Pergunta 1: Você já se pegou ouvindo, num filme, numa novela, ou mesmo lendo um livro, algo que te liga diretamente com algo que você já viveu, ou algo que você já sentiu?
Nunca? Pense bem: é como se, cifrada sob a fala de um personagem, aquilo tivesse sido escrito diretamente para você. Bom, eu já senti isso, algumas vezes. Muitas, na verdade. Ao ouvir, parece que reacende algo bem lá dentro da gente, e nos enchemos de melancolia e nostalgia...
Normalmente os melancólicos e os estranhos sentem mais esse tipo de coisa. Pessoas normais não tem essas frescuras, não; nem tem tempo para isso. Pessoas normais são práticas, vivem o presente e planejam o futuro. Pessoas normais são mais comuns. Já os estranhos... são estranhos, o que mais dizer? Melancólicos? Sim, os estranhos em geral são melancólicos e andam de abraços com a nostalgia.
Não sei se sou incomum, estranho ou melancólico, se sou tudo isso junto ou se sou, como a maioria, apenas alguém que,mesmo sem confessar a mim mesmo, sempre invejou os incomuns, os estranhos, os melancólicos e, por consequência ou parentesco, os lunáticos. O fato é que sempre vi mais mérito nos incomuns, nos estranhos, nos alucinados, nos melancólicos, nos desajustados. Ou, no mínimo, sempre me pareceram pessoas mais interessantes.
Pergunta 2: Como é a sua alma? Não a cor, nem o formato. Aqui não interessa se sua alma é rosa, verde ou azul; nem se ela tem a forma de cubo, tetraedro ou grão-de-bico. O que importa saber é se sua alma voa. Almas que voam são sensíveis aos ventos, afetam-se com a dor alheia, ainda que o alheio seja muito alheio, enxergam poesia em tudo. Quem tem alma voadora, sempre abre primeiro a mensagem daquela que ama, ou que quer amar, mesmo que seja o último dia para pagar suas contas; e, se realmente havia mensagem dela, muito provavelmente vai se esquecer de pagá-las, seja pela distração da dor de uma recusa, seja pelo tresloucar do amor correspondido.
Pergunta 3: Você gosta de cinema? Gostar que eu digo é admirar, não apenas divertir-se. É admirar e admirar-se, emocionar-se com um belo trabalho. Muita gente diz “eu não entendo de cinema, eu não sei se a câmera é assim ou assado, nem se o diretor é isso ou aquilo, eu só gosto de cinema”. Estão enganadas: entendem sim, porque o cinema é uma arte que pretende tocar o expectador, e não um quiz, um joguinho de conhecimentos. Não precisa saber o que é fade-out para sentir-se tocado pela beleza daquela cena cuja imagem final vai se esmaecendo aos poucos, escurecendo a tela. Também não precisa saber que o Sean Penn usa o método Stanislavski, se é que usa. Não precisa, aliás, nem ao menos saber que aquele personagem é feito pelo Sean Penn. Basta que você saiba que ali há um ator interpretando um personagem e que seja capaz de se emocionar com seu trabalho.
Se você respondeu afirmativamente às 3 questões, não deixe de ver “Aqui é o meu lugar”, filme que acaba de entrar em cartaz. Cheyenne é um roqueiro que fez sucesso nos anos 80, compondo hits depressivos para jovens depressivos. Milionário mesmo após não ter feito mais nada nos 30 anos que se seguiram e ter fugido da mídia devido a uns problemas que você vai descobrir vendo o filme, Cheyenne está decrépito, efeito das drogas e do personagem que criou para si e que até hoje não abandonou: todos os dias maquia-se e usa roupas do mesmo estilo da época em que cantava (e que por sinal remete diretamente a Robert Smith, vocalista e líder do The Cure - veja a semelhança abaixo). Nunca mais saiu da cidade irlandesa em que mora.
Enfim, Cheyenne é um cara muito estranho, daqueles que espanta se cruzar com a gente no corredor do supermercado. Ele tenta unir uma jovem amiga roqueira com um jovenzinho careta que ele mal conhece, mas com quem simpatiza. Atrapalhado, arrastado, decrépito e estranho, ele balbucia frases geralmente curtas, mas sempre espirituosas. E vai vivendo a sua vida... assim, melancolicamente, em puro e essencial tédio. Até que descobre que o pai, que não vê há mais de 30 anos, está à morte. Viaja para Nova York, chega tarde. Descobre que o pai, judeu que passou por campos de concentração, passara a vida toda perseguindo, sem êxito, um nazista que ainda estaria vivo nos Estados Unidos.
Diz a filosofia que a procura de si mesmo é a luta mais dolorosa que um homem pode ter. Passamos boa parte da vida fugindo do que somos. Fingimos ser outro com medo de ser o que realmente somos. Às vezes criamos personagens que nos mantém protegidos. Mas a recusa ao nosso verdadeiro eu traz o tédio. O que é pior, a dor da busca ou a do o tédio?
Cheyenne, que passa 30 anos escondido atrás de seu personagem, cansado do tédio finalmente começa, embora negue, a sua busca. Imagina você, leitor que já está estranhando essa esquisitice toda: o que vai pensar agora se eu disser aqui que Cheyenne resolve, com toda aquela esquisitice, procurar, pelo interior americano adentro, o tal nazista? Que o filme pode ser uma bomba? Tem razão: esse argumento meio inverossímil é puro risco. Tem que ser muito bom para fazer essa coisa toda dar certo. Precisaria de um grande diretor e do melhor ator da atualidade para interpretar.
Pois vamos ao resultado: o diretor, Paolo Sorrentino, faz um filme belíssimo, ao mesmo tempo muito engraçado, sem ser comédia, e cheio de poesia e beleza, sem ser nouvelle vague (ufa!). Fazer isso não é pouca coisa. E o ator? Tinha que ser o máximo, tinha que criar um personagem exótico e estranho, mas que fosse crível e com o qual pudéssemos nos identificar. E o maior ator da atualidade, Sean Penn conseguiu: Cheyenne é um pouco de nós mesmos, é humano, puro, engraçado e cativante.
Não há uma cena sem uma beleza específica: diálogos inspirados (o jantar na casa de Cheyenne, o vendedor de armas, o tatuador no bar), situações inusitadas (a gótica gordinha correndo para pegar autógrafo) cenas cômicas às dezenas (a do elevador no navio, a do caçador de nazista preso no banheiro do hotel, a do ping pong), ou profundamente tocantes (quando ele acompanha, ao violão, o garoto, filho da bela neta do nazista, cantando This Must Be the Place – por sinal, o título original do filme, do Talking Heads). Há ainda a cena com David Byrne, compositor da música que dá o título ao filme, com quem Cheyenne tem um desabafo que nos dá um petuxo na goela e avisa que o filme não será “fofo” o tempo todo.
Alguns amigos, provocados pelo Fábio, discutiam sobre a importância do final para um filme. Uma história bem contada compreende um bom final, o que não significa um final bom; o que importa é fechar a ideia, é completar uma linha de pensamento, passar a sensação de que “tinha mesmo que ser assim”. E assim é o final deste filme. Se uma procura ao fundo de nós mesmos já é complicada, ainda mais o é com um tema forte como o holocausto. E o final, que parece que não podia ser diferente mesmo, fecha tudo, é corajoso, duro, inspirador e emocionante.
No final das contas, é um filme belo e tocante. Saí nostálgico. Sempre fui meio melancólico. Os jovens dos anos 80 se deprimiam ouvindo o ótimo som agitadinho do The Cure. Eu, ouvindo Arnaldo Baptista e sofrendo por amor (o que, aliás, une Arnaldo, o som do The Cure e eu). O que parece é que pessoas assim estão em busca de algo e talvez seja isso que me atraia nelas. Podem estar meio atrasadas, mas estão no caminho. Melhor assim do que nunca buscar a essência. Esse personagem que nos protege dos outros é o mesmo que nos afasta de nós mesmos e nos dá esse tédio e medo da morte.
This Must Be the Place tem este trecho, que no filme David Byrne canta, o menino canta e agora eu canto, até pelo adiantado da hora, a você, leitora suspirante:
I got plenty of time
You got light in your eyes
And you're standing here beside me
I love the passing of time
Never for money
Always for love
Cover up and say goodnight
Um comentário:
b-E-i-j-O!!!!
Postar um comentário