terça-feira, 25 de outubro de 2011

PERNAMBUCO, CONDÉ E ACÁCIAS AMARELAS


Tem coisas que a gente não se lembra como nem porque passou a gostar, mas adora aquilo. Dia desses descobri de onde vinha minha paixão por macarrão alho-e-óleo. Não quero falar de massas, mas de minha impressionante a identificação com tudo o que vem de Pernambuco, e isso certamente se reflete no que escrevo, afinal, este blógui é seguido por pessoas de Pernambuco que nunca havia visto antes. Esta semana surgiu mais uma seguidora pernambucana, a cantora Rogéria, de Caruaru.
Conheço Pernambuco mais que nenhum outro estado, sem nunca, entretanto, ter estado lá. Este paradoxo me remete a Campos de Carvalho:
“Aos 16 anos matei meu professor de lógica. Invocando a legítima defesa – e qual defesa seria mais legítima? – logrei ser absolvido por cinco votos contra dois, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris”. (A Lua Vem da Ásia)
Sentia-me um adolescente pernambucano. Vidas passadas? Acho que não, afinal, não sei se houve um rei em Pernambuco (já reparou que quem acredita nisso sempre foi rei em vidas passadas? Haja rei). O certo é que Rogéria, por ser de Caruaru, me fez brilhar uma fagulha de luz aqui dentro dos meus miolos a acabei por descobrir minha ligação oculta, que nem era tão oculta assim: a gente é que, no piloto automático da vida, para de pensar nas coisas que nos marcaram. Como é bom recuperar segredos guardados nos recônditos da mente. Como é bom lembrar de Terra de Caruaru:
“Há muitos anos que não havia tanta animação em Caruaru... O Abanadores e o Bela-União arrastando grande onda delirante no passo, sob a cadência dos frevos entoados pelas fanfarras.  De repente, o encontro dos dois clubes rivais que vinham pela Rua da Matriz... Abanadores do lado direito, Bela-União no esquerdo – e, à frente, a massa enlouquecida... Então, subitamente, o povo ficou em delírio. Já não era dança: sob a leve névoa de poeira que se erguia do chão, todo mundo pulava e gritava tomado de uma alegria selvagem. Tudo isso demorou menos de três minutos.”
A alma de Pernambuco está ou não todinha aí? Não, é claro: todinha não, porque...
Passado o delírio momentâneo e tendo as duas agremiações tomado o rumo normal do desfile, mestre Ananias, que comandava a fanfarra do Abanadores, viu Cravo Branco caído, o tronco magro curvado sobre as pernas.
- Gente! gritou...
- Chamem o doutor Gonzaga – pediu o mestre Ananias.
Ergueram o negro e o levaram nos braços até a calçada.
- Faca – afirmou alguém.
Nas costas, a fantasia de Luis XV de Cravo Branco era uma só mancha de sangue. Do começo da rua vinha a música do Bela-União, o vozerio do povo, a alegria do Carnaval que havia acabado para o presidente do Clube Mixto Carnavalesco Abanadores.
- Pobre dele – disse uma voz.
A violência, que caminha bem pertinho da alegria, não vem de agora, não surgiu no Amarelo Manga nem no Baixio das Bestas. Nem sei se vem da vida severina tão bem descrita por João Cabral. Mais certo é que venha da própria essência do homem a violência da morte matada, antiga como o tempo, como a chuva.
Começou a chover. Chuva forte que faz o povo fugir para as calçadas. Somente os que acompanhavam o corpo de Cravo Branco não tiveram medo do aguaceiro. Entraram no beco que ia dar na praça Euterpe, tomando rumo da Rua do Comércio quase às escuras àquela hora tardia. Pouco importava a chuva, porque Cravo Branco estava morto; o eco longínquo do frevo tocado pelo Bela-União soava como uma marcha fúnebre.
- Nunca fez mal a ninguém – lamentava-se a mulata... arrancava os próprios cabelos.
Sob o teto do casebre de Cravo Branco os nervos da mulata se acalmaram...
O enterro saiu às quatro horas.

Os trechos que estou citando são de Terra de Caruaru, do escritor que me transportou, adolescente, a Pernambuco, e cuja leitura me despertou, como nunca antes, o romântico, o apaixonado, o noctívago, o perturbado. Ou seja, grande parte da culpa é do tal de José Condé, nascido em Caruaru, ora pois.
Abriram-se todas as portas e janelas da rua pobre para seus moradores verem a passagem do cortejo. Mas ninguém chorava. Mestre Ananias deu o sinal e a banda começou a tocar a marcha fúnebre.
- Isso é triste demais – disse Jovina, que seguia ao lado do caixão.
- Lasque um frevo, mestre.
- O quê?
- Isto mesmo. Faça a vontade do morto. Toque um frevo.
De José Condé (1917 – 1971) devorei Histórias da Cidade Morta, Os Dias Antigos, Um Ramo para Luísa, Terra de Caruaru, Vento do Amanhecer em Macambira, Noite contra Noite, Pensão Riso da Noite: Rua das Mágoas (Cerveja, Sanfona e Amor) e Tempo Vida Solidão. Mais que um escritor pernambucano, Condé escrevia livros pernambucanos. Ler Condé era estar de verdade em Recife, em Caruaru, porque a arte faz a verdade transcender a realidade, a arte te leva com mais veracidade a um lugar do que mil férias turísticas.
Amei minha primeira mulher, Luísa, às margens do Capibaribe, embora nunca tenha estado no Recife. Paguei à vista.
Pararam a marcha fúnebre e o cortejo se deteve por uns instantes, toda gente curiosa por saber o que havia acontecido. Foi quando, súbito, a orquestra largou os primeiros acordes do frevo que melhor fora ensaiado naquele ano. Não se soube depois como tudo havia começado. Soube-se apenas que, à frente do caixão, o porta-bandeira deu alguns passos agitando a bonita bandeira vermelha do Clube Mixto Carnavalesco Abanadores e o povo o imitou imediatamente. Daí a pouco todo mundo dançava. Inclusive Jovina, que fazia o passo enquanto as lágrimas lhe caíam do rosto aberto em estranho sorriso.
Condé tinha aquilo que Chico Science falava: era enfiado na lama do Manguetown, mas tinha as parabólicas ligadas no mundo. Sua obra retrata o humano e suas universais angústias, mas também era engraçado e popular. Quem não tem a idade dos sobrinhos do Tio Moa (em suma, quem for mais velho) há de se lembrar de uma mini-série muito engraçada, que fez muito sucesso na Globo, com o Ney Latorraca na pele  de Seu Quequé em Rabo de Saia. História de um adorável caixeiro viajante mulherengo, que tinha uma família em cada cidade. Obra de José Condé. Veja que beleza:
Dois dias mais tarde, da janela do trem da Great Western, Ezequias Vanderlei Lins via a cidade ficando para trás, sob a névoa do amanhecer – e, com ela, Eleuzina e os Filhos, que tinham ido levá-lo à estação. Como das vezes anteriores, sentia-se comovido, pois, apesar de ter sido sempre, pela profissão, homem de muito viajar, achava que um pouco de si mesmo se perdia na hora de cada despedida. Como se não fosse retornar nunca mais; como se lhe roubassem parte essencial do seu ser.
Mas essas impressões que o envolviam, só o inquietavam por breves momentos. Embora se repetissem, inevitavelmente, amanhã, daí a um ou dois meses – e, assim, pela existência afora – logo recuperava o equilíbrio emocional, porque o que predominava acima de tudo era a vida – a convicção de que, acontecesse o que acontecesse, ele continuaria sendo, única e verdadeiramente, Ezequias Vanderlei Lins, seu Quequé para os íntimos, o mais eficiente caixeiro-viajante da forma atacadista Oliveira & Rodrigues.
Quando comecei a fazer teatro pensei um colocar algum José Condé no palco. Qual? Um Ramo Para Luísa é belíssimo, tocante, denso, mas eu queria um teatro mais visceral, mais porradão. Visceral? Noite Contra Noite! Porradão, pero sin perder la beleza. É dali a passagem de que tanto o Panta gostava: “maio frio de acácias amarelas caindo na grama do jardim público. Cheiro de Mar que o vento trazia de uma esquina”. Aliás, toda a obra de Condé espalha acácias amarelas por nossa existência.
Urbano Tavares, protagonista, faz um brinde ao tédio do casal: “Viva o silêncio, que é a forma mais decente de duas criaturas se entenderem e encontrarem a paz”.
Em setembro de 1988, em Florianópolis, o Teatro do Parixoréu estreava Noite Contra Noite, com um objetivo acordado com o filho do escritor em troca da liberação da montagem: divulgar a obra do pai. E assim fizemos, em entrevistas (milhares de entrevistas, milhares).
Depois de um mês, o dono da Livrarias Catarinense comunicou que os livros de Conde, recém chegados, haviam se esgotado!

Na peça, o enigmático “homem de chapéu coco”, além de outros personagens, foi feito por Atílio Maurício, com uma entrega quase catártica. Atílio, alguns anos depois, se foi em circunstância triste. Segue este pequenino e raríssimo trecho, em que Atílio interpreta dois personagens, como homenagem póstuma para eternizá-lo nas nuvens da grande rede. Graaande Atílio!

E viva José Condé, Pernambuco, Caruaru, Recife, Chico Science, João Cabral, Lirinha, Karina Buhr, Cleide, Nívia, Rogéria, Cravo Branco e as acácias amarelas. 

6 comentários:

Dassanta disse...

Vem timbora Moa, o magote pernambucano vai te arrecebê cum maió prazê!

Panta disse...

"maio frio de acácias amarelas caindo na grama do jardim público. Cheiro de Mar que o vento trazia de uma esquina" recitado pelo Móça. Isto sim, é saudade...
Isso sim !
Ou talvez quem sabe...
Snifff Snifffff Sniiiiiiiiffffffffff

Mário Xerxes Júnior disse...

Segundo comentário seguido do Panta com snifs. Meus snifs escorrem em silencio enquanto escrevo. Precisamos resolver isso!

Estrela cadente disse...

Já comeu o camarão com jaca de Pernambuco? Delíiicia de lamber os beiços....

Moacir disse...

Só se for com você, Estrela Cadente!!!

Panta disse...

Tio Móça
sem lamber dedos: teus pôstis são plenos de unidade, coerência e ênfase. Mas, que fazer?, vejo, para além disso, o silêncio de teus snifs rolados enquanto escrevias. Quer fazer?
Quem sabe, chuiffs??

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