Alguns falam que a morte é uma fazenda distante, outros que é branca; uns, que a morte é o nada, outros que a gente levita e paira sobre o nosso próprio corpo, depois pelas redondezas, depois pela casa dos amigos e parentes, para saber se está tudo bem. Se fosse assim, eu juro que ia pairar no quarto da vizinha, aquela da bunda divina. Mas não deve ser assim, pois se eu estava morto, e essa era uma grande possibilidade, o certo é que quem morre vai para o espelho, o que é um saco, tenham certeza disso. Pairar deve ser melhor, pelo menos você escolhe para onde vai. Alí, preso dentro do espelho, nada acontece, a não ser naquele momento, em que via a vizinha dando entrevista de costas para o espelho, ou seja, com aquilo tudo virado para mim.
Nunca ouvi ninguém dizendo que a gente vai para o espelho quando morre, o que poderia significar duas coisas: uma é que simplesmente ninguém sabe, mas a gente vai mesmo é para o espelho quando morre. Essa forma de interpretar era ruim para mim, pois significaria que realmente estava morto. A outra forma de entender porque ninguém nunca disse (que após a morte vamos para o espelho) é que a gente não vai mesmo para o espelho quando morre. Isso seria ótimo, pois eu estaria vivo, que é, aliás, exatamente como me sintia. Vivo, embora preso.
Eles podem ter confundido o Xerxes comigo, idéia para a qual eu torcia, afinal, significaria que eu não teria morrido, mas sim o coitado do Xerxes. Mas não dá para descartar a hipótese de que aquele corpo que eu vi no chão da sala não ter sido o de Xerxes, mas o meu próprio, o que significaria dizer que eu realmente estou morto. Se for assim, teremos mais dúvidas: Xerxes já tinha ido embora quando aquele gente atravessou o espelho e me matou? Ou o Xerxes nunca havia existido, sendo só uma projeção da minha mente, mais um de meus personagens? Estava vivo ou não? Nao parava de me perguntar isso. Compreendem que essa questão é muito mais complexa que a proposta por Hamlet?
Vivi um bom tempo assim, até que o espelho foi enviado para um antiquário. Foi um bom período, conheci muita gente, muitos ficaram encantados com o espelho, o que praticamente significava que fiaram encantados comigo. Mas a maioria se assustava com o preço. Até que veio uma senhora, muito distinta e quando viu parou e falou “é meu”. Ela não se importou com o preço. A dona da loja, para justificar a facada, falou que era do famoso escritor Humberto Laraia, que morrera em circunstâncias misteriosas, "um horror essa polícia que não descobre nada, onde é que vai parar isso, a gente nao tem mais segurança nem dentro da própria casa..." Eu levo, eu levo, cortou a senhora.
E o seu marido, não vem mais com a senhora, perguntou a dona da loja à cliente. “Com toda essa agitação dos preparativos para a posse, depois da doença do outro, sabe como é, ele fica do trabalho prá casa, da casa pro trabalho”. "Bom, se ele tiver que morrer mesmo, coitado, Deus é que sabe, mas para o seu marido até que é bom, não é?" A senhora nada respondeu e despediram-se. Em seguida fui levado para os fundos, de onde no dia seguinte saí num caminhão. Cobriram o espelho com cobertores. Foi como se estivessem vendando os meus olhos para que eu não visse o caminho, não soubesse para onde estava sendo levado. Não me sentia dentro do espelho, mas que eu era o próprio espelho.
Quando tiraram os cobertores, eu estava num grande quarto, todo cheio de móveis caríssimos, poltronas suntuosas, tapetes mágicos. Brega, mas imponente. Na primeira noite vi o marido, mas foi ele entrar no quarto e se jogar na cama. Dormiu rápido. A mulher até reclamou de ele dormir sem tomar banho, sem colocar pijama. "Tira pelo menos a gravata". Ele nem respondeu. Ela tirou-lhe a gravata. Foi assim várias noites, dormindo rápido, tomando ou não o seu banho, colocando ou não seu pijama listrado. No máximo, comentava algo como sua preocupação com algo que não acabava nunca. Nem conversavam. Eu estava curioso. O que eles esperavam tanto que acabasse? Quando a gente está dentro do espelho (ou quando a gente morre? Tomara que não), não acontece nada. A única diversão é ver o que acontece com os outros, saber quem são as pessoas, o que fazem.
Numa manhã, tocou o telefone. A mulher gritou de algum ponto da casa: “Zé, atende, é aquela ligação que você estava esperando”. “Alô... Não, nao, estou acordado, pode falar... O que?... Morreu? Puxa até que enfim... Obrigado pela notícia...” Gritou e pulou, pelado, na cama. Muito estranho ver um senhor de mais de 50 anos, com cara de austero, pulando daquele jeito. A mulher entrou correndo, ele a jogou na cama, foi tirando sua saia, depois a calcinha (que lembrou as que minha mãe usava) e caiu em cima. Em baixo, quero dizer. Ela começou a rir, reclamando aos gritinhos, que o bigode faz muitas cócegas. O bigode dele realmente era grande. “Porque não tira esse bigode?” Ele parou na mesma hora, levantou-se, cobriu suas partes como lençol e pronunciou, lenta e incisivamente “Nunca mais peça isso”.
Esse bigode, começou a discursar para a mulher, é minha marca, foi com ele que ganhei todas as eleições que ganhei. Ele esteve comigo todo esse tempo. Este bigode que está diante de vós, acompanhou toda a luta de minha família pelo povo injustiçado. Esse bigode que ostento com orgulho em minha face, vai, a partir de agora comandar os destinos desta nação. Certamente nenhum dos presentes tem dúvida de que o meu bem-estar social e o meu bem-estar pessoal estariam fora das atribuições que vou enfrentar, mas a paixão da vida pública é maior do que a paixão da própria vida.
Zé, cortou a esposa, você está aqui no nosso quarto, não lá, no meio daquela gente. Eu sei, respondeu ele, só estou treinando o discurso, que estou decorando há um tempão. “O que achou?”
Olha, respondeu a dedicada esposa, eu tiraria essa parte do bigode.
Nunca ouvi ninguém dizendo que a gente vai para o espelho quando morre, o que poderia significar duas coisas: uma é que simplesmente ninguém sabe, mas a gente vai mesmo é para o espelho quando morre. Essa forma de interpretar era ruim para mim, pois significaria que realmente estava morto. A outra forma de entender porque ninguém nunca disse (que após a morte vamos para o espelho) é que a gente não vai mesmo para o espelho quando morre. Isso seria ótimo, pois eu estaria vivo, que é, aliás, exatamente como me sintia. Vivo, embora preso.
Eles podem ter confundido o Xerxes comigo, idéia para a qual eu torcia, afinal, significaria que eu não teria morrido, mas sim o coitado do Xerxes. Mas não dá para descartar a hipótese de que aquele corpo que eu vi no chão da sala não ter sido o de Xerxes, mas o meu próprio, o que significaria dizer que eu realmente estou morto. Se for assim, teremos mais dúvidas: Xerxes já tinha ido embora quando aquele gente atravessou o espelho e me matou? Ou o Xerxes nunca havia existido, sendo só uma projeção da minha mente, mais um de meus personagens? Estava vivo ou não? Nao parava de me perguntar isso. Compreendem que essa questão é muito mais complexa que a proposta por Hamlet?
Vivi um bom tempo assim, até que o espelho foi enviado para um antiquário. Foi um bom período, conheci muita gente, muitos ficaram encantados com o espelho, o que praticamente significava que fiaram encantados comigo. Mas a maioria se assustava com o preço. Até que veio uma senhora, muito distinta e quando viu parou e falou “é meu”. Ela não se importou com o preço. A dona da loja, para justificar a facada, falou que era do famoso escritor Humberto Laraia, que morrera em circunstâncias misteriosas, "um horror essa polícia que não descobre nada, onde é que vai parar isso, a gente nao tem mais segurança nem dentro da própria casa..." Eu levo, eu levo, cortou a senhora.
E o seu marido, não vem mais com a senhora, perguntou a dona da loja à cliente. “Com toda essa agitação dos preparativos para a posse, depois da doença do outro, sabe como é, ele fica do trabalho prá casa, da casa pro trabalho”. "Bom, se ele tiver que morrer mesmo, coitado, Deus é que sabe, mas para o seu marido até que é bom, não é?" A senhora nada respondeu e despediram-se. Em seguida fui levado para os fundos, de onde no dia seguinte saí num caminhão. Cobriram o espelho com cobertores. Foi como se estivessem vendando os meus olhos para que eu não visse o caminho, não soubesse para onde estava sendo levado. Não me sentia dentro do espelho, mas que eu era o próprio espelho.
Quando tiraram os cobertores, eu estava num grande quarto, todo cheio de móveis caríssimos, poltronas suntuosas, tapetes mágicos. Brega, mas imponente. Na primeira noite vi o marido, mas foi ele entrar no quarto e se jogar na cama. Dormiu rápido. A mulher até reclamou de ele dormir sem tomar banho, sem colocar pijama. "Tira pelo menos a gravata". Ele nem respondeu. Ela tirou-lhe a gravata. Foi assim várias noites, dormindo rápido, tomando ou não o seu banho, colocando ou não seu pijama listrado. No máximo, comentava algo como sua preocupação com algo que não acabava nunca. Nem conversavam. Eu estava curioso. O que eles esperavam tanto que acabasse? Quando a gente está dentro do espelho (ou quando a gente morre? Tomara que não), não acontece nada. A única diversão é ver o que acontece com os outros, saber quem são as pessoas, o que fazem.
Numa manhã, tocou o telefone. A mulher gritou de algum ponto da casa: “Zé, atende, é aquela ligação que você estava esperando”. “Alô... Não, nao, estou acordado, pode falar... O que?... Morreu? Puxa até que enfim... Obrigado pela notícia...” Gritou e pulou, pelado, na cama. Muito estranho ver um senhor de mais de 50 anos, com cara de austero, pulando daquele jeito. A mulher entrou correndo, ele a jogou na cama, foi tirando sua saia, depois a calcinha (que lembrou as que minha mãe usava) e caiu em cima. Em baixo, quero dizer. Ela começou a rir, reclamando aos gritinhos, que o bigode faz muitas cócegas. O bigode dele realmente era grande. “Porque não tira esse bigode?” Ele parou na mesma hora, levantou-se, cobriu suas partes como lençol e pronunciou, lenta e incisivamente “Nunca mais peça isso”.
Esse bigode, começou a discursar para a mulher, é minha marca, foi com ele que ganhei todas as eleições que ganhei. Ele esteve comigo todo esse tempo. Este bigode que está diante de vós, acompanhou toda a luta de minha família pelo povo injustiçado. Esse bigode que ostento com orgulho em minha face, vai, a partir de agora comandar os destinos desta nação. Certamente nenhum dos presentes tem dúvida de que o meu bem-estar social e o meu bem-estar pessoal estariam fora das atribuições que vou enfrentar, mas a paixão da vida pública é maior do que a paixão da própria vida.
Zé, cortou a esposa, você está aqui no nosso quarto, não lá, no meio daquela gente. Eu sei, respondeu ele, só estou treinando o discurso, que estou decorando há um tempão. “O que achou?”
Olha, respondeu a dedicada esposa, eu tiraria essa parte do bigode.
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