Mais de 50 anos depois, com internet, redes sociais e o diabo
a quatro, a profecia está, com ou sem a nossa permissão, se cumprindo: alguém,
em algum lugar, pode saber tudo de nós.
Raul Seixas, na genial Paranóia, brinca com esse medo, transferindo-o a Deus:
Minha mãe me disse há tempo atrás
Onde você for Deus vai atrás
Deus vê sempre tudo que cê faz
Mas eu não via Deus
Achava assombração, mas...
Mas eu tinha medo!
Eu tinha medo!
Onde você for Deus vai atrás
Deus vê sempre tudo que cê faz
Mas eu não via Deus
Achava assombração, mas...
Mas eu tinha medo!
Eu tinha medo!
Vacilava sempre a ficar nu lá no chuveiro,
com vergonha
Com vergonha de saber que tinha alguém ali comigo
Vendo fazer tudo que se faz dentro dum banheiro
Com vergonha de saber que tinha alguém ali comigo
Vendo fazer tudo que se faz dentro dum banheiro
A pergunta é: agora, que já estamos no futuro, isso já não
nos aterroriza mais ou não estamos nos dando conta dos perigos que corremos?
“Perigos”, aqui, não são apenas os concretos e
criminalizados, como invasões de hackers nas contas bancárias, assaltantes e
maníacos sexuais. Esses são os menores. Perigo de verdade são aqueles que o Raul
e o filme francês “Dentro de Casa”, que está nos cinemas, apontam: nossa
intimidade pode não ser mais íntima, e, ao não ser íntima, não é mais nossa e,
assim, não temos mais a plena e total propriedade do que fazemos, de como
usamos nosso banheiro, nosso quintal, nosso quarto... Se nossa existência se
confirma pela nossa “persona”, única e individualíssima, perder essa nossa
individualidade é quase como deixar de existir. Este é o verdadeiro terror.
“Dentro da Casa”, o filme, já impacta nos créditos de
abertura, com fotos de alunos de uma escola, num mosaico do qual, no lugar de
se afastar e mostrar que somos apenas mais um na multidão, o que, digamos, é um
conforto e uma segurança, a câmera se aproxima, como se escolhesse alguém ao
acaso para mostrar... e invadir. Há um desconforto já ali.
No mesmo sentido, do todo para o específico, um professor
corrige, compartilhando com sua esposa, redações medíocres de seus alunos. Entre
tantas, uma chama a atenção do casal. Em boa escrita, um aluno conta como escolheu
um colega para, sob o pretexto de ajudá-lo em matemática, aproximar-se, entrar
em sua casa e analisar ironicamente sua família, sua vida privada.
O filme estabelece um paradoxo ao deliberadamente não utilizar nenhum dos instrumentos mais comuns e esperados para invadir a privacidade: não usa, em nenhum momento do
filme, um computador sequer. Nenhuma dessas máquinas diabólicas é acionada. Trata-se
apenas um colega do filho que entra em sua casa, e relata tudo nas redações,
escritas à mão e mostradas ao professor.
A esposa do professor, mais que este, parece enxergar o
horror e o perigo daquilo, e alerta o marido, mas este não consegue botar um
ponto final nas redações, interessado que está no desenvolvimento do aluno
escritor... Ou o interesse estaria, além da tarefa de orientação, em extravasar
seu desejo, que é um pouco o desejo de todos nós, de invadir a vida alheia?
O professor pergunta ao aluno: “Porque escreve o passado no
presente?” “É uma maneira de me manter dentro da casa”, responde o aluno. “O
que vem em seguida?”, o professor instiga o aluno a continuar.
“O que vem em seguida”. É exatamente isso que nós, que assistimos,
nos perguntamos, cada vez mais retorcidos na cadeira. “Dentro da Casa”, filme de
puro suspense, tem direção impecável e interpretações absolutamente
convincentes, que nos levam, inevitavelmente a reflexões inconfortáveis.
Bônus: as duas atrizes, Kristen Scott Thomas, aquela
maravilhosa de “O Paciente Inglês” (1996) e Emmanuelle Seigner, a louquinha deliciosa
de “Lua de Fel” (1992). Ambas, agora em torno dos 50 anos, exuberantes de
talento, beleza e sensualidade, explodem na tela e parecem, imbuídas do
espírito de Nelson Rodrigues, aconselhar às novas divas do cinema, às lindas universitárias
e às gostosinhas do happy hour: mulheres jovens, envelheçam, por favor.
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