terça-feira, 30 de novembro de 2010

Você está morto

A fuga do óbvio é quase um objetivo de vida para mim. Não sei se isso é uma qualidade, uma deficiência de caráter, uma disfunção psíquica ou simplesmente uma característica pessoal, como o jeito de sorrir ou de andar. O fato é que me envergonho de ser pego dizendo o que já foi dito. Uma força vital me afasta daquilo que todos gostam.


A verdade é que me irrito demais com o povo feito gado. Muito do gosto comum não é gosto, é inércia, é pensar que se gosta porque se pensa que todos estão gostando, mas sem nenhum exercício mental de aprofundamento no objeto. Todos estão ouvindo? Conclui-se que todos estão gostando. Todos estão gostando? Então eu devo gostar. A base desse comportamento é o medo e a insegurança de se mostrar, de se desigualar, de ser visto como diferente. É o medo de ser indivíduo, é a impossibilidade de ser indivíduo. Isso sim é disfunção, isso é doença.

Não são apenas as impressões digitais que nos distinguem. Nossa alma também, nosso cérebro idem. As pessoas são naturalmente diferentes, mas morrem de medo de exercer essa diferença. Isso é doença. É o mal do século. É a razão pela qual se produz cada vez menos pensamentos, obras de arte (música, cinema, etc). Há cada vez menos gente que gosta do que não está no centro do olhar comum. Cada vez mais raros são os que olham aos extremos e que produzem pensamento, arte e evolução com isso. Sem pensamento, arte e evolução, a sociedade e a espécie humana, aquela dotada de individualidade e personalidade, fica estagnada, fadada a desaparecer em pouco tempo.

O problema não é, portanto, o que se acredita, ou o que sempre acreditei: que tudo o que se produz é para agradar o gosto comum. Não é esse o maior problema. A desgraça do gênero humano é que só se sabe produzir o que é do gosto comum. Não se sabe, salvo raríssimas exceções, fazer nada diferente disso.

Quando entrei no espelho o negócio já estava meio ruim, mas agora que saí descobri que piorou muito. Os grandes sucessos da música neste país, por exemplo, são cantorzinhos comportados, com letrinhas comportadas, arranjinhos básicos, embora com roupinha moderninha. Lenine, Ana Carolina, Seu Jorge, Jorge Vercilo, Maria Gadú. Estes, e muitos outros iguaiszinhos, são os considerados modernos. Modernos? O que eles trouxeram que pode ser classificado de moderno? O novo modelo de cabelo “desgrenhado-chique”? As roupas moderninhas que usam? A sexualidade sem vergonha? Esta não tem nada a ver com modernidade artística, é conquista social e apenas o é porque agora pode ser assim, porque lá atrás outros foram diferentes, ousaram e conquistaram.

Ah, você gosta dessa gente que canta essa musiquinha chinfrim? Dane-se. Continuam sendo muito ruins. Talvez o fato de você gostar deles os faça pior ainda. Mas duvido que você saiba que, na minha ausência, passou por aqui um cometa chamado Chico Science, que durou pouco porque o jogaram num poste. Quem me apresentou o sujeito foi o Tio Môa, o estúpido otimista que me hospeda neste blog. Estúpido porque acha que a existência, embora efêmera, de alguém criativo e fora do senso comum teria mostrado que nem tudo está perdido. Eu não tenho essa confiança, como nunca acreditei em papai Noel. Para mim, não há salvação.

Não há salvação nem para você, leitor? Bem, para você, em tese, poderia haver salvação, afinal, você está lendo isto que, convenhamos, não faz parte do gosto comum. Bastaria que você fizesse uns exercícios mentais, perdesse esse seu medo de ser incomum, de ser você mesmo.Porque hoje você não é você; você é os outros. Só ousando ser você mesmo, poderá se salvar da vala comum. Veja o que nunca viu, ouça o que nunca ouviu, aprenda a exercitar modelos matemáticos e geométricos diferentes (tudo na arte tem como base a matemática e a geometria). Mas sabe de uma coisa? Eu não acredito que você o faça. Não acredito em você. Tente com seus filhos, talvez eles ainda se salvem, desde que não copiem seu modelo simplório e covarde. Sinto dizer isso, mas você, como indivíduo, já está irremediavelmente morto.

4 comentários:

Ana Lúcia disse...

Adoro esse seu jeito simples, intenso e arrogante de escrever...

bjs

Ana

fernanda_cm disse...

Nunca vi uma descrição tão boa de como é... Humberto Laraia.

Anônimo disse...

recomendo um artigo excelente do Norberto Bobbio chamado "As razões da tolerância"...
Talvez se possa perceber como é lugar comum tentar parecer ser diferente (já que rigorosamente todos somos,conforme dito aqui)...
No mais, o eterno digladiar por espaços próprios não é mesmo?

Tio Moa disse...

Sem dúvida, caro anônimo. Norberto Bobbio esclarece muito sobre a tolerância (grande dica). Os intolerantes, como Humberto Laraia, apesar de um pouco chatos, têm lá o seu papel. Por sinal, ele acha que as pessoas deveriam se digladiar mais por espaços próprios, no lugar de se acomodar em espaços comuns. Grato pelo comentário e pela dica!

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