quarta-feira, 2 de novembro de 2011

TIO MOA - TESTA DE FERRO POR ACASO



Em dezembro de 1935 nascia, nos Estados Unidos, um judeu chamado Allan Stewart Königsberg. Viveu, portanto, ainda que criança, a época do holocausto. Cresceu e se tornou comediante, adotando o nome artístico de Woody Allen, conhecido de todos por ser cineasta brilhante, roteirista excepcionalmente engraçado e que tem um humor cuja base é a neurose do homem das metrópoles, o sexo e a religião, especialmente a judaica.


Cobra Parada Não Engole Sapo, que é, como milhares de pessoas sabem, o nome deste blógui, é também, como todo o Brasil e a parte culta do resto do mundo sabem, o nome de um grupo brasiliense que, nos início dos anos 80 mudou a cara de Brasília, do Brasil e, por conseqüência, do mundo, no campo das artes, da política e da filosofia. Nos pôstis que contam a incrível história do lendário grupo, muito já se disse sobre as influências que o grupo teve, mas pouco se falou sobre o que influenciou o grupo, ou membros do grupo.


Então vamos lá: Tio Moa ainda era penas um sobrinho de uns 14 anos que ouvia pequenas reverberações da ditadura, que via filmes do grande Jerry Lewis e séries como Perdidos no Espaço e que lia José Condé, Hesse, Hemingway e Machado quando foi tremendamente impactado por um filme estrelado por um comediante judeu chamado Allan Stewart Königsberg, que tinha a idade da minha santa mãezinha (ainda tem, mas hoje vivem em planos diferentes). Tio Moa já gostava das comédias que tinha visto do cara, como Bananas, Um Assaltante Bem Trapalhão e Sonhos de Um Sedutor, e esperava mais uma boa comédia. De fato, havia bons momentos de humor no filme, mas... prá te falar a verdade... Não sei bem como falar... Talvez cantando a música que na época estourava nas rádios.


Não estou bem certo
Que ainda vou sorrir
Sem um travo de amargura...


Como ser mais livre, como ser capaz,
De enfrentar um novo dia
Eu que tinha tudo, hoje estou mudo, estou mudado...


Estava à meia-noite, à meia luz, no meu quarto, as letras passando no final do filme, e eu era uma outra pessoa. É a transubstanciação da qual talvez somente a arte seja capaz de fazer. Definitivamente eu seria alguém que não se dobraria às injustiças, alguém que, embora não dotado de grandes qualidades, teria ao menos a de lutar contra a injustiça e a opressão. Assim pensava meu coração juvenil, que, convenhamos, é o melhor coração que há – nunca tive um coração tão belo quanto aquele (se todas as células de nosso corpo se renovam de sete em sete anos, aquele era meu terceiro coração, disparado o melhor dos sete que já tive – espero que essa visão retrospectiva me ajude a formar-me um oitavo coração tão bom quanto aquele).


O filme, no qual Woody Allen é apenas ator (nem, roteirista, nem diretor), se passa em 1950, época em que a terra mãe (que antes era Portugal, mas que depois do cinema passou a ser a “América” – mãe é quem cria) começava a mergulhar na tal da guerra fria, aquela guerra contra o comunismo que certamente destruiria o american way of life, grande orgulho dos americanos. Havia um horror a tudo o que podia ter uma ligação, ainda que muito distante, com “os vermelhos”. O horror era algo assim: se você tinha um primo em segundo grau que houvesse passado em frente da casa de um cara que havia estudado 20 anos antes com um comunista, você estava em maus lençóis. Com vocês, a wikipédia:


Lista Negra é um termo famoso historicamente, e se tornou de uso comum, por denominar a relação de pessoas que foram perseguidas ou proibidas de exerceram sua profissão sob a acusação de serem comunistas, pelo Comitê de Investigação de Atividades Anti-Americanas do Senado dos Estados Unidos, no período de “caça as bruxas” do Macartismo, nos anos 1950 nos Estados Unidos, no auge da Guerra Fria. A mais famosa destas perseguições se deu entre a comunidade da indústria do cinema e do entretenimento. Todos aqueles que se negavam a depor ou eram considerados suspeitos de afinidade ideológica com o comunismo, ou mesmo confessavam sua filiação ao Partido eram proibidos de trabalhar para os grande estúdios.


Woody Allen, The Fronte, o testa de ferro
Woody Allen é caixa de um restaurante, amigo de Alfred Miller, um roteirista que entrou para a lista negra. Alfred propõe a ele que assine seus roteiros e os leve à TV apresentando-se como o autor Howard Prince, e que fique com 10% do total recebido pelo roteiro. O roteiro faz sucesso e Prince começa a gostar da fama, mas os 10% ainda não o tiram da miséria nem são suficientes para pagar suas dívidas. Então Miller o apresenta a outros roteiristas da lista negra, todos excelentes, e a coisa engrena. Todos os roteiros fazem sucesso e Miller fica bem de vida e ainda por cima uma produtora de TV, lindíssima, se apaixona por ele.


Mas, como ocorre com Joseph Klimber, nem tudo são flores na vida de Howard Prince: lá está o Comitê de Investigação de Atividades Anti-Americanas do Senado dos Estados Unidos para investigá-lo. Descobrem suas ligações com roteiristas da lista negra e o convocam para prestar depoimento na comissão, ocasião em que ele, para se livrar, deve entregar ao menos um nome.


Zero Mostel: personagem e interpretação inesquecíveis
Mas aí já estamos no final do filme e não dá deixar de falar algo sobre o filme todo: uma direção sensível de Martin Ritt e um roteiro forte, mas delicado, de Walter Bernstein, ambos que sabiam o que filmavam: haviam figurado na lista negra do macartismo. E chamaram não um ator dramático, mas um comediante inteligente e sensível para fazer o papel do testa de ferro. Foi o pulo do gato. O filme é muito denso e chega a ser chocante (como no suicídio de um ator, magnificamente interpretado por Zero Mostel, que caiu na lista negra sem que tivesse qualquer ligação com comunismo), mas com Woody Allen e seu personagem, The Front tem um bom humor e uma leveza que só fazem aumentar sua força.


A opressão e a injustiça são universais, e mesmo nas mais abertas democracias, num governo ou até mesmo numa empresa, na sua empresa, por exemplo, há sempre alguém disposto a usar seu poder para oprimir e impor, à força do medo, seu desejo de poder.


Ao pobre, humilde e meio ignorante Howard Prince, para se livrar, bastava denunciar alguém, um dos roteiristas que estavam na lista negra, por exemplo, afinal, já estavam na lista negra mesmo, nem iria mudar muito a situação deles, apenas confirmar que eram simpatizantes do comunismo. O produtor sugere que ele indique como comunista o ator que havia se suicidado – “ele já está morto mesmo, você não pode prejudicá-lo mais do que isso”.


Woody Allen e Andrea Marcovicci, a produtora
Corte: na véspera, num encontro com a produtora, que se demitira da emissora por não concordar com a política de colaboracionismo da TV com a comissão macartista, um Howard apaixonado dizia à amada que, seja lá o que dissesse à Comissão, ela se orgulharia dele (sempre uma mulher por trás das melhores coisas que o homem faz). Ela que já havia se decepcionado com ele ao descobrir que ele não escrevia absolutamente nada e a enganava com isso.

No momento final da sessão, Prince tem que se decidir, entrega alguém ou não? Mal maior não causará a ninguém, especialmente ao ator morto. Basta isso para se livrar.


O final do filme? Conto ou não? Não.



Quase dez anos depois estava lá, o Tio Moa, diante de um grande diretor dos Correios, empresa em que trabalhava. Ninguém sabia, mas Tio Moa fora o redator das comunicações da primeira greve depois de vinte anos de ditadura. Ditadura que por sinal persistia, ao menos naquela empresa. Colega de um dos diretores da “Associação” – na época sindicatos eram proibidos, prestou serviços de redação: o pessoal do “comando” da associação era bom de carro de som, mas não de escrita, e a comunicação escrita era para inflamar todos os funcionários do país. Eles queriam uma greve, e a greve era justa, pois, em plenos primeiros meses da abertura política, a empresa teimava em não dialogar e em oprimir, numa época de alta inflação e sem querer dar um aumento digno. Foram quase dois meses de comunicados nacionais escritos por este Tio e assinados pelo comando da associação. E o negócio pegou fogo em todos os cantos do país. Em 10 de outubro de 1985 nascia a primeira filha do Tio Moa e estourava a primeira greve pós-ditadura. Caça às bruxas. Tio Moa, até então oculto, teve que decidir: entrar no trabalho ou ficar lá na frente, à vista de todos, em adesão à greve. Ninguém do cargo que Tio Moa ocupava aderira à greve. Eram o que se chamava de pelegos. Filha recém nascida, demissões de grevistas e Tio Moa na dúvida, entra ou não entra para o trabalho.


Não entrou, ficou ali, à frente de todos, em meio aos grevistas (os vermelhos!!!). Começaram as demissões, diárias. Um dia avisaram que o nome do Tio Moa encabeçava a lista de demissões do dia. Disseram que o Coronel Manoelito queria falar comigo. Ao receber, simpático e gentil (um grande Homem, aquele coronel), um assustado Tio Moa, afirmou gostar muito dele, saber que acabara de ser pai e que aderira à greve. Por fim, afirmou ter que mandar uma lista ao presidente e pediu que declarasse porque estava ausente por vários dias, se por adesão à greve ou pelo nascimento de sua filha.


O que responder?




Não, não somos originais. Sempre repetimos modelos; modelos, é bem verdade, que nós mesmos escolhemos. A questão é: que modelos devemos seguir? Normalmente seguimos os modelos com os quais mais nos identificamos, os modelos ensinados (às vezes sem querer) por nossos pais; no caso de Tio Moa, os modelos de sua Santa Mãezinha, que, como disse, tinha a mesma idade de Woody Allen.


O Coronel repetiu a pergunta. O que responder?


Em verdade, mais de 90% do tempo de ausência ao trabalho naqueles dias era verdadeiramente dedicado à recém nascida Tani, beleza de menina, mas não houve dúvidas. “Estou em greve”, afirmou um assustadíssimo e trêmulo, mas resoluto Tio Moa.


O fim do filme? Não conto, mas que é magnífico é. Magnífico a ponto de influenciar, uma década depois, ainda que inconscientemente, um homem, um recém homem, ainda com “h” bem minúsculo, a tomar uma decisão aparentemente estúpida, que punha em risco a estabilidade de sua família, mas em nome da liberdade de assumir uma posição que acreditava certa, justa.


Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta,
não há ninguém que explique e ninguém que não entenda
(Cecília Meirelles)


Coronel Manoelito, grande homem, fino, delicado e provavelmente amante da beleza e da justiça, certamente valorizou algo de mais importante, além do que ele ouviu. Tio Moa seguiu na empresa.


O fim do filme? Não tem como explicar. Você, que acredita no triunfo da beleza e da justiça, assista The Front, ou “Testa de Ferro Por Acaso”.
http://www.2001video.com.br/busca/listagem_busca_home.asp?campo=Titulo_em_portugues&procurado=testa%20de%20ferro

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