segunda-feira, 1 de novembro de 2010

A incrível história do CPNES - Parte 8

"Cobra Parada" apresenta Arlete, a guerrilheira que abraçava o mundo

Para quem começa agora a acompanhar a história, esclareço que o Cobra Parada Não Engole Sapo foi um grupo que no início dos anos 80 mudou a cara de Brasília, do Brasil e, por conseqüência, do mundo, no campo das artes, da política e da filosofia. Quem lê com regularidade a história do CPNES e tem curiosidade exacerbada, deve ter notado que nunca me referi a ele como grupo de teatro. É a história do grupo, a atuação do grupo. Nunca do grupo de teatro.

O que esse detalhe significa? Que o CPNES atuou em outras vertentes da arte? Ou será que teve uma atuação política? Quem sabe se o teatro não era apenas uma fachada para ocultar um braço armado de algum movimento de esquerda? Enfim, essa pergunta me fazem diariamente aqueles que não presenciaram os fatos, os meus sobrinhos de sangue e os de estima, visitantes descuidados e curiosos em geral.

Afinal, eram os cobraparadistas guerrilheiros?

Talvez fosse melhor mentir para preservar as pessoas envolvidas, que seguiram suas vidas e hoje têm cargos e famílias a zelar. Mas quem sai na chuva é prá se molhar. A resposta, por mais que isso possa chocar é que sim, éramos guerrilheiros. Pela primeira vez confessamos em público, nesta biografia não muito autorizada. Planejamos muitas vezes colocar bombas em prédios públicos. Pensávamos sempre em organizar atentados terroristas. Sonhávamos em içar o Sarney (que ainda não era presidente) pelos bigodes em praça pública. A idéia de pegar em armas para defender o país da ditadura nos seduzia demais para medirmos os riscos. Lutávamos pela liberdade de ser o que quiséssemos, não o que os outros queriam que fôssemos (embora não tivéssemos a menor idéia do que realmente queríamos ser).

Se temos provas de que éramos guerrilheiros? Infelizmente não. Foto de todo o grupo com armas nas mãos? Não, só essas fotos aí do lado, tem as armas, mas nao tem a gente. Foto com alguns de nós com alguma arma na mão? Não. Foto com pelo menos um de nós com qualquer coisa que pudesse parecer uma arma? Também não. Nem um revolvinho de espoleta? Negativo. Quem sabe um estilingue? Nada. Como é que pudemos não ter ficado com sequer uma prova de que éramos guerrilheiros? Muita incompetência?
Como é que a gente ia adivinhar que aquilo um dia pudesse ser útil prá gente?

Arlete (filha do rei) contracena com o Tiba em "Nosso Reino" 
Tudo bem, sem provas não poderemos ganhar indenizações, mas quem é que liga prá isso? E também, na verdade, não importa saber se pegamos ou não em armas. O que importa é que aquilo que fazíamos com o teatro era, de fato, uma espécie de guerrilha, mais efetiva do que se fossem usadas armas. E como um grupo de meninos, naquele sistema de opressão e controle absoluto, terá conseguido fazer o que fez? Não se faz isso sem uma liderança muito inspiradora. Idéias e vontade de resistir e de gritar nós tínhamos, mas quem teria a coragem de falar “vamos lá, tchê!”. Quem teria a petulância de gritar para quem ficasse inseguro “O que? medo? Larga de ser frouxo, vamos lá”? Quem era a pilha, o exemplo que inspirava, o motor que empurrava, a coragem que faltava?

A Arlete, a nossa guerrilheira. Essa gaúcha foi a nossa Anita Garibaldi, nossa Anahy de las Misiones... Essas gauchas são phoda mesmo, adroam uma gerra! E a Arlete não fugia delas. Por isso era conhecida como Arletão, que era prá meter medo mesmo. Mas não metia. Metia respeito, isso sim. Mesmo sendo uma guerreira forte, corajosa e nem um pouco delicada, Arletão tinha um sorriso e um coração que abraçavam todos que estavam pela frente. Seu jeito de ser conseguia a paradoxal proeza de ser despolido e até grosseiro, mas, ao mesmo tempo, gigantescamente afetivo e acolhedor. Era a pessoa boa e confiável por excelência. Se achasse que alguém era um chato, ela dizia. “Fulano, mas você é muito chato”. E o fulano não achava ruim. Se era prá dizer que alguém era imbecil, ela dizia. E todos continuavam gostando dela, e ela se divertindo com todos.

“Ahn? Fazer a filha do rei na peça e esculachar com o meu pai? É comigo mesmo”.

“Tá com fome? Não tem o que fazer em casa? Tem uma panela vazia aí? Não, essa é pequena, pega a maior. Isso, essa serve. Vem atrás”. E lá saia a Arlete de casa em casa. Entrava dizendo “Tô morrendo de fome. Me dá aí qualquer coisa prá eu botar nessa panela e fazer uma sopa”. “Não tem?” “Deixa eu ver na sua geladeira”. Ia lá e abria. “Ei, tem sim, você não viu direito. Essa berinjela ta ótima, obrigado!”. No final saía uma big sopa. O Sopão da Arlete virou mania. As pessoas já compravam verduras e legumes a mais e já deixavam para quando a Arlete passasse para fazer seus sopões comunitários para os necessitados. Necessitados aqui não eram aqueles que não tinham condições de comprar uma abobrinha, mas aqueles que não tinham a menor idéia de o que fazer com uma abobrinha. Arlete não podia ver uma causa justa que tomava a frente. Não podia ser desafiada, que encarava. Alguém tinha uma idéia legal? “deixa comigo”. Era a energia e disposição em estado puro.

Arlete, onde chegava, chamava atenção, porque além de todo aquele seu jeito, falava alto que só ela. Certa noite, no Beirute, depois de sairmos chapados de uma peça alucinante que havia vindo do Rio, fomos ao Beirute, onde, prá variar, foram também os atores da peça. E naquele ambiente alegre, o jeito da Artele chamou a atenção da Regina e do Luis, atores da peça, sentados na mesa ao lado, uma daquelas mesas mais escondidas, ali no “L” do bar. Logo tudo virou uma mesa só. A Arlete estava atacada. Era apaixonante. Estávamos no me
io da nossa guerrilha, e a Arlete havia assumido a personagem Arletão. Discursava sobre a necessidade de as mulheres largarem aquele jeitinho meiguinho-docinho de Barbie e assumir a guerrilheira, dar as cartas, ser mais natural. Arletão não queria parecer feminina, ela sabia que era, e isso bastava. Arlete falou também da luta contra o poder. Ao ver uns policiais por perto gritou “Prá quê polícia aqui? A gente não precisa de polícia!”. O Luis anotou. Aliás, ele ficava o tempo todo anotando. Falamos da guerrilha que fazíamos. Falamos de brincar com o poder, dar um calor neles, a fim de amolecê-los e derrotá-los por derretimento. Escaldá-los. Os atores cariocas adoraram aquela conversa.


Titãs antes de conhecerem a história do CPNES
Dois anos depois foi lançado o filme Areias Escaldantes, idealizado por Regina Cazé e Luis Fernando Guimarães e que tinha no elenco, alem dos próprios, o Lobão e os Titãs, que por sinal gostaram das anotações do Luis. O filme, livremente inspirado na Arlete e na história do CPNES que a Regina e o Luis ouviram naquela noite, contava a história de um grupo de guerrilheiros lutava contra as forças do mal.


Capa do 1o disco do Titãs pós CPNES

Foi depois disso que os Titãs deram uma guinada do pop para o rock mais em sua melhor forma. Foi depois disso que Lobão largou os seus Ronaldos e lançou sua iconoclasta carreira solo. Foi depois daquele encontro com a Arlete que a Regina Casé, que ainda fazia o estilo comportadinho na peça que vimos (“A Farra da Terra”), mudou a forma de ser e de atuar e incorporou o Arletão. Foi exatamente isso que fez seu sucesso, que por sinal se mantém até hoje.

Os cobraparadistas, inclusive o emérito Panta, que teve a sorte de ter convivido mais tempo com ela (foram casados), não precisam de esforço algum para ter, muito viva na memória, a magnética e fulgurante imagem da Arlete. Mas caso você, sobrinho querido, queira saber aproximadamente como ela era, veja a Regina Casé, que ostenta com dignidade a persona que a inspirou: Arlete, a guerrilheira que abraçava o mundo!




2 comentários:

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Tio Moa disse...
Este comentário foi removido pelo autor.

Postar um comentário

Blog Widget by LinkWithin