domingo, 17 de julho de 2011

OS 10 MAIS - AVOHAI E O SEGUNDO ANDAR DA SUA CASA

Neste estranho mundo em que você é diariamente pressionado para conseguir as coisas que você quer, ou pensa que quer, já que é a sociedade que lhe impõe as vontades sem que você perceba, quase não há chances de respirar. A correnteza louca desta vida te arrasta para bem longe de você mesmo.

Imagine-se na sua casa, com muita gente, num domingo muito quente e cheio de homens bebendo muito e falando alto com suas vozes grossas, crianças correndo pela casa e gritando com suas vozes finas, e a TV em alto volume ecoando o chato do Faustão gritando PORRA MEU com sua voz de Faustão . 

Você pode até pensar que gosta dessas coisas isoladamente, mas quando todas são colocadas juntas e exacerbadas aí já são outros quinhentos. E você lá no meio, com vontade de respirar e de ouvir silêncio, para poder se conectar com algo ou simplesmente com nada, torcendo que chegue logo a hora de todos irem embora, mas quando vão, você tem que arrumar tudo e tem que tomar banho e tem que se preparar para o trabalho no dia seguinte. Você definitivamente não consegue respirar. Assim é a sufocante vida moderna: um domingão desses. 

Agora imagine que na sua casa tivesse um segundo andar mágico, para onde você pudesse subir. Imagine que nesse andar não chegasse barulho nenhum, nenhum, nenhum, a não ser o das asas dos pássaros batendo de quando em quando e o leve roçar das folhas das árvores ao vento. Imagine que houvesse uma poltrona bem gostosa num quarto bem amplo, de frente para a varanda, onde você se sentasse e sentisse a vida calma correndo pelas suas veias e pelos seus alvéolos. Esse andar seria mágico não por causa disso tudo de que até agora falei, mas porque ele seria refratário a todos os pensamentos mundanos e cotidianos, a todos os seus barulhos internos, que você levaria contigo se o seu segundo andar não fosse mágico.

Eu sei que você não tem o seu segundo andar mágico... Mas saiba que eu tenho. Morra de inveja... Tudo bem: como eu sou uma pessoa boa, além de inteligente, sensível, compassiva e modesta, não vou tripudiar com a exclusividade do meu segundo andar mágico. Vou dividi-lo com você, não sem um certo custo, evidentemente. 

Você terá o seu segundo andar mágico, basta que para isso saia agora mesmo de sua casa, ou melhor, basta que para isso você acabe de ler este pôsti e depois saia imediatamente de sua casa e vá correndo, sem ultrapassar os limites de velocidade, para o shopping mais próximo e entre na primeira boa loja de CDs que você encontrar e compre o disco gravado em 1978 por um paraibano esquisito que atende pelo nome de Zé Ramalho. O nome do disco é Zé Ramalho, mas é mais conhecido como Avohai.

Voltemos ao domingão insuportável que é a sua vida. Não se ofenda, porque a minha vida também é assim, mesmo que meus domingos sejam, infelizmente, solitários. Creio, caro sobrinho, que você entendeu que o Tio Moa usou o domingão apenas metaforicamente, certo? 

Pronto, está lá você no domingão de sua vida. Agora ligue ponha um fone de ouvido e ligue o CD recém comprado. Você imediatamente vai visualizar uma escada toda branca, hollywodiana, larga e em curva, como nos musicais. Não digo que seja como a escada pela qual desce Norma Desmond na cena final de Crepúsculo dos Deuses, o melhor filme da existência, desde que a existência foi criada por deus, por que naquela escada havia uma escuridão crepusucular e a escada de que falo, que aparecerá à sua frente assim que colocar o CD na vitrola (!), é branca, clara, matutina.

Com os primeiros acordes, sem que você faça o menor esforço, sem que você coloque um pé diante do outro, você já estará subindo os primeiros degraus. Esses acordes... Meu deus, o que são esses acordes?  Uma viola inicia o caminho e te faz subir o primeiro degrau, aí entra um sintetizador que toca algo que te faz subir mais uns 4 degraus de uma vez só. O sintetizador é do tecladista Patric Moraz, que acabava de gravar seu último disco pelo Yes, banda seminal do rock-pop-viajandão (e aqui não vai, embora você não acredite, nenhuma ironia – como poderia eu ironizar uma banda que influenciou decisivamente Arnaldo Baptista, meu deusinho particular?) 

Enfim, só com os primeiros acordes de Avohai, primeira música do disco, você já subiu toda a escada e está no seu segundo andar mágico. Aí vem a voz de Zé Ramalho, que parece vir direto do coração do mundo, “do orbe oriundo” (ah, os poetas românticos).

Um velho cruza a soleira
De botas longas, de barbas longas, de ouro o brilho do seu colar
Na laje fria onde coarava sua camisa e seu alforje de caçador
Oh meu velho e invisível Avôhai
Oh meu velho e indivisível Avôhai

A participação de Moraz termina em Avohai, a música, mas não precisava de mais nada, afinal, você já está no seu segundo andar. Já o fantástico baixo de Chico Julien pontua o disco todo e é como se ele esticasse os teus intestinos e tocasse com eles; sim, os teus intestinos, leitor incrédulo. Não há nada melhor do que algo que reverbere diretamente em nossos intestinos.

Gente de bem, críticos musicais, entre outros, dizem que Zé Ramalho trouxe o psicodelismo, moda no final dos anos 70, para suas letras. Nada mais enganoso pensar assim. Ah, essa gente do sul... Zé Ramalho, o paraibano que canta como se fosse o dedo de deus, traz aquilo que a cultura de nordeste tem de mais profundo, de mais atávico: as míticas lutas entre o bem e o mal, expressas no universo mágico e encantado do cordel, manifestação popular secular, enquanto que a psicodelia, embora influenciada por universos anteriores, pertence ao final dos anos 60.

Pares de olhos tão profundos que amargam as pessoas que fitar

E depois de Avohai vem Vila do Sossego, que deixa pequeno, caro leitor, todo os probleminhas e barulhinhos dos andares de baixo da sua vida, porque aquele coro com as vozes de Amelinha e Elba Ramalho te remetem ao fundo do seu ser, conectando-o com toda a beleza e sofrimento humanos. Diz o dedo de deus: os meus gametas se agrupam no meu som, explicando tudo.

Oh, eu não sei se eram os antigos que diziam
Eu seus papiros Papillon já me dizia
Que nas torturas toda carne se trai
E normalmente, comumente, fatalmente, felizmente
Displicentemente o nervo se contrai
Ô, ô, ô, ô, com precisão!

Zé Ramalho é um trovador que conta histórias que vão, como histórias em quadrinhos, entrecortando a linha reta, apagando todos os sons do domingão da sua vida, pra você não reclamar.  

Meus vinte anos de boy, that’s over baby! Freud explica
Não vou me sujar fumando apenas um cigarro
Nem vou lhe beijar gastando assim o meu batom


E assim, com Avohai, Vila do Sossego e Chão de Giz, fez-se a mais impressionante seqüência de 3 músicas iniciais de um disco de estréia da história da humanidade e do universo e da constelação e de toda a existência. Mas o disco não acaba aí; pelo contrário, seus momentos mais delirantes vêm depois. Alucinação é o que desperta A Dança das Borboletas, que giram a sua cabeça, te desconectam deste mundo do domingão, e, isso é segredo nosso, meu e teu, cúmplice leitor,  criam um terceiro andar, cujas características não são contáveis por palavras. Ouça, suba, e sinta. O mestre da guitarra Sérgio Dias, guitarrista dos Mutantes, foi quem construiu a escada que vai do segundo ao terceiro andar, num dos mais delirantes travelings de guitarra de toda a história da múzica, assim, com Z, universal, fechando com um interminável, porque não termina nunca, solo hipnótico.

As borboletas estão invadindo
Os apartamentos, cinemas e bares
Esgotos e rios e lagos e mares
Em um rodopio de arrepiar

Derrubam janelas e portas de vidro
Escadas rolantes e nas chaminés
Se sentam e pousam em meio à fumaça
De um arco-íris se sabe o que é....
Se sabe o que é.... se sabe o que é!

A alucinação não para por aí não. Paulo Moura, maestro, saxofonista e clarinetista que morreu há um ano, surge, em Meninas de Albarã, como um espectro, como se tivesse morrido 30 anos antes de morrer, como se viesse de algum lugar totalmente desconhecido pela razão humana.

De noite acendo a tocha do meu olho
Farol do Cabo-Branco secular
Desato as correntes do meu grito
E falo dos mistérios desse mar
Escuto a gargalhada de Netuno
Que no Atlântico me abrigou
A correnteza louca dessa vida
Me arrasta para bem longe do meu amor

Estréia avassaladora. Recentemente o Estadão lançou uma coleção: “Os 25 Discos que Fizeram História”. Este Zé Ramalho está lá. Para gravar o disco, Zé Ramalho não tinha um tostão furado e a gravadora não punha fé, ou seja, dinheiro. Todos os músicos, famosos e requisitados, provavelmente sem saber o porquê, tocaram de graça para um músico paraibano estreante. Talvez ungidos por algo desconhecido no universo material, Zé e os músicos proporcionaram a você, que está aí, de cara, lendo este fabuloso pôsti, uma passagem de primeira classe para o segundo andar mágico e, como bônus, para o terceiro andar, sobre o qual eu me recuso, veemente e terminantemente, a comentar e mesmo a ilustrar... Notaram que este pôsti não tem imagens?

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Blog Widget by LinkWithin