É uma comédia daquelas que faz chorar (prepare-se, Fer), mas não de tanto rir.
Mas tenha certeza: nem o riso nem o choro virão de interpretações histriônicas de comédia ou de drama, mas da humanidade que o filme transmite. Darin, que se supera a cada filme, está magnífico, perfeitamente humano e convincente, como na comovente cena em que sua opção eremita é confrontada pela mulher que está interessada nele: ele parece explodir de desejo e angústia por dentro, embora sustentando a opção da solidão por fora.
A direção de Sebastián Borensztein é sutil e criativa. Ainda que baseado em modelo clássico de comédia, ainda que encontre fortes ecos do cinema de Jeunet (Amelie Poulain), ou em Gran Torino (o ranzinza em confronto com orientais), a mistura de tudo é original, sensível e criativa. A ambientação e as interpretações nos colocam lá dentro da casa de Roberto, tão eremita quanto ele, tão carente quanto ele.
Para acabar o pôsti, a cena inicial é uma pérola: num barco, um casal de chineses. Ele a pede em casamento e quando ela, feliz, aceita, uma vaca cai, do céu, sobre ela. Corte para a fachada de uma loja filmada de “cabeça” para baixo, afinal, ela está do outro lado do mundo: Buenos Aires. A câmera se vira, deixando a loja em pé, e lentamente invade a loja de ferragens onde está Roberto, contando parafusos.
O que pode nos fazer sair de um estado de espírito, de um padrão de vida e ir para outro? Uma vaca cair do céu? Sei lá! Mas que hoje eu volto ao cinema para rever Um Conto Chinês, ah, isso eu vou fazer.

domingo, 4 de dezembro de 2011

DOUTOR SÓCRATES


Sócrates morreu nesta madrugada e deixou o domingo com jeito meio xôxo. Mas antes de morrer, aliás, muito antes de morrer, antes, inclusive, de parar de jogar, Sócrates voltava a jogar no Brasil, trazido pela Ponte Preta! Sim, Dr Fábio, trazido pela Ponte Preta, numa articulação do Luciano do Valle, que não é meu tio, embora afirme isso. Mas acabou não jogando: antes de estrear, foi para o Flamengo, tal e qual aconteceu com o Ronaldinho, que viria para o Grêmio mas acabou ouvindo o canto da sereia. Só que na Ponte chegou a ser apresentado, vestir camisa e dar entrevista como jogador da macaca. Falando nisso, Raí, irmão do Sócrates, também vestiu a camisa da Ponte, e jogou, antes de ir para o São Paulo e ficar famoso no mundo todo.

Ouvi muito hoje que Sócrates foi muito importante para o futebol brasileiro. Mas sua maior importância não foi para o futebol. Foi, é verdade, um craque único, de estilo clássico, elegante, que celebrizou-se por fazer lançamentos decisivos de calcanhar. Participou, também é verdade, da melhor (ou uma das 2 ou 3 melhores) seleção de todos os tempos, pelo menos era a que jogava mais bonito, a de 1982, inesquecível no mundo todo mesmo sem ter ganho a Copa. Mas sua maior importância foi para o país, porque usou sua fama e seu poder junto às massas para lutar pela redemocratização do país. Para homenagear o Doutor, republico partes de dois posts publicados no ano passado, que falavam da incrível história do Cobra Parada Não Engole Sapo, que, como se sabe, foi um grupo cuja atuação, no início dos anos 80, mudou a cara de Brasília, do Brasil e, por conseqüência, do Mundo, no campo das artes, da política e da filosofia.

A incrível história do CPNES - Parte 6

Sócrates e o também jogador Afonsinho
Gilsão e o Doutor: O bar do Vadico era o reduto de seresteiros, boêmios e senhores da vizinhança, dentre os quais estava um famoso repórter esportivo de Campinas, o Renato Silva, que fazia, na Rádio Brasil, uma sensacional dupla com Sérgio Salvucci, comentarista dos jogos e âncora do programa esportivo. O bar era também o socorro de famintos da madrugada, e nessa condição estava o nosso estudante da UNICAMP, verde de fome. Aliás, verde não, porque é a cor do inimigo Palmeiras. Gilsão estava roxo de fome. Tomava a segunda cerveja, já meio alegre, e nada de vir o tradicionalíssimo sanduíche de pernil. Naquela noite havia só um chapeiro e muitos pedidos. Mas o astral do bar era bom, e Gilsão estava branco, suando de fome, mas com tanta alegria de viver (quem gosta de cerveja sabe do que estou falando) que chegou a pensar que mesmo que morresse de fome antes de o sanduíche chegar, morreria feliz.

Era prá lá de meia-noite quando Gilsão, tentando matar a fome com o cheiro de pernil que o bar exalava, ouviu o chapeiro gritar “olha o pernil da mesa 8”. Aquilo o deixou mais desesperado ainda de fome. Sabe quando você está super apertado, mas vai conseguindo segurar, mas quando chega pertinho da sua casa o negócio parece que vai sair? Era assim que ele se sentia vendo o seu gigantesco sanduíche de pernil sobe o balcão, à espera do garçom. Quintuplicou sua fome.

Nisso, entra no bar o Renato Silva acompanhado de dois magricelos altos. Os dois de cabelos encaracolados, um deles cheio de buracos na cara. Aquela visão fez o Gilsão engasgar a cerveja geladíssima que tomava. Olhou sua mesa e viu as 3 garrafas vazias, como a se perguntar se era o efeito da cerveja ou se ali realmente estavam entrando, e ocupando a mesa ao lado da sua, o Sócrates e o Casagrande. Os dois eram tão naturais àquele ambiente que mal foram notados, ou talvez aquele fosse um costume do Renato Silva, que, ficando junto ao gramado e entrevistando jogadores, era próximo o bastante dos jogadores para levar os mais boêmios ao Vadico. Naquela época não havia o patrulhamento sobre a vida pessoal dos jogadores como há hoje. E do jeito que o doutor Sócrates e o Casão gostavam de enxugar...

Gilsão, com um olho no sanduíche e outro nos seus ídolos, veio com aquela sua típica expressão de resmungo escandalosamente amistoso: “PÔ, MEU, eu não sou de tietagem, não, mas você vem sentar JUSTO do lado de um corintiano?”. “Corintiano! Viu o jogo?”. “Não, ouvi pelo rádio, o locutor disse que você fez um golaço”. “Golaço nada, até você fazia aquele gol”. “Como até eu? Tá me chamando de gordo?”. “Robusto”. Sócretes tem muito bom humor.

Casagrande tinha ido direto ao banheiro e o Renato Silva estava no balcão pedindo os sanduíches para os três. Enquanto isso e com o Gilsão quase desmaiando, o garçom finalmente pegava o sanduíche do balcão e punha na bandeja. Logo estaria alí, na mesa, à sua frente.

Com a proximidade do momento de abocanhar aquele maravilhoso pernil, Gilsão sentiu a boca se enchendo de saliva; estava literalmente babando quando Renato Silva volta à mesa ao lado e disse que ia demorar um pouco, que o pernil acabou e iam buscar “lá na casa deles”, que ficava “logo ali”.


Nisso o garçom vem chegando com o sanduíche do Gilsão.

Casagrande chega do banheiro, muito agitado, e senta à mesa.

O garçom põe o sanduíche na mesa do Gilsão.

“Será que demora muito?”, perguntou Sócrates, olhando, sem querer, para o sanduíche do Gilsão.

Gilsão, mesmo morrendo de fome, gostaria que a conversa com o ídolo rendesse mais e pensou rápido: o sanduíche é grande, já vem dividido em dois e metade já aplaca a fome e me impede de morrer.

“Pô, rapaz, eu tô morrendo de fome”, comentou o doutor Sócrates.

Foi do que o Gilsão precisava. Ato contínuo emendou ao ídolo: “quer metade do meu?”

“Quero”. “Quero”. Não se iludam, leitores ingênuos. Não foi Sócrates repetindo. Um “quero” foi do Sócrates, sim, mas o outro, simultâneo, foi do Casagrande.

“Fudeu!”, pensou Gilsão, que congelou por alguns segundos. Como recusar a metade a um dos dois? Falar “nada disso, eu ofereci só prá um”? Por instantes Gilsão pensou em dar uma de louco, agarrar seu sanduíche e fugir correndo dalí. Suava de fome. E foi chorando por dentro e entoando para si, como um mantra, “sou um imbecil, sou um imbecil” que o Gilsão esticou os braços, oferecendo uma metade para cada um. Casagrande caiu em cima na hora. Sócrates ainda foi polido: “Não, você vai ficar sem nada?”. “Não tem problema, eu jantei bem”. “Então quando vier o nosso, um é teu”. “Tranqüilo, dá prá esperar”.

Mas não deu. Meia hora depois, Gilsão, fraquíssimo de fome, viu Sócrates, Renato Silva e Casagrande ficarem embaçados, escuros, até que tudo se apagou. Mas antes disso deu tempo para o Gilsão falar, enquanto os dois comiam. Falou do interior, de seus antepassados do norte; disse que nunca os conheceu, nem à região, mas que sonhava com aqueles rios, com Juína, com os barcos; disse que "Ita" são os barcos, que são chamados assim porque seus nomes sempre começavam assim: Itaimbé, Itaberá, Itapuca, Itagiba, Itapuhy, Itassucé. Para ilustrar, cantou, com Renato Silva ao violão, uma música de Dorival Caymmi que ele adorava, “peguei um ita no norte”. Gilsão também cantou o clássico do Belmonte, “Saudade da minha terra” (de que me adianta, viver na cidade, se a felicidade não me acompanhar) e “O bêbado e o Equilibrista”, do João Bosco e Aldir Blanc (lembra dos parágrafos iniciais deste post?). Sócrates se emocionou e começaram a falar de política. Gilsão criticou o pessoal do futebol, que tinha muito poder e influência, mas não era politizado.

“Olha aqui, eu vou te falar uma coisa prá você. Não sei se você tá me entendendo. Ôrra, meu, vocês não sabem a força que têm? Imagina o que vocês podem fazer contra essa ditadura. Ôrra meu! É o cúmulo do absurdo você não fazerem nada!”.

Casagrande riu: “O que a gente pode fazer jogando futebol?”. Gilsão, ainda consciente, mas sem resposta, percebeu que tinha exagerado na sua retórica, mas cravou: “sei lá, não sou eu que sou jogador!”. Renato Silva e Casagrande riram muito, aquele riso solto. Sócrates não. Parece ter ficado pensativo. Estava nascendo ali, naquele instante, dentro da cabeça do doutor, a Democracia Corintiana.

A incrível história do CPNES - Parte 7

No capítulo anterior você conheceu o Gilsão e o viu colocar umas escaraminholas na cabeça do Dr. Sócrates, antes de desmaiar de fome.
Pois saiba que quando ele abriu os olhos, viu que estava num hospital, com soro no braço. O Doutor Sócrates dava ordens às enfermeiras, mais interessadas no autógrafo do que em ouvir suas prescrições. Quando se despediram, Gilsão agradeceu muito, mas Sócrates disse que ele é quem deveria agradecer.
Osmar Santos ao microfone, com Sócrates, FHC, Casagrande e
Adilson Monteiro Alves (diretor de Fuebol do Corínthians)

Depois daquilo, Sócrates passou a ser um importante ativista político, além do brilhante jogador que sempre fora e, nisso, o Gilsão, emérito perna de pau, em nada influenciou. Sócrates liderou o primeiro movimento efetivamente popular que ocorreu em toda a ditadura. Nenhum outro movimento político tinha colocado o chamado “povão” na história. Naquele início dos anos 80, em plena ditadura militar e justamente no meio mais atrasado e conservador, o futebol, e ainda por cima num dos dois times mais populares do país (o outro é a Ponte Preta ou o Flamengo, não estou bem certo), nasceu a chamada Democracia Corinthiana (o nome foi dado por Washington Olivetto), movimento liderado por Sócrates e diretamente apoiado por Wladimir e Casagrande, os maiores ídolos do time. Foi um período da história do clube onde as decisões importantes, tais como contratações e regras da concentração, eram decididas pelo voto, ou seja, era uma forma de autogestão. Era um movimento interno do time, mas cuja intenção era, evidentemente, suas repercussões e influências externas. O Corinthians foi o primeiro clube a veicular dizeres publicitários na camisa, como "diretas-já" e "eu quero votar para presidente". Isso no período da ditadura militar, quando os movimentos sociais começavam a se rearticular para a instituição de uma democracia.

Vale do Anhangabaú no comício pelas "Diretas Já"
 Os militares pediram moderação ao clube. Imaginem o impacto que tinha aquilo: a camisa do Corinthians pedindo democracia... Os resultados disso? Imensa participação popular no movimento das Diretas Já, especialmente em São Paulo e, para o Corinthians, muitos títulos e impressionantes resultados financeiros.

Bom, foi isso. ADEUS, DOUTOR!!!

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

AS MIL E UMA NOITES E A FADA DO DENTE


Salve, salve, leitores e seguidores do Cobra Parada, o blógui que não engole sapo;

Salve, salve, Estácio, Salgueiro e Mangueira, Oswaldo Cruz e Matriz, que sempre souberam muito bem que o Cobra não quer abafar ninguém, só quer mostrar que está vivo também;

Salve, salve, ministro Lupi, herói nacional, Macho com M maiúsculo, porque não fez como os outros que saíram com o rabinho no meio das pernas, ainda que negando. Nada disso, aqui nesta terra sem lei, neste faroeste caboclo, não tem lugar prá gente que não assume. Aqui é lugar prá macho. Que ficar se defendendo que nada! Coisa mais mulherzinha ficar negando! Coisa mais infantil ficar gritando “tem que prova-á, tem que prova-á”. Macho fala: daqui eu não saio e pronto! Lupi é nosso Bufalo Bill, nosso Clint Eastwood. Não vai ser qualquer revolverzinho de merda que haverá de tirá-lo da legítima missão de angariar fundos para o bem da sociedade, seja lá qual seja essa sociedade;

Salve, salve, gloriosa Ponte Preta, cujos torcedores protagonizaram as cenas mais emocionantes da semana, na magnífica edição de imagens do Sportv. Sim, porque a emoção está sempre pelos estádios, mas é raro captá-la com leveza, com emoção e, sobretudo, sem cair na pieguice padrão de ficar longo tempo numa criancinha chorando e verbalizando a respeito. Nada disso, a edição rica, variada, abrangente e com cortes precisos feitas pelo Sportv nos momentos finais do jogo foi magnífica, merecendo inclusive elogio público da concorrente ESPN;

Salve, salve, pernambucanos do Náutico e do Sport, que também estão na série A do ano que vem (tem uma aposta aí, mas é barbada). Não sei se minhas amigas seguidoras pernambucanas gostam de fut, mas arrisco que sim, amantes de arte e de manifestações populares que são, e há arte, ainda que às vezes muito escondida, no esporte bretão (expressão dos antigos narradores do rádio);

Salve, salve, pessoas atormentadas pela dor, a dor da enxaqueca, da gastrite, de pedra no rim, a dor de dente, de gota, porque de vocês será o reino dos céus.

Salve, salve, porque este blógui está de volta, depois deste autor passar por algumas das dores acima homenageadas, mas que hoje está no reino dos céus, vivo, sem dor!

Mas que dor foi aquela que deixou este já meio atormentado autor sem dormir por várias noites! Acredite, desconfiado leitor, foram, ou pareceram ser, o que dá no mesmo, exatas mil e uma noites sem sono, porque a dor de dente, diferentemente da dor nos rins, dita a mais terrível (e pela qual também já passei), é a mais cruel de todas, ela transcende o local, vai para o global, sai do dente e vai para toda a mandíbula, para o queixo, pescoço, para o crânio; a dor de dente invade e atormenta a alma!  Descobri que a alma está ligada ao corpo através das raízes dos dentes, e é por isso que a alma não se desprega do corpo, como a sombra de Peter Pan teimava em largá-lo. E quem perder todos os seus dentes perderá também a sua alma (não confie em ninguém sem 32 dentes).

Nas mil e uma noites de dor descobri o maior problema da solidão: não tem quem ouça nossos gemidos. O gemido é imprescindível ao sofredor, porque funciona como um analgésico; o gemido, o gemido bem dado, o gemido sofrido, é um lenitivo, é um bálsamo para o gemente, mas o gemido só funciona se tiver quem o ouça, além do gemente, por suposto. Ao ouvir o gemido, e evidentemente se incomodar com isso, a alma do ouvinte acaba absorvendo um pouco da dor do gemente. Tentei abrir a janela do quarto e gemer bem alto, para que o inocente morador do apartamento de baixo, ou de cima, ouvisse, mas desisti, porque o vento no rosto deformado aumentava a dor mais do que o gemido ouvido pudesse diminuí-la.

Para dores extremas, só remédios extremos. Remédios com tarja, controlados com formulários em várias vias. Preenchi um monte de vias, que pediam centenas de informações. Pediram nome, endereço, nome e telefone de alguém para contato. Acho que até tive que dizer o time que torcia. Meu Deus, pensei, prá que serve tudo isso? Para o caso de eu morrer por causa do remédio? Já em casa, praticamente consumido pela dor torturante, enquanto aguardava, meio sem esperanças, o efeito do remédio, delirava a respeito daquelas vias. Como uma alma que levitasse e observasse as pessoas lá embaixo, tive a nítida sensação de ouvir o contato telefônico da funerária, de posse de uma das vias do formulário, querendo saber se eu já... era cliente:
- Bom dia, com quem eu falo?
- Com quem o Senhor quer falar? (minha irmã JAMAIS diria seu nome antes de saber quem está do outro lado da linha)
- A senhora conhece Moacir do Valle?
- Era meu irmão (é que ela fica meio brava quando eu passo um tempão sem ligar e diz que eu não sou mais seu irmão)
- Era? Sinto muito pela perda.
- Que perda?
- O seu irmão.
- Ele perdeu o que? O senhor conhece o meu irmão?
- Torcia pela Ponte Preta, não é?
- Subiu.
- Seu irmão subiu?
- Não, a Ponte Preta, para a série A!
- E seu irmão, como está... de saúde?
- Agora está melhor, não sofre mais!
- Ah, sim, que pena...
- Como que pena? O que o senhor deseja com ele?
- Levá-lo com conforto à sua nova morada.
- Ele vai mudar? E não fala nada para a irmã? É típico dele!
- Temos o modelo standard, luxo e super-luxo...
Não sei se ainda delirava quando cheguei ao consultório. Felizmente, há uma justiça divina, que dá água aos sedentos, alimenta os famintos, que atende aos gemidos solitários. Eis que, no meio das mil e uma noites de dor, mais precisamente durante um dia, dia de dor, é claro, me aparece uma odalisca, como que para provar estarmos nas mil e uma noites.
Doutora “V”. “V” de visão, como a de um oásis no deserto. “V”de vida, como se aqueles olhos e seu jeito lindo de falar me instilassem um sopro em meus combalidos corpo e alma. Uma princesa, elegante e sutil, uma rainha, uma deusa que me apareceu como devem aparecer todas as deusas: com uma seringa Carpule carregada de anestesia.
Uma, duas, três, quatro, nem sei quantas vezes ela recarregou e me aplicou, com aquele instrumento, o líquido divino (a anestesia dentária surge, juntamente com a coca-cola e com o ar-condicionado, para provar a existência de deus, ops, Deus). Ante aquela princesa inclinando-se sobre mim, esculpido pela dor como eu estava, senti-me um sapo. Ela me aplicou as doses da anestesia como uma princesa beija o sapo. O alívio da dor trouxe ainda mais luz à divindade daquela minha fada do dente, da bela odalisca, da salvadora princesa que me transformou em príncipe, muito embora poucas horas depois, passado o efeito do beijo anestésico, eu tenha retornado ao meu estado anfíbio. 
Veja de novo como ela é linda!

Jurei-lhe amor eterno. Ela jurou tratar-me.

Jurei-lhe devoção, ela jurou cobrar dentro da tabela da ABO.

Não gosta da frieza da doutora? Não é frieza, é a objetividade de quem sabe o que quer. É a tradicional negativa da mulher que ainda não se sabe perdidamente apaixonada. Pedi uma foto e ela se deixou fotografar. Mais do que isso, olhou para a câmera com seus olhos mágicos, com o mesmo terno, interessado, profundo e fascinante olhar com que olhava para dentro da minha alma enquanto fazia um lânguido movimento de vai-e-vem com o aparelho ligado na velocidade máxima, penetrando com carinho a minha dentina, explorando meu canal com sua espátula número 1, raspando, terna e provocante, o escavador no meu tártaro, sussurrando “abre a boca”.

Acho que vou colocar no facebook que estou em um relacionamento sério, ainda que ela pense, fingindo a si mesmo, não estar, ainda que eu não tenha voltado lá por conta da diferença de preço entre o convênio e o particular. "Particular, ela é particular!", tragédia do Martinho que ora me assola!

Agora devo de ir, vou dormir, esperando o efeito do remédio para o estômago, esburacado pelos outros remédios. A alma vai bem, sem dor, sonhando com fadas...

Devo de ir, fadas
Inseto voa em cego sem direção
Eu bem te vi, nada
Ou fada borboleta, ou fada canção
As ilusões fartas
Da fada com varinha virei condão
Rabo de pipa, olho de vidro
Pra suportar uma costela de Adão
Um toque de sonhar sozinho
Te leva a qualquer direção
De flauta, remo ou moinho
De passo a passo passo...
Fadas (Luiz Melodia)

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

A NOVA PELE DE ALMODÓVAR

M. Night Shyamalan
Sobre ver um filme, novo ou antigo, M. Night Shyamalan, diretor, entre outros, dos estupendos "O Sexto Sentido", "A Vila e "Sinais", disse, referindo-se a ver hoje um filme de Hitchcock:
"Nunca penso nisso como coisa do passado, mas como uma maneira fantástica de se fazer cinema. Isso é narrativa, é contar histórias, e todos deveriam usar. Não importa se foi há 50 anos ou se é de hoje; a força narrativa, de poder guiar alguém através de uma história é tão forte hoje quanto foi ontem"
De fato, um dos grandes méritos do Grande Mestre foi o domínio do contar uma história, o que é uma qualidade muito mais rara do que se pensa. Contar de qualquer jeito, muita gente conta, todo filme conta uma história, mas poucos nos entretém realmente. E dentre esses filmes que nos entretém realmente, são grandes filmes apenas os que foram além do entretenimento: souberam contar a história nos levando às alturas, nos envolvendo visceralmente, mexendo com nossas estruturas e nos modificando (somos produtos de todos os filmes que nos modificaram - vide o pôsti sobre o The Front). Voltando a Hitchcock, além de contar histórias dessa forma, ele usou todas as possibilidades da linguagem cinematográfica para nos envolver ao máximo com a história, ele inovou a linguagem e ajudou a desenvolvê-la; por isso é gênio.
Um pequeno adendo: Romário, quando recentemente esteve nos jogos Panamericanos do México, comentando pela TV Record, foi muito assediado pela imprensa mundial. teve até que dar entrevista coletiva. Vê só, alguémk com tarefa jornalística teve que dar coletiva. Mas nessa coletiva, perguntaram a ele se o Messi poderia ser comparado a Pelé. Espirituoso, Romário respondeu: "calma lá, primeiro ele teria que chegar ao Maradona, depois ao Romário..."  
O leitor mais ansioso deve estar se perguntando "mas afinal, o que é que Romário, Messi e Pelé têm a ver com cinema, com Hicthcock e com o Almodóvar, que por sinal é motivo do post e até agora não apareceu?"
Ok, leitor, tentarei não desapontá-lo mais, se é que chegou até aqui. Apenas para justificar a digressão, como livre e despretensiosa associação: Hitchcock é o Pelé do cinema; Glauber Rocha era um Edmundo; Jerry Lewis, Garrincha; Billy Wilder, um Zidane; Woody Allen um Maradona. Neymar é um Tarantino. E Almodóvar? Taí: não sei. Messi? Romário?


Saindo da associação um tanto inusual, o que parece é que, com este filme (corra ao cinema), Almodóvar habita uma nova pele, mas ao contrário do que ocorre no filme, parece se sentir bem. APQH coloca Almodóvar num patamar que ainda não alcançara em termos de realização, do contar uma história e do uso da linguagem cinematográfica. Talvez este blógui tenha que refazer seu bâner de abertura, onde estão perfilados Hitchcock, Billy Wilder, Brian de Palma, Frank Capra, Tarantino, David Lynch, Glauber Rocha, Campanella (inserido lá, como aposta, no calor d'A Flor do Meu Segredo), Woody Allen, Kubrick e Jerry Lewis. Talvez tenha que inserir neste time o tal do Pedro Almodóvar, de quem sempre gostei pela paixão e pelas cores de suas bem contadas histórias boléricas (esta expressão não vem de bola, afinal o futebol já cumpriu sua participação neste pôsti, mas do bolero, gênero "jogado aos seus pés", feito de tragédias, dor e amor).


Como em nenhum outro filme do espanhol, A Pele Que Habito carrega, em cada segundo do filme, uma tensão que nos mantém atentos, presos e interessados no que vai acontecer, em quando vai acontecer e como vai acontecer. Ficamos o tempo todo em estado de suspensão, o que define o gênero: suspense, um suspense beirando o terror, no sentido de retratar o drama humano, nossos medos e nosso lado mais obscuro.


O reinventado Almodóvar envereda pelo suspense, mudando um pouco a cor usual de seus filmes, dispondo as informações da história na ordem que mais nos nos mantém presos (grande qualidade de Hitchcock). Primeiro sabemos que há uma mulher (belíssima, santo deus, ops, Deus!) fechada numa sala e observada pelo médico (Banderas) através de uma imensa tela ao lado de sua cama. Depois sabemos de uma tragédia ocorrida há tempos. Mais tarde voltamos seis anos, depois avançamos mais um pouco. A cada viagem ao tempo vamos conhecendo a história, ora sentindo ódio, ora compaixão. E a medida que vamos compondo o mosaico, mais aumenta a tensão, porque aquilo tudo certamente vai desaguar em algo. E como deságua. Magnífico o momento da revelação, magnífico o fechamento, magnífico o take final, forte e emocionante.


Almodóvar entrou no terreno dos grandes mestres da história do cinema, mas parece que está em casa, tanto que estão lá os sinais do bom e velho Almodóvar, as situações cômicas, o Tigrão, os pênis de borracha dispostos um a um aumentando o tamanho: incrível como Almodóvar conseguiu extrair humor das cenas mais improváveis, sem perder a tensão dramática. Isso não é pouco. Como hoje disse o Fábio (que assistiu e também achou o filme o máximo), chegar a Hitchcock, realmente Almodóvar nunca chegará. Mas Hitchcock, como Pelé, é extra-terrestre, gênio absoluto. Messi e Neymar não precisam ser comparados a Pelé ou Maradona. 


O mais importante é que Almodóvar, depois do exuberante A Pele Que Habito, vai entrar para o Bâner dos grandes cineastas que fica no alto deste blógui, o que certamente fará uma grande diferença em sua vida e o deixará muito feliz e realizado. Não precisa me agradecer, Pedrito; quando vier ao Brasil ter com seu amigo Caetano, dá uma passadinha aqui por Brasilia, me paga um bom jantar na Rosário e tudo bem.




domingo, 13 de novembro de 2011

O TERROR DAS MULHERES


Desde tempos imemoriais as mulheres nos aterrorizam com aquele jeito de inalcançáveis, de senhoras de si, bafejando aquele insuportável ar de segurança. Até no primeiro beijo, a que as meninas dão (ou davam?) tanta importância, e que poderia causar alguma insegurança, elas são mais seguras que os homens. É óbvio que o jeito “não tô nem aí” dos meninos é puro engodo. Não é que os meninos tivessem medo do beijo, mas tinham um enorme medo das mulheres, de não agrada-las, de fazê-las correr a outro que as beijasse melhor.

Ô, mulata assanhada
Que passa com graça
Fazendo pirraça
Fingindo inocente
Tirando o sossego da gente 
(Ataulfo Alves)

O jeitinho lépido e saltitante com que as meninas, arrebitadas, passam à nossa frente, nos arrebata e ao mesmo tempo causa terror. Terror à rejeição. Ah, tem um homem seguro lendo este pôsti que agora está pensando “comigo isso nunca aconteceu, mulher nunca me aterrorizou”? Santa inocência, santa ignorância, santo auto-engano. O medo da rejeição da fêmea constitui a base do instinto agressivo do macho e da própria negação desse mesmo medo.
A mãe natureza (olha só, até a natureza é mulher) fez com que as mulheres escolhessem os homens, e isso nos colocou, a nós, homens, desde que o mundo é mundo, em posição de inferioridade e insegurança: dependemos de sua aprovação, e qualquer ser humano que dependa da aprovação de outrem, fica inseguro, porque não depende só de si, mas do julgamento do outro, da outra, no caso. .


Bonequinha de Luxo, com Audrey Hepburn representando a mulher acessível (no sentido de que Holly era uma mulher que todas poderiam ser), inventou a mulher moderna: que podia ser independente, ficar linda com apenas um pretinho básico – também inventado pelo filme, e livre para amar – ou para fazer amor. Depois desse filme, a situação do homem piorou ainda mais, porque as mulheres ficaram ainda mais interessantes e mais desejáveis (quanto mais alto o vôo – ou o desejo, maior o tombo - e o medo da queda). As bobagens da “revolução sexual” e do feminismo tentaram, felizmente em vão, destruir isso, descendo a mulher do seu pedestal. As feministas (praticamente um eufemismo para feias invejosas) reclamaram até da propaganda da Gisele Bündchen. 

* Aqui um adendo, não para ser politicamente correto, mas para evitar má interpretação: mulher é feia ou bonita muito mais pelo “uso” que faz de si mesma do que por condições físicas naturais. Feministas não gostam de passar com “graça fazendo pirraça” e não querem “aderir” à feminilidade que chamam de cosmética (mas que Eva já tinha, ou seja, é natural), e por isso não tiram o sossego da gente e acabam sendo feias à vista do homem, hétero ou não. E quem são as bonitas? Bonitas, ora, são as simplesmente bonitas (outro dia li: que bom que Vinícius foi de um tempo livre da chatice do politicamente correto e pôde escrever “desculpem as feias, mas beleza é fundamental" – hoje seria processado). E já que falei dos homens não héteros, devo falar também das mulheres que não passam “com graça fazendo pirraça” por não terem interesse nos homens: imagino que, sem perder sua beleza, também prefiram as mulheres que passam com graça fazendo pirraça.

desce do trono, rainha

desce do seu pedestal

(Arnaldo Antunes)


Pura lógica: se a mulher descesse do pedestal, ficariam menos inalcançáveis, mais acessíveis, por conseqüência menos desejáveis, e os homens não se sentiriam tão inseguros (quanto mais baixo o vôo – ou o desejo, menor o tombo – e o medo da queda). Neste ponto, a leitora curiosa da alma masculina (sim, os homens têm alma – porque só se fala em “alma feminina”?) deve estar se perguntando: afinal, o que preferem os homens, que a mulher desça do trono e se sintam seguros, ou que ela permaneça lá, linda, causando terror?

A resposta é dada por Jerry Lewis, o mais refinado palhaço que este mundo já viu num filme que fez sobre esse terror que as mulheres provocam nos homens, ao menos aos sinceros. O genial Jerry Lewis presenteou a humanidade com uma jóia rara e singular: O Terror das Mulheres. Nele, JL é Herbert H. Heeber, um tímido que após uma desilusão amorosa (rejeição), passa a sentir verdadeiro terror ante as mulheres, foge de sua pequena cidade e cai, sem saber, numa pensão de mulheres, não qualquer pensão de mulheres, mas numa pensão de mulheres que iniciam na carreira artística: atrizes, instrumentistas e modelos, ou seja, uma pensão cheia de beldades que “passam com graça fazendo pirraça”, justamente o que mais aterroriza Herbert. 

E Jerry Lewys faz um filme tão belo quanto a beleza que ele quer retratar. Como ator é um palhaço refinado que, com o corpo e com expressões faciais, ilumina o espetáculo. Como diretor é um jazzista, também refinado, capaz de criar uma mise-em-scène (não existe, acho, expressão em português para isso) como a que se pode ver no link mais abaixo. 

O cenário que ele criou lembra o de Janela Indiscreta, mas todo no interior de uma mansão. Veja a cena abaixo. É o primeiro amanhecer de Herbert na pensão. Os movimentos são perfeitamente encaixados na música, numa maravilhosa coreografia não dançada, com os instrumentos representando os personagens e a câmera sempre bem posicionada (atenção à ótima tomada em que, em primeiro plano a primeira mulher ajeita a meia e em segundo plano, outra, bem diferente, repete o movimento).





E como esse filme responde à questão colocada pela leitora curiosa da alma masculina? Afinal, os homens preferem a mulher que passa fazendo pirraça e atormentando o coração da gente ou aquela que lhe dá segurança?
Antes da resposta final, um brinde: duas cenas do filme. Na primeira, Jerry Lewis brinca com o homem seguro, o chamado homem com H, machérrimo. É uma cena de ação e reação, quase sem palavras, que acaba com um “atrás da porta” à Lubitch.

Na segunda, uma homenagem ao cinema, eu que Lewis ao mesmo tempo homenageia um seu ídolo e realiza algo como um sonho pessoal, num lindo brincar de cinema, mostrado com beleza e elegância. Por algum motivo, não consegui puxar o link prá dentro do blógui, mas este é o link:
Afinal, o que preferem os homens? 

Herbert tenta fugir da pensão várias vezes, afinal, aquelas dezenas de mulheres lindas o atormentam demais. Mas não consegue, porque elas o impedem (ele as ajuda muito nos afazeres cotidianos). No final, elas deixam de impedir que ele se vá. Ele vai? 

É claro que a questão que levantei e coloquei na boca da leitora curiosa é falsa. Mulher nenhuma, especialmente a que passa com graça fazendo pirraça, como é o caso das leitoras deste blógui, tem essa dúvida, caso contrário não passariam com graça fazendo pirraça, atormentando o coração da gente. 


Herbert fica, é óbvio, feliz da vida. Feliz e profundissimamente atormentado.

domingo, 6 de novembro de 2011

NIETZSCHE DE VOLTA PARA O FUTURO


Nietsche disse que o que é bom é leve, que tudo que é divino caminha com pés delicados. Desconfio que se ele visse De Volta Para o Futuro (direção de Robert Zemeckis - 1985) acharia divino, porque é divino e leve, deliciosamente leve. Talvez Nietzsche se livrasse, por algumas horas, de sua enxaqueca (ninguém me tira da cabeça que aquele bigode imenso era a causa das dores – sobre enxaqueca, sempre tive impressão que tenho menos crises quando estou de cabelos curtos).
Ontem, 05 de novembro, minha filha Riana, 18, publicou no Facebook a foto aí ao lado, do relógio do De Lorean, a máquina do tempo do DVPF, do qual ela gosta muito. Como pai zeloso, cliquei em “curtir” e ainda comentei que mereceria um pôsti. Ei-lo.
André Bazin, talvez o mais importante e influente crítico de cinema da história, disse que o cinema substitui nosso olhar por um mundo que coincide com nossos desejos. Só poderia estar falando de DVPF, embora tenha morrido no final dos anos 50. Quem sabe Marty McFly não tenha levado a ele uma fita do filme... Mundo que coincide com nossos desejos? Quem não desejaria conhecer seus pais adolescentes e fazer com que se apaixonassem? Quem não desejaria viver nos anos mais glamourosos, mais nostálgicos da história (ainda que, talvez, simplesmente por terem sido os mais filmados)? Nós somos Marty McFly, somos medrosos, inseguros, mas detestamos que nos digam isso; e adoraríamos jogar um caminhão de estrume no brutamontes do pedaço!  
Ítalo Calvino, escritor italiano que morreu em 1985, ano do lançamento do DVPF, listou motivos para lermos livros clássicos (recentemente foi relançado Porque Ler os Clássicos). Basicamente, algum livro que atenda esses motivos é um clássico. Permito-me ultra-resumir alguns motivos e transpô-las para o cinema, mais precisamente DVPF. Clássicos são:
1.      Aqueles filmes dos quais se pode dizer “estou revendo” no lugar de “estou vendo” – Quem já viu De Volta Para o Futuro, vê de novo, sempre e sempre - talvez seja o filme mais revisto da história;
2.      Filmes que significam uma verdadeira riqueza tanto para quem já os viu há tempos quanto para quem os vê hoje pela primeira vez – Se você viu BTTF, faça a experiência: mostre para quem não viu e veja o resultado;
3.      Não apenas os filmes inesquecíveis como também aqueles que se ocultam nas dobras da memória - como ocorre quando, do nada, nos vem uma frase (mesmo sem nos lembrarmos de onde veio, usamos) como: “não me chame de covarde”, “Oh, Meu Deus! É Calvin Klein, que sonho!”, “Estradas? Para onde vamos não precisamos de estradas” ou “Você construiu uma máquina do tempo com um DeLorean”, “Bem ... Você está são e salvo agora, de volta ao bom e velho 1955”, “Se vocês tiverem um filho, se ele, quando tiver oito anos, botar fogo no tapete... Peguem leve com ele...”, “Quem diabos é John F. Kennedy?”, “se vamos viajar ao tempo, porque não fazer com estilo?”, “Eu acho que vocês não estão prontos para isso, ainda. Mas os seus filhos vão adorar;
4.      Toda vez que você revê um clássico, é uma descoberta como da primeira vez – Desde que adquiri o DVD, há uns oito ou nove anos, eu o vejo pelo menos uma vez ao ano, sempre com grande excitação;
5.      A primeira vez que você vê um clássico é como se você tivesse revendo-o - Pense bem: um clássico é sempre universal na medida em que mexe com coisas que estão em nosso inconsciente e usa referências conhecidas para nós;
6.      Um clássico é um filme que nunca terminou de dizer o que tinha a dizer – Veio o DVPF 2 e o 3, todos excelentes, e no mundo todo clama-se pelo quarto filme da série;
7.      Ver um clássico pela primeira é sempre uma surpresa em relação à imagem que fazíamos dele. – Por mais que você saiba como é o filme, de ler, de ouvir falar, um clássico dialoga diretamente com você, com sua vida, seus desejos e suas referências. DVPF sempre surpreende ao primeiro “visitante”.
.     8 Um clássico que você não viu pode ter sido feito antes de vários outros que você já viu, mas quando você o vê, reconhece logo o seu lugar na genealogia – a lista de filmes que fazem referência direta a BTTF é imensa – dia desses vi um pedaço de a série que não gosto muito, mas que o Fábio adora, Two and a half man, e numa cena eles comentam o DeLorean.
      Além disso, um clássico dialoga com seus predecessores, como quando McFly filho, fantasiado, acorda o pai de noite:
      “Silêncio, Terráqueo ! Meu nome é Darth Vader. Eu sou um extraterrestre do planeta Vulcano!”
Obama visita fábrica do skate "do futuro"
No filme, o skate e o Nike











9 - Clássico é o filme que tende a relegar as atualidades à posição de barulho de fundo. Um amigo meu tem dificuldade de ver filmes antigos porque lá não há celulares e outras modernidades, por isso tem que ficar “dando um desconto” para o filme. Pois quando se trata de um clássico, o antigo se sobrepõe às modernidades. DVPF é exemplo ainda mais forte dessa questão, porque trata de modernidades em oposição às antiguidades. O McFly do futuro usa um Nike auto ajustável, que se fecha sozinho (sabia que a Nike acaba de anunciar seu lançamento?). Sabia que Obama "autorizou" a fabricação do Hoverboard (aquele skate que flutua, sem rodas). Ainda da série "você sabia": um daqueles meninos do futuro que acham estranho que Mc Fly jogue games com as mãos é o Elijah Wood, o Frodo... 

DVPF se apóia numa história fantástica, num roteiro que é um dos mais engenhosos da história do cinema, numa dupla de atores com um carisma incrível (Michael J. Fox  e Christopher Lloyd), e numa trilha sonora de arrepiar.
Existem clássicos que você sabe que é um clássico, o coloca na sua lista de melhores filmes de todos os tempos, mas não o assiste muitas vezes. Há outros filmes que são puro, e bom, entretenimento: você vê dezenas de vezes mas não o coloca em lista nenhuma (muitas vezes você nem fala para um cinéfilo que ama esse filme); eu, por exemplo, amo todos os “Corra que a polícia vem aí”. Pois De Volta Para o Futuro é ao mesmo um clássico inquestionável, um cult movie e um filme que é o mais puro e divertido entretenimento. 
Pra encerrar:
Doc (em 1955, duvidando que McFly tenha vindo de 1985, ou seja, do futuro): Então me diga: "Rapaz do Futuro", quem é presidente dos Estados Unidos em 1985?
Marty: Ronald Reagan.
Doc: Ronald Reagan? O ator ? Há há..... Então quem é Vice-Presidente? Jerry Lewis?
Biff: Olá? Olá? Alguém em casa? Huh? Pense, McFly. Pense...
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