quinta-feira, 4 de novembro de 2010

A Volta de Humberto Laraia - Volume um

Inauguramos hoje, neste blógui, a participação do importante escritor Humberto Laraia, importante tanto pela sua obra, quanto pelo mistério que cercou sua morte e agora cerca sua volta. Em comemoração, excepcionalmente hoje publicaremos no mesmo pôsti os dois primeiros capítulos.


CAPÍTULO I – A INVASÃO
Estava escrevendo, totalmente envolvido, uma cena nervosa, carregada de tensão. Aquele povo estava querendo encrenca, desejando e precisando extravasar. Acho que queriam colocar a culpa em alguém. Eu estava meio tomado, comecei a escrever como se não fosse eu o autor, como se algo escrevesse por mim. Adorava essa sensação, que, por sinal, não era incomum. Mas naquela noite a coisa fugiu do controle. Eu tinha um espelho na sala e enquanto escrevia, costumava projetar mentalmente as cenas que imaginava no espelho. Mas tinha vezes em que as imagens no espelho me ultrapassavam, iam à frente, aconteciam antes de eu escrevê-las. Aí eu descrevia o que enxergava. Como se as pessoas, ou o espelho, escrevessem por mim.
De repente eles vieram direto na minha direção, atravessaram o espelho com fúria, como se fossem gângsters de westerns quando entram em saloons abrindo com força aquelas portinholas. Olharam um pouco ao redor e quando viram na poltrona num amigo meu que estava em casa partiram para cima dele e lhe deram uma surra.
Fico pensando por que os caras bateram no Xerxes e não em mim. Aliás, eles me ignoraram por completo, como se eu não existisse. Isso é estranho, já que na realidade eram eles que não existiam, ou pelo menos deveriam não existir. Foi como se o procurassem. Coitado do Xerxes, era meio chato, mas sabe aquele chato que você gosta? Era o Xerxes. Como é que alguém pode ter um nome desses? Seria Ataxerxes? De qualquer forma isso não alteraria em nada o fato de que ele acabara de ser linchado.


Retornaram para dentro do espelho. Não sei o que me deu quando os vi atravessando o vidro, se curiosidade ou medo... Só sei que fui atrás, misturei-me a eles e entramos juntos. Foi como entrar numa festa sem convite. É verdade, atravessei o espelho.


CAPÍTULO I I – A TRAVESSIA


Quando entrei no espelho, não vi ninguém. Nem nada. Não é branco, nem preto, simplesmente não tem cor. Caso você não consiga imaginar um ambiente sem cor, nem branco nem preto, não tem a menor importância. Considere apenas que não tinha nada para olhar. Aí resolvi voltar. Bem que tentei. Dei tanta porrada naquele espelho... Fiquei lá, preso. Via tudo do lado de fora. Também ouvia e a primeira coisa que ouvi foi uma gritaria vinda do lado de fora da porta. Depois pancadas na porta, como se quisessem arrombá-la. Até que ela cedeu. Apareceram o síndico, não me lembro seu nome, o porteiro, seu Alcides, e o casal vizinho (nunca soube seus nomes). A vizinha tomou a frente e ficou apavorada com o que viu: aquela desordem e o Xerxes lá, estendido no chão. Mexeram nele. Coitado do seu Laraia, será que está vivo? Não sei, acho que está respirando, respondeu algém.
Ei, espera aí, percebi, ela falou o meu nome. Será que pensaram que oXerxes sou eu? Chamaram a ambulância. Tentei me comunicar, bati no espelho, gritei, mas não me viam nem ouviam. Procuraram mais alguém pela casa. A chata da vizinha ficou bisbilhotando. Fuçou os cinzeiros e olhou os copos, provavelmente querendo achar algo para confirmar suas suspeitas. Não toca em nada, gritou o marido. O porteiro estava encostado no batente da porta aberta. Inclinava a cabeça para ver, por melhor ângulo, a bunda da vizinha. Eu nunca havia notado, achava que ela era apenas uma chata. Vi que, apesar de chata, ela tinha realmente algumas virtudes. Redondas e empinadas. Virtudes no tamanho exato.
- Temos que chamara polícia também.
- A polícia... a polícia... a polícia, repetia sem saber o que estava dizendo o seu Alcides. Realmente era difícil tirar os olhos da bunda da vizinha.
O Síndico falava com a polícia pelo telefone quando apareceu seu filho, um pirralho mal educado. Estava de pijamas, levou um grito do pai e saiu correndo. Ahn, desculpe, é meu filho que estava aqui. Tudo bem, ninguém vai mexer em nada.
Chegaram os paramédicos, mexeram no Xerxes, cochicharam algo entre eles e o levaram, tudo muito rápido, como com muita urgência. Fiquei triste ao ver o Xerxes daquele jeito. O porteiro, que havia saído, retornou avisando que a polícia chegara. A vizinha passou, rápida e discretamente, pelo espelho para conferir se estava tudo certo com ela, inclusive virando-se um pouco para conferir também sua bunda. Mulher gosta tanto de bunda quanto nós, homens. Ou mais. Ajeitar-se para os policiais... Veja como são as mulheres... Será que elas têm tara por policiais? Essenegócio de espelho tem seu lado interessante. Depois de se ajeitar, olhou de forma diferente para o espelho, talvez assustada. Terá me visto? Aproximou. Não, não era a mim que olhava. Também não era para ela mesma. Olhava o espelho, admirada como se até ali não o houvesse notado. Passou a mão no vidro, na moldura e pareceu surpresa. José Felipe, você viu que espelho lindo?
Os policiais encheram os vizinhos de perguntas. Quando perguntaram o nome da vítima, a resposta foi “Humberto Laraia”. OAquele escritor? Ele mesmo.
O que significava aquilo? Ei, vocês, Humberto Laraia sou eu, aquele era o Xerxes. Será que não notaram? Não ouviram meus protestos. O síndico confirmou que era eu. Perguntaram se eu costumava receber muita gente, e a vizinha disse que eu ficava em casa o dia todo e que não recebia visitas, que era muito sozinho, sombrio, "esquisito que só ele". Que vaca!
O Porteiro disse que naquela noite ninguém havia passado pela portaria. Mas como, discordou a vizinha, se ouvimos a maior pancadaria aqui dentro? Parecia que tinha uns dez aqui dentro pelo barulho. Não exagera, disse o marido. José Felipe, fica quieto porque você estava no quarto, com o seu maldito futebol. Só sei é que pela portaria é que não passaram, reafirmou Seu Alcides. Ninguém? Ninguém, tô falando. Mas e o Xerxes?, gritei. Gritei é modo de dizer, porque de trás do espelho, aprendi, não há grito, nem fala, só pensamento. Nem uma pessoa? Ninguém, respondeu ao policial. Ninguém passou pelaportaria.
Lacraram o apartamento. No dia seguinte apareceram técnicos da polícia. Investigaram, colheram fiapos, grãos, cinzas, migalhas, copos, impressões e tudo o que puderam. Dias depois, uma equipe de televisão apareceu. E a vizinha também, toda arrumada, calça justa. Onde exatamente você encontrou Humberto Laraia assim que entrou no apartamento? Bem ali, ela apontou e descreveu a cena. Pelo jeito estavam fazendo reportagem sobre meu desaparecimento. Como era Humberto Laraia no dia-a-dia? Ele era muito educado, respeitoso, mas vivia muito sozinho, acho que ficava escrevendo o tempo todo.
Que história é essa de “era”? Como é que eu posso permitir que falem de mim como se eu estivesse morto? De frente para a câmera, o repórter falou algo sobre como poderia alguém ser linchado sem que ninguém deixasse nenhum rastro, nenhuma pegada, nenhuma impressão digital, nada que fizesse acreditar que houvera alguém naquele apartamento, naquela noite, além do próprio Humberto Laraia. Mas isso não é nada. Duro foi ouvir quando o repórter falou, em tom grave, algo sobre “a misteriosa morte de Humberto Laraia”. Aí caiu a ficha. Que estranha maneira de se saber que a gente morreu.

4 comentários:

fernanda_cm disse...

Uau, quero saber muito mais sobre Humberto Laraia. Aliás, alguma vez já tinha me falado sobre ele?

Tio Moa disse...

Não. É um tabú... Os cadernos culturais evitam falar sobre ele. É como se todos carregassem alguma culpa pelo que aconteceu...

Unknown disse...

Finalmente!!!!!!!!!
Eu sabia!!!!!!!!!!!
Muita coisa foi escondida sobre esse caso.
O Humba Laraia não morreu. Eu sabia.

Eu lembro o nome do síndico: Dimas, aquele que compôs a famosa música "Vou cantar um blues azul" que depois foi gravada em ritmo de reagae pela banda maranhense "Sanpantaleão"

Tio Moa disse...

Dimas, isso mesmo. O mais baiano dos paulistas. Aliás, nunca vi baiano que fosse tão baiano quanto o Dimas. Sua fluência no violao era digna de nota. A gente achava que ele sempre repetia o blues azul, mas ele não repetia. Ainda estava cantando pela primeira vez, e olha que a música nem era muito longa.

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