Olá, leitor amigo, leitor inimigo, leitor indiferente a este autor, sobrinhos ávidos por descobertas, esposas de sobrinhos, sobrinho exímio guitarrista (Paulo Ribeiro, a quem, em minha fase pobre, dei um DVD pirata do Pat Methneny que não rodou – só para constar, a fase pobre já passou e tenho saudades dela...).
Antes de continuar lendo, pegue seu fone de ouvido, ou aumente o volume dessa caixinha de som furreca que você tem conectada ao micro. Ouça o link abaixo enquanto lê. É sério. Se não for ouvir, melhor nem ler. Dê o play. Pronto, pode continuar.
Homem das Ruas
Outro aviso, este ao leitor feliz que adora colocar mensagens positivas no facebook pensando que vai fazer bem a si ou a quem quer que seja: Humberto Laraia se apropriou dos dedos que digitam estas letras, o que significa que este pôsti é somente para aqueles que possuem coração onde nuvens negras choram.
Quanto ao que você está ouvindo, pelo jeito de cantar você deve estar pensando que é o Tio Moa cantando com sua voz gutural erótica em uma de suas raras e disputadas aparições nos palcos de karaokê da capital federal. Karaokê, veja só... Sem o virtuoso violão do Luiz, irmão do Junco, com quem cantava blues nos anos 90, Tio Moa teve que apelar para os Karaokês... É a vida.
Voltando à música, não; não é o Tio Moa cantando. O que o Tio Moa faz, desde que conheceu Celso Blues Boy, é cantar como ele, porque sempre lhe pareceu ser esta a única forma sincera de se cantar. Celso Blues Boy é um virtuosíssimo guitarrista brasileiro que ousou compor, tocar e cantar blues brasileiro. Blues, que conheci de verdade com o Paulão Magalhães, um amigo com alma de bluesman, é um gênero de origem afro-americana, que começou expressando a dor e o sofrimento dos escravos do sul dos Estados Unidos. Hoje o blues continua igual, expressando a dor e o sofrimento da escravidão, só que agora é a escravidão do amor e da solidão. Robert Johnson, que teria vendido sua alma ao diabo numa encruzilhada, popularizou o blues. Bob Dylan, Eric Clapton e BB King beberam em sua fonte e se lambuzam até hoje. Celso Blues Boy compôs uma música (Mississipi) com essa história do Robert Johnson, e a gravou dividindo guitarras e vocais com BB King. CBB fazia blues brasileiro e viveu o blues radicalmente, até o fim. Mas do fim falarei só no fim, como convém à cronologia da existência, exceto naquele filme chato em que o Brad Pitt nasce velho.
Agora dá um stop na música anterior e bota pra tocar essa maravilha aí embaixo, antes de continuar a ler.
Trata-se de “Se você pudesse me ver” – tudo é lindo, letra, melodia, canto e guitarras incríveis do Blues Boy, cujo apelido, referência ao BB King, foi dado provavelmente quando tocava com Raul Seixas. O próprio BB King convidou CBB a fazer carreira nos Estados Unidos. Recusou, como também recusou o convite para fazer parte do lendário The Commitments, grupo criado por Alan Parker para o filme homônimo (não deixe de ver, se gosta de música e de cinema) e que continuou como grupo depois do filme. Nosso Blues Boy chegou a ser sucesso por aqui, no final dos anos 80, com o petardo “Sempre Brilhará” tocando nas rádios, na TV e em alguma novela. Mas Celso gostava mesmo era de seu mundo blues, de ser marginal. Aliás, seu segundo disco é o Marginal Blues, cujo carro chefe era a agitada “Marginal”, que gravou com Cazuza, que entrava bem ao seu estilo, rasgando com
A sua mãe não trabalhava
Prá você virar um marginal!
A popularidade dos anos 80 nunca mais se repetiu, mas Celso Blues Boy manteve-se como um ícone, não só entre os fãs do blues, como entre os roqueiros e os guitarristas brasileiros, porque o cara realmente era um monstro. “Era”, porque, se ainda não disse, ele morreu há menos de duas semanas, aos 56 anos. CBB foi considerado pela revista Backstage americana um dos 20 maiores guitarristas do mundo. Sua popularidade nunca mais foi a mesma, o que, felizmente, não significa nada (Michel Teló é popular no mundo todo).
Pois foi exatamente na fase pós-fama, já no final dos anos 90, que CBB compôs seus melhores discos, os insuperáveis Indiana Blues-1996, Nuvens Negras Choram-1998 e Vagabundo Errante-1999. Neles, sua voz está mais madura e sua guitarra mais impressionante, com solos que choram no melhor estilo Duane Allmann. São estes os discos mais ricos, equilibrados, emocionais e, sobretudo, mais depressivos, portanto, mais belos.
"O quê", indaga o incrédulo leitor positivista que teimou em ler o pôsti até aqui. "Quanto mais depressivo, mais belo?"
Aqui um esclarecimento a todos aqueles que postam lindas mensagens de vida no facebook porque pensam que a felicidade é a melhor coisa do mundo: sinto por contrariá-los, mas a verdadeira beleza vem da dor. A Nona Sinfonia, a maior composição da história do planeta, foi composta na fase mais dolorosa de Beethoven. Você já leu, do Goethe, “Os sofrimentos do jovem Werther”? Uma maravilha! Um dos maiores discos brasileiros de todos os tempos, “Loki”, é uma ode à dor. Tenha certeza de uma coisa: alegria só faz axé e pagode. Sofrimento e dor fazem arte e beleza.
Então eu toco um blues, são as notas que choram
feito um açoite é a minha guitarra
no coraçao da noite, no coração da noite
Caso a música anterior tenha se acabado, coloque essa que vem abaixo. Se não, espere acabar, porque é uma heresia interromper essa maravilha no meio, e justamente num solo alucinante, delirante, emocionante, ante ante ante.... Calma, relaxa esse coração cheio de angústia, essa alma que transpira ansiedade... Ouça...
Pronto, acabou. gora clica na próxima.
Pronto, acabou. gora clica na próxima.
Antes que você chore, vou te dar um presente: para quem pedir, via comentário, eu faço um CD com uma seleção. Quem não for de Brasília, manda o valor de um SEDEX (não aceito outras forma de postagem, nem outra empresa) que eu envio. Mas saiba que um CD de seleção é um avilte, não serve para conhecer um músico, assim como melhores momentos de um jogo não serve para saber como foi o jogo. Uma seleção serve para dar um empurrãozinho, para querer conhecer, para a gente sair do óbvio, conhecer alguém diferente e ter vontade de ir atrás de seus discos.
O óbvio é gostarmos de Eric Clapton (o Deus), Bob Dylan, Pat Metheny, Gilmour e outros gênios mais conhecidos. Mas há um gênio por aqui, pertinho, e não conhecemos. E não se trata de valorizar a coisa nacional, que isso é bobagem - "O patriotismo é o último refúgio de um canalha". O que vale na arte não é a sua origem geo-política, mas ser tocado por ela. É assim na música, no cinema, na arte, enfim. Para ser tocado por uma música, ela tem que conversar com a gente, nos dizer algo no fundo da alma (é óbvio que a qualidade é condição sine qua non - o Michel Teló pode eventualmente dizer algo a mim, o que duvido um bilhão de vezes, mas digamos que me fale - nem assim me tocará, porque ele faz lixo, não arte). O blues brasileiro do Celso Blues Boy me diz muito, e é muito, mas muito bom.
Como disse no início, Celso Blues Boy viveu o blues até o fim.
Descobriu uma merda de um câncer na garganta, mas recusou o tratamento.
Não contou para ninguém e pediu para ser cremado, virar fumaça.
Fumaça que tanto aparecia em suas letras...
O que sei é que a morte de um músico nunca me abalou tanto.
Sinto-me a própria Sra dos Sarsais quando Dércio Marques se foi, com a diferença que não chorei, porque sou homem e homem que é homem não chora! Coça o saco e arrota no lugar de chorar, para mostrar que é homem. Além de não chorar, o homem mente um bocado.
Mas, você há de convir... Celso Blues Boy não é como qualquer outro: eu cantava imitando o cara!
Quando a gente canta, é nossa alma se lavando, se abrindo... Tá bom, tá bom: estou chorando!
Sinto o inverno em minha alma...